Isolda Dantas
A história da Rede Xique-Xique de Comercialização Solidária confunde-se com a história da organização das mulheres na região oeste do Rio Grande do Norte. Sua fundação teve a participação de vários grupos com experiência de produção coletiva e que buscavam um espaço de comercialização que atendesse às necessidades de seus projetos produtivos.
Em 1999, o Grupo de Mulheres Decididas a Vencer, do Assentamento Mulungunzinho, de Mossoró (RN), após avaliar várias idéias para gerar renda por meio de um projeto produtivo, dentre eles, fábricas de doces e criação de galinhas, optou pelo cultivo de hortaliças orgânicas. A agricultura fazia parte das raízes e do dia-a-dia de cada uma delas, familiarizadas com a terra e seus humores. Praticá-la agora com base nos princípios da agroecologia era converter o aprendizado que tinham acumulado em uma obra concreta.
Convencidas da idéia de cultivar hortaliças agroecológicas, era necessário averiguar formas de comercialização coerentes com as da produção, que fossem justas, solidárias, o que significa também escapar à exploração exercida pelos atravessa- dores. Pensando nisso, foi criada a Associação de Parceiros e Parceiras da Terra (APT). Nesse espaço, reuniam-se produtoras e consumidores(as), e todo o processo de venda e entrega de produtos era feito de forma direta.
Após três anos, outros grupos de áreas de assentamentos rurais e urbanos, na sua maioria mulheres, que produziam mel de abelha, castanha, artesanatos de palha e sementes, derivados da caprinocultura e hortigrangeiros em vários municípios da região, também passaram a demandar meios para a comercialização de sua produção.
Com isso, grupos produtivos, entidades de assessoria e movimentos tinham uma preocupação que era norteada pela certeza de que precisavam estender a comercialização a todos os envolvidos, conservando os mesmos compromissos afirmados para a produção e organização, que estiveram presentes no processo de construção da Rede e que integram, hoje, a carta de princípios do Espaço Xique-Xique: a produção, a comercialização e o consumo devem se distanciar de todas as formas de exploração do trabalho, incluindo o trabalho infantil, ausência de salário digno, desigualdade salarial entre homens e mulheres, presença da figura do atravessador entre a produção e comercialização, dentre outras.
Buscamos, então, dar um passo além, somando esforços na constituição da tríade organização, produção e comercialização e ampliando assim a idéia da APT, iniciada pelo Grupo de Mulheres Decididas a Vencer. Em 2003, criou-se o Espaço de Comercialização Solidária Xique-Xique, em Mossoró (RN).
A CONSTRUÇÃO DA REDE
O Espaço de Comercialização Solidária tornou- se rede quando reuniu 50 grupos participantes, de oito municípios. Atualmente, a Rede tem dois núcleos funcionando, em Mossoró e Baraúna. Além de potencializar e participar de feiras, promover seminários de formação, articular-se com outras redes, segue avançando no processo de certificação participativa e na construção de novos núcleos e feiras agroecológicas semanais.
A idéia é que o objetivo final não expresse apenas uma troca mercadológica de produtos, mas se situe na continuidade do processo de conscientização feito de forma participativa entre produtoras e produtores, consumidoras e consumidores, guiados pela premissa da autogestão.
Promover a articulação dessas três etapas significa acreditar na construção de um instrumento concreto que garanta que os princípios e valores presentes na organização permaneçam também nos momentos da produção e comercialização. Quem se organiza também quer produzir, quem produz quer se organizar e comercializar. E produzir com organização exige uma comercialização justa e solidária.
AFIRMANDO A CONSCIÊNCIA FEMINISTA
No caso particular dos projetos desenvolvidos dentro de uma consciência feminista, sabíamos que a busca desse novo horizonte transcendia a afirmação de preceitos éticos e solidários ao longo do processo de formação, pois necessitávamos, antes de tudo, que as mulheres estivessem presentes de forma real e efetiva em todos os espaços, sendo sujeitos da ação nessa construção.
Essa compreensão fundamenta a atuação da Rede, que em sua carta de princípios traz expressa a preocupação em garantir a valorização do trabalho das mulheres e jovens, reforçando sua participação, através de uma política de ação afirmativa em todas as etapas do processo (buscando instrumentos que viabilizem a socialização do trabalho doméstico), respeitando suas diferenças sem gerar desigualdades de gênero e geração.
Como conseqüência desse enfoque de formação, a Rede Xique-Xique tem atualmente em suas instâncias uma presença feminina significativa. No Conselho Diretor, composto por sete membros, seis são mulheres. A associação, gestora jurídica da Rede, diretoria e coordenação também contam com 90% de mulheres. Além da ocupação dos cargos de direção, elas participam na Rede através dos grupos de mulheres organizados nos assentamentos e/ou nas comunidades, somando 35 grupos produtivos, num total de cinqüenta grupos.
A produção das mulheres é a principal responsável pela grande diversidade de produtos comercializados no núcleo de Mossoró e nas feiras livres. Hoje, são produzidos por elas, de forma agroecológica, uma pauta diversificada de produtos transformados e in natura: doces, mel de abelha, rapadura de leite de cabra, produtos de higiene pessoal à base de mel, artesanato de palha, sisal e sementes, hortaliças e mariscos.
Na busca por construir alternativas comuns para facilitar a comercialização dentro da Rede, alguns grupos de mulheres optaram por confeccionar uma rotulagem única para produtos semelhantes. Isso garante uma identidade aos produtos das mulheres integrantes da Rede. Além disso, são realizadas compras de matéria-prima entre os grupos: compra-se mel das apicultoras para produtos à base de mel; vende-se cenoura para o outro grupo produzir bolos. Nessa perspectiva, garante-se a circulação dos produtos das mulheres fora e dentro da Rede.
Como já falamos anteriormente, a Rede é também um espaço de organização e articulação. Os grupos de mulheres, além de pertencerem à Rede, participam do movimento feminista, por meio da Marcha Mundial das Mulheres e da Coordenação Oeste de Mulheres, retroalimentando o conjunto do movimento e a Rede com questões referentes à luta contra transgênicos, luta contra o acordo da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), pelo acesso a crédito, acesso a água, dentre outras.
LIMITES E DESAFIOS PARA AS MULHERES
A ocupação desses espaços, a produção e a comercialização feitas pelas mulheres representam avanços. Basta olharmos os diversos depoimentos das envolvidas na rede: Aos poucos, conscientizávamos nossos maridos das vantagens que a associação das mulheres traria para toda a família. Como associadas, somaríamos os nossos benefícios e direitos aos deles, mas só conseguiríamos através da organização, conta Neneide Viana, presidente da Associação Xique-Xique. Ela procura ainda evidenciar que os resultados alcançados estão inter-relacionados, seja na divisão das tarefas domésticas, seja no seu reconheci- mento na esfera pública: Recebemos pesquisadores, assistentes sociais e equipes de avaliação do governo. Todos no assentamento encaminham até a gente, dizendo: – Vão até às mulheres, elas é que são responsáveis pela organização aqui.
Além dos ganhos relativos à autodeterminação das mulheres no mundo público e privado, podemos constatar o despertar para o conhecimento, construindo novas tecnologias, tanto no processo de produção como na gestão de seus projetos: Em nossa plantação, os sapos passeiam livremente, desde que descobrimos que eles eram nossa melhor arma para expulsar os gafanhotos, explica Ana Lúcia, produtora de hortaliças agroecológicas do Projeto de Assentamento de Mulungunzinho. Quem visita nosso projeto vê uma coisa engraçada. Lá tem berço, tem rede e muito menino. Assim como as tarefas da produção, o cuidado com as crianças é também dividido entre nós, observa Liana, presidente da Associação do Assentamento e produtora da Rede Xique-Xique.
Mesmo destacando os avanços, é importante refletir sobre algumas questões: Como provocar e efetivar nesse processo de economia solidária questões referentes à socialização do trabalho em todos os espaços? A participação em experiências solidárias não assegura a justa divisão de tarefas domésticas no cotidiano das mulheres, pois o custo da reprodução da força de trabalho no capitalismo tem sido pago apenas pelas mulheres em suas famílias. (Nobre, 2003, p.210).
Nesse sentido, a economia feminista, que inaugura uma nova discussão na economia, coloca a reprodução humana na centralidade do debate econômico, envolvendo a divisão sexual do trabalho e a necessidade de construir valores sociais para “a produção do viver”. Essa forma de abordagem feminista trouxe para a Rede Xique-Xique a necessidade de aprofundar tais questões e praticá-las no interior de cada grupo integrante da Rede: “O aporte da economia feminista é tornar visível a contribuição das mulheres à economia. São pesquisas que consideram o trabalho de forma mais ampla, incluindo o mercado informal, o trabalho doméstico, a divisão sexual do trabalho na família, e integram a reprodução como fundamental a nossa existência, incorporando saúde, educação e outros aspectos relacionados com temas legítimos da economia”(FARIA e NOBRE, 2003, p.13).
É necessário seguir provocando essa reflexão no interior dos grupos de mulheres em cada comunidade e assentamento. São em reuniões quinzenais dos grupos de mulheres que as questões do cotidiano são formuladas e, a partir de cada grupo, são repassadas para a Rede. Sabemos que as alternativas às questões estruturais, como a da divisão sexual do trabalho, só serão criadas com uma real mudança na sociedade, provocada pelas próprias mulheres. Estamos falando de transformação e, sem dúvida, ela deve ser cotidiana.
Outro desafio está relacionado ao fato de lidarmos também com experiências mistas, nas quais a determinação da presença das mulheres precisa ser constantemente reafirmada. De fato, o que observamos quando se trata de trabalho coletivo misto é que as mulheres perdem seu poder de participação à medida que os resultados positivos aparecem.
Apesar da constante busca pela autodeterminação, o número expressivo de grupos produtivos de mulheres atualmente existente na Rede Xique-Xique enfrenta os mais corriqueiros limites, como, por exemplo, a não permissão pelo marido para participar de atividades externas à região. Uma outra manifestação dessas restrições é a desvalorização do trabalho das mulheres na família. Mesmo quando a renda oriunda do trabalho da mulher representa quase 100% do orçamento familiar, o marido ainda o trata como “ajuda”. Há ainda as barreiras da distância física e política, quando as mulheres produzem, mas não conseguem chegar ao núcleo da Rede para comercializar.
Reconhecer a existência desses limites e tratá-los com a devida relevância é parte de nossa luta pelo fortalecimento da organização e da economia das mulheres, no intuito de superá-los, resistindo à cômoda rendição ao discurso mascarado de que existe transversalidade e participação das mulheres quando se fala em economia solidária.
É importante ter claro que, mesmo as experiências de economia solidária, ao serem desenvolvidas em uma economia hegemônica capitalista, são passíveis de inúmeras contradições. Cientes disso, podemos dispor de novas possibilidades de constituir formas alternativas de produção e comercialização, questionando o modelo concentrador e excludente, desnaturalizando-o de sua propaganda de “ideal e eficiente”.
A criação da Rede Xique-Xique tem mostrado que é possível garantir, mesmo diante dos limites apresentados, que as mulheres sejam protagonistas de um processo que envolve e entrelaça diversos temas, como agro- ecologia, feminismo e economia solidária. A Rede Xique-Xique é a prova de que podemos construir espaços de produção e de comercialização da agricultura familiar fundada na articulação desses pressupostos.
Isolda Dantas:
militante da Marcha Mundial das Mulheres e da Rede de Economia e Feminismo; assessora da Rede Xique-Xique de Comercialização Solidária.
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REFERÊNCIAS:
FARIA, Nalu & NOBRE, Miriam (Orgs). A produção do viver. SOF, 2003.
Economia Feminista. SOF, 2002.
NOBRE, M. Mulheres na economia solidária. In: CATTANI, A. David (Org.). A outra economia. Ed. Veraz, 2003.
CARRASCO, C. Introducción: hacia uma economía feminista. In: CARRASCO (Ed.). Mujeres y economía.
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Revista V2N3 – A construção da economia feminista na Rede Xique-Xique de Comercialização Solidária