Sebastião Aluizio Solyno Sobrinho
As comunidades que vivem nas várzeas do estuário do rio Tocantins são exemplos do manejo e uso sustentável de recursos naturais na Amazônia. Há séculos seus sistemas de produção estão fundamentados em práticas de conservação dos solos, água, fauna e flora, mantendo a integridade das florestas de várzea como principal fonte de recursos para o desenvolvimento socioeconômico local. Assim, com o conhecimento autóctone passado de geração para geração, essas populações têm garantido sua segurança alimentar, fornecendo, ao mesmo tempo, um importante excedente para o abastecimento de Belém e de outras cidades do estado do Pará.
Um dos produtos dessa sábia convivência com o meio ambiente são os magníficos pomares agroflorestais que se projetam nos estabelecimentos familiares da região do Baixo-Tocantins, riquíssimos em espécies frutíferas, como o açaí (Euterpe oleraceae), o buruti (Mauritis flexuosa), o cacau (Theobroma cacao) e inúmeras outras espécies silvestres das florestas de várzea. Como resultado do habilidoso manejo florestal feito desde os tempos ancestrais até os dias de hoje, a região do Baixo-Tocantins conserva 67% da sua área total ocupada com florestas e culturas permanentes (IBGE, 1996), o que lhe confere uma posição invejável em relação ao manejo e preservação de recursos naturais, quando comparada com regiões de ocupação recente na Amazônia.
Isso não quer dizer que a região do Baixo-Tocantins tenha atravessado sua história como um santuário ecológico, livre das ações antrópicas que devastam a paisagem amazônica. Pelo contrário, desde o período colonial foi um dos primeiros lugares a sofrer o impacto da ocupação econômica na Amazônia. Já no início do século XVII, os franceses exploravam o rio Tocantins, tratando de anexar o território às áreas sob seu domínio no Maranhão. Até o final do século XVIII, a região havia sido inteiramente vasculhada por várias expedições de disputa colonial (entre França e Portugal), aprisionamento de índios, coleta de drogas e exploração mineral (Velho, 1981: 16-19).
Ainda na segunda metade do século XVIII, registra-se a primeira tentativa de estabelecer plantações homogêneas na região do Baixo-Tocantins, afirmando-se o cacau como a primeira commodity cultivada e a mais importante fonte de divisas da Amazônia. No século seguinte, é introduzida a plantation da cana-de-açúcar, delineando uma economia baseada nos engenhos de açúcar e cachaça, que determina os sistemas de produção até meados do século XX. Mais recentemente, com o esgotamento das fontes de Eutherpe edulis na Mata Atlântica e a transferência das indústrias de palmito para regiões de várzea no Pará nas décadas de 1970 e 1980, a região do Baixo-Tocantins sofre grande pressão pela extração do palmito do açaí (Eutherpe oleraceae). Com o corte indiscriminado dos açaizeiros em idade produtiva para a extração do palmito apical, a ação predatória chegou inclusive a afetar o estoque de frutos para a dieta alimentar local, baseada na farinha de mandioca, peixe e polpa de açaí.
Contudo, nenhuma tentativa de exploração desordenada dos ecossistemas de várzea demoveu a tradição de manejo agroextrativista nos sistemas de produção familiares da região do Baixo-Tocantins. Em meio a todas as ingerências externas, como uma espécie de resistência cultural viva e dinâmica, os habitantes da região seguiram a herança ancestral, adaptando os sistemas de manejo às necessidades de sobrevivência e, na medida em que apareciam oportunidades de mercado, ampliando os excedentes de produção para complementar a renda familiar. Exatamente por isso, pela resistência cultural garantindo a integridade social e econômica das populações locais, as florestas de várzea do Baixo-Tocantins alcançam o século XXI com sua integridade ecológica preservada.
Um bom exemplo de como as famílias de produtores do Baixo-Tocantins adaptam o manejo agro- extrativista, combinando as necessidades de subsistência com as oportunidades de mercado, pode ser demonstrado no caso supracitado, de ameaça no estoque de frutos de açaí pela extração predatória do palmito nas décadas de 1970 e 1980. Quando as indústrias de palmito chegaram, o principal produto do açaizeiro era a polpa do fruto, utilizada para o autoconsumo dos produtores e para a venda a milhares de indústrias caseiras da capital do estado e cidades do entorno. Entretanto, a demanda do produto ficava restrita aos limites regionais, o que exigia um pequeno aumento da produção apenas para atender o crescimento populacional.
A procura pelo palmito aparece então como nova oportunidade de renda, fazendo com que os produtores ampliassem a exploração do açaí em direção a novas áreas em estado silvestre. Contudo, a demanda acelerada pelo produto levou à exploração predatória dos açaizais nativos, comprometendo ainda mais o abastecimento de frutas. Nesse momento, em que as reservas de palmito se distanciavam e as famílias produtoras reagiam para recuperar o alimento, essa tendência foi entrecortada por outra na década de 90, quando o suco de açaí passou a ser moda entre jovens de classe média no Rio de Janeiro e São Paulo, introduzindo uma demanda por frutos em escala nacional.
Assim, conjugando a necessidade de recuperar os estoques de alimento com a abertura do mercado nacional para os frutos de açaí, as famílias da região do Baixo-Tocantins iniciaram um processo de recuperação das áreas de açaizais nativos, retomando as práticas tradicionais de manejo agroflorestal, o que levou a produção de frutos a triplicar. Mas os produtores de açaí não se limitaram ao desenvolvi- mento das técnicas de manejo no interior dos estabelecimentos. Na verdade, o que se iniciou sob a demanda dos produtores foi um importante processo de organização da produção regional, envolvendo associações de produtores, centros de pesquisa, entidades governamentais e não-governamentais.
Nessas iniciativas, uma experiência que merece destaque é a articulação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Abaetetuba com diversas associações de agricultores do município e a Federação de Orgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) para a implantação do Centro Tipiti de Tecnologias Alternativas, centro de formação que visa desenvolver alternativas produtivas para as áreas degradadas na terra firme e na várzea. Para resgatar as práticas de manejo do açaí e garantir a biodiversidade dos sistemas tradicionais, os produtores familiares associados ao Centro Tipiti iniciaram, em 1996, um trabalho de manejo florestal de açaizais e outras práticas agroecológicas nas áreas de várzea do município, trabalho este que se tornou referência, repercutindo em toda região.
Por outro lado, para viabilizar economicamente a retomada da produção do açaí e o crescimento da produção de frutas, a Universidade Federal do Pará, em parceria com a Fase, criou em 1997 um programa de pesquisa e desenvolvimento, produzindo tecnologias adaptadas ao processamento de frutas da produção familiar. Nesse projeto, enfocou-se a experimentação em meio real das tecnologias pesquisadas na Universidade, cujos resultados levaram à melhoria no processo de pós-colheita do açaí, à introdução da pasteurização no processamento da polpa e ao reconhecimento das qualidades do açaí como alimento funcional (bom para a alimentação e para a saúde).
No ano 2000, foi elaborado um programa de educação em Gestão de Empreendimentos Econômicos Associativos, investindo na profissionalização de jovens rurais em cooperativismo, informática, planejamento de negócios e outras atividades desenvolvidas com a pedagogia da alternância. Os produtores, por sua vez, se articularam em uma Comissão Regional de Comercialização, envolvendo três cooperativas e 44 associações de produtores dos municípios de Abaetetuba, Barcarena, Cametá e Igarapé Miri, que planejam de maneira conjunta a produção e efetuam operações de comercialização coletiva de abrangência regional. Como resultado dessa nova estratégia, conseguiu-se uma significativa melhoria na gestão das cooperativas e uma grande ampliação na comercialização de açaí por parte dos produtores organizados na região do Baixo-Tocantins. Entre os anos de 2000 e 2005, o volume de açaí comercializado anual- mente aumentou 40 vezes, passando de 81 a 3.200 toneladas. Trabalhando com 904 famílias na comercialização de açaí da safra 2004/2005, as cooperativas de produtores organizados alcançaram um faturamento bruto de R$ 1,9 milhões.
A valorização dos frutos de açaí no mercado nacional e o avanço dos produtores da região do Baixo- Tocantins na organização da produção abriram oportunidades de negócios para a produção familiar. Como conseqüência, em 2003, iniciou-se um processo de exportação de açaí para os Estados Unidos, articulado entre a Cooperativa dos Fruticultores de Abaetetuba (Cofruta), a Cooperativa Agrícola de Resistência de Cametá (Cart), a Cooperativa dos Produtores de Barcarena (Coopebab), a Associação Mutirão de Igarapé Miri, uma empresa in- ternacional (Sambazon Inc.), duas fábricas de processamento de frutas no Pará (Camta e Fly) e outra no Ceará (Dafruta).
A continuidade do processo tornou mais evidente a necessidade de reconhecimento do fruto do açaí como um produto agroecológico de origem orgânica, uma vez que sua produção é feita sem o uso do fogo ou de qualquer insumo químico. O diploma de certificação do açaí foi obtido em 2003 através da agência Guaranteed Organic Certification Agency (Goca), possibilitando um grande diferencial no processo de comercialização, já que os compradores de açaí orgânico aceitam contratos se- guindo as normas do comércio justo.
Com efeito, no período de agosto de 2004 a janeiro de 2005, a média dos preços pagos pelo açaí orgânico superou em 25% os preços praticados pelos atravessadores da região. Assim, descontados os custos de comercialização, as 904 famílias de produtores que participaram da venda coletiva do açaí orgânico obtiveram uma renda mensal média de R$ 321,50 (Fonte: Relatórios Fase). Considerando que até 1996 a renda média dos pequenos produtores da região era de R$ 216,47 por mês (IBGE, 1996) e que a safra do açaí concentra-se no período de setembro a dezembro, pode-se concluir que, nesta década, os produtores de açaí orgânico vêm passando natais mais fartos que na década passada.
Mais importante que os resultados imediatos da exportação de açaí são as oportunidades que o mercado de produtos orgânicos pode oferecer para a imensa diversidade de produtos silvestres da Amazônia, cuja produção é obtida de maneira artesanal, sem nenhuma adição de insumos industriais. Por outro lado, emerge um grande desafio: viabilizar uma produção artesanal em escala industrial no padrão de qualidade exigido pelo mercado internacional e garantir ao mesmo tempo eqüidade social e diversidade ecológica.
A experiência dos produtores familiares organizados no Baixo-Tocantins vem contribuindo para responder a esse desafio, tendo como eixo de ação a capacitação de jovens rurais para a gestão eficiente dos empreendimentos associativos e a articulação desses empreendimentos em nível regional, para a organização da produção em escala comercial.
Sebastião Aluizio Solyno Sobrinho:
engenheiro agrônomo, mestre em Planejamento do Desenvolvimento, consultor técnico da Fase no Programa Amazônia/PA
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REFERÊNCIAS:
Censo agropecuário – 1995/96. Número 5. Pará. Rio de Janeiro: IBGE, 1997. 217 p.
VELHO, Otávio Guilherme. Frentes de expansão e estrutura agrária: estudo do processo de penetração numa área da Transamazônica. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
FEDERAÇÃO DE ÓRGÃOS PARA ASSISTÊNCIA SOCIAL E EDUCACIONAL. Relatórios anuais da Fase Programa Amazônia/Pará. Belém: Fase, 2001-2005.
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Revista V2N3 – A certificação do açaí na região do Baixo-Tocantins: uma experiência de valorização da produção familiar agroextrativista na Amazônia