Luciano Marçal da Silveira
Ao enfocar o tema da construção de territórios camponeses, esta edição da Revista Agriculturas apresenta narrativas que abordam trajetórias atuais de lutas sociais voltadas para a reafirmação da vigência histórica da agricultura camponesa em tempos de globalização neoliberal e de hegemonia política e ideológica da agricultura industrial. A ênfase sobre a natureza camponesa da disputa dos territórios com o capital agroindustrial e financeiro pretende jogar luzes sobre os modos de produção e os modos de vida de famílias e comunidades rurais que constroem suas perspectivas de futuro de forma intimamente conectada às sociedades em que vivem e aos ecossistemas em que produzem. Segundo feliz definição de Wanderley (2009), trata-se de agricultores territoriais, já que estão profundamente enraizados nos territórios que habitam e dos quais retiram os elementos definidores de suas próprias identidades socioculturais. Quilombolas, geraiseiros, sertanejos, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais, agroextrativistas, entre outros povos, são ricas expressões identitárias de nossa nação multicultural que lutam pela garantia de seus meios e modos de vida.
A despeito do discurso dominante, as agriculturas de base familiar camponesa continuam cumprindo um papel central e determinante para o desenvolvimento das sociedades contemporâneas. Atualmente, mesmo após o acelerado processo de urbanização da população mundial e da difusão generalizada dos padrões técnicos da agricultura industrial, aproximadamente 1,2 bilhão de camponeses e pequenos agregados familiares agrícolas constituem cerca de dois quintos da humanidade e proveem a maior parte da alimentação consumida no planeta.
Só mais recentemente a agricultura camponesa vem sendo reconhecida pelas múltiplas funções que cumpriu e que continua cumprindo na produção de alimentos, na geração de emprego, na produção de riquezas, na conservação das paisagens e na promoção de serviços ambientais.
Na contracorrente do modelo hegemônico de desenvolvimento e contrariando todas as teses que anunciam o desaparecimento das agriculturas camponesas, essas populações rurais têm mobilizado suas forças e estratégias de resistência, disputando palmo a palmo o domínio de seus territórios, em defesa de seus modos de produção e reprodução, de suas formas de relacionamento com a natureza, de sua identidade, de sua cultura. Como resultado do confronto entre a agricultura camponesa e a lógica capitalista de desenvolvimento agrícola, assistimos nos dias de hoje à coexistência de trajetórias opostas de estruturação dos agroecossistemas. Enquanto alguns assumem padrões empresariais de produção, promovendo intensos processos de mercantilização, outros, como reflexo da crise gerada pelo próprio estilo empresarial, evoluem no sentido de reconstruir crescentes graus de autonomia técnica, econômica e cultural por meio da refundamentação da agricultura no território. Essa segunda trajetória pode ser interpretada como uma expressão de resistência da agricultura familiar às forças econômicas, políticas e ideológicas que a empurram para níveis cada vez maiores de dependência ao agronegócio. Nesse sentido, as dinâmicas sociais de inovação agroecológica podem ser compreendidas como processos de recampesinização dos territórios rurais.
As experiências apresentadas nesta edição são reveladoras da resistência e da força da agricultura camponesa, bem como explicitam o papel e a importância do enfoque agroecológico como instrumento conceitual e metodológico referenciador de estratégias de ação de movimentos sociais sobre os territórios rurais. Além disso, os textos aqui reunidos permitem apontar elementos comuns e centrais para o avanço do campo agroecológico, dentre os quais destacam-se:
1) A DISPUTA PELOS TERRITÓRIOS
Avançar na construção de territórios camponeses requer, antes de tudo, destrinchar suas trajetórias históricas de ocupação e uso, o que implica entender as dinâmicas econômicas, as relações de poder e as organizações sociais territorialmente originadas. Somente a explicitação dos objetivos e interesses por trás dos projetos que marcam as disputas pelo território poderá fazer com que os atores protagonistas das iniciativas individuais de promoção de uma agricultura familiar camponesa (a começar pelas próprias famílias agricultoras) possam se identificar mutuamente e adensar suas capacidades políticas para elaborar e defender um projeto estratégico comum para o desenvolvimento territorial.
Os casos apresentados trazem evidências da força destrutiva e do caráter excludente dos projetos de desenvolvi- mento assentados na lógica econômica e ideológica do agronegócio. Um dos principais efeitos deletérios desses projetos vem exatamente do fato de que eles não são concebidos a partir das especificidades do território, nem o consideram como unidade de planejamento. Os territórios, ou seja, seus ecossistemas e seus habitantes, são integrados a essa lógica como recursos a serem explorados para a produção de lucros no curto prazo e não como condições básicas para fundamentar estratégias de desenvolvimento sustentável.
São expressões desses sistemas a monocultura do eucalipto, conformando imensos desertos verdes no norte do espírito santo; os ciclos econômicos agroexportadores dos latifúndios do agreste da Borborema; a instalação de agroindústrias e perímetros irrigados de cana-de-açúcar e coco; os empreendimentos turísticos de grupos empresariais estrangeiros no Território de Itapipoca; e, na serra Catarinense, a exploração das florestas de araucária, a monocultura de pinus e a implantação de barragens.
O caso emblemático que nos chama particular atenção é o descrito no artigo de Marcelo Calazans. Sua narrativa sobre a história do sapê do Norte, no espírito santo, nos leva a conhecer a ação das grandes empresas produtoras de celulose que foram responsáveis pela promoção de mudanças profundas na configuração socioespacial da região, marcando intenso processo de desterritorialização da agricultura regional e afugentando do campo grande parte das comunidades quilombolas e de outros povos tradicionais. Ao perderem substancialmente o controle do espaço físico e suas referências simbólicas e identitárias, essas comunidades passam a experimentar crescentes níveis de precarização da qualidade de vida e de degradação ambiental.
Entretanto, é exatamente na contracorrente desse movimento que se desenvolvem as mais diversificadas estratégias de resistência, inovação e superação, todas portadoras de grande força em defesa da construção de territórios camponeses. As experiências aqui apresentadas narram trajetórias das agriculturas de base familiar que teimam em permanecer produzindo e se reproduzindo. Seu profundo enraizamento no território é sua principal trincheira de luta. E é na batalha cotidiana pela sobrevivência que as famílias agricultoras vêm estruturando estratégias sofisticadas de inovação e transposição de obstáculos.
Os casos reunidos nesta edição são exemplos de reafirmação da lógica camponesa de produção, ou seja, sinalizam caminhos nos quais se percebe um movimento de recampesinização dos territórios, em diferentes intensidades e escalas. Isso fica evidente nas ações progressivas de reconquista e apropriação do território, de seus recursos, de suas formas de produzir e consumir, promovendo, enfim, a revitalização de suas culturas e modos de vida.
2) RECAMPESINIZAÇÃO E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO
Os processos de construção e disseminação de conhecimentos relacionados ao uso e manejo dos recursos dos agroecossistemas desempenham um papel central na reestruturação da lógica camponesa de gestão dos territórios rurais. O resgate e a valorização dos saberes tradicionais das famílias agricultoras constituem, nas experiências apresentadas, a base inspiradora para a geração de novidades. Desse ponto de vis- ta, o emprego do enfoque agroecológico se estabelece como paradigma científico capaz de mobilizar o conhecimento local e articulá-lo a conhecimentos científico-acadêmicos acerca da gestão dos agroecossistemas.
A aplicação do enfoque agroecológico é viabilizada por meio de dinâmicas locais de experimentação baseadas no intercâmbio de agricultora a agricultor e na configuração de redes sociais como a Rede de agricultores(as) agroecológicos de Itapipoca (CE), a Rede de agricultores(as)-experimentadores(as) do Polo da Borborema (PB) e a Rede de alternativas sustentáveis agropecuárias de Jalisco, no México. Na mesma perspectiva, vale destacar os processos de construção do conhecimento agroecológico em curso no México, descritos por Victor Toledo, e sua capacidade de se reconectar com o conhecimento multimilenar das agriculturas tradicionais que ainda marcam a conformação de seu território/nação.
Em síntese, os artigos desta edição trazem inspirações importantes para que seja devolvida à agricultura camponesa o seu papel histórico-cultural, reconhecendo sua participação ativa nas dinâmicas sociais de inovação e nos processos de produção e disseminação de conhecimentos sobre o manejo de agroecossistemas.
3) A CENTRALIDADE DAS EXPERIÊNCIAS CONCRETAS PARA A AÇÃO POLÍTICA
A força motriz dos processos de construção dos territórios camponeses passa necessariamente pelo fortalecimento do protagonismo de agricultores, agricultoras e suas organizações. As experiências aqui apresentadas são marcadas pela conformação de redes sociotécnicas e político-organizativas, mobilizadoras de processos de experimentação de inovações concebidas no território e muitas vezes dirigidas para o enfrentamento imediato das privações a que estão submetidas as famílias agricultoras. Ao mesmo tempo, mobilizam sua base social buscando integrá-la a um processo de construção coletiva de projetos alternativos para o desenvolvimento da agricultura familiar. As habilidades construídas nessas redes vêm ampliando os laços de cooperação entre agricultores(as) e suas organizações, assim como têm sido capazes de engajar organizações de assessoria e profissionais de instituições públicas de desenvolvimento.
Para além das institucionalidades formais constituídas nos territórios, a Comissão Quilombola do sapê do Norte, o Polo sindical e das Organizações da agricultura Familiar da Borborema, a Rede de agricultores(as) agroecológicos do Território de Itapipoca, a Rede agroecológica do Território serra Catarinense, a Rede de alternativas sustentáveis agropecuárias de Jalisco e a União Nacional Florestal Comunitária do México são expressões concretas do papel decisivo de institucionalidades territoriais, que relacionam a ação política de defesa do território aos processos de inovação agroecológica fundamentados no resgate e na revalorização dos mecanismos de reciprocidade e solidariedade camponesa.
4) FORTALECIMENTO DAS ECONOMIAS CAMPONESAS E A RELAÇÃO COM OS MERCADOS
Os artigos também trazem evidências da importância das formas camponesas de relacionamento com os mercados. Apontam para um movimento progressivo de ruptura com a excessiva dependência da agricultura familiar aos mercados de insumos e produtos. Ao refundamentar a produção agrícola na natureza, os protagonistas dos casos aqui relatados vêm conseguindo promover níveis crescentes de autonomia das unidades familiares e do conjunto do território, por meio da produção dos insumos para a reprodução dos sistemas e da provisão de alimentos para o abastecimento dos núcleos familiares. Também integram esse processo os mecanismos de autogestão de recursos coletivos, fortalecendo a constituição de economias comunitárias, a exemplo da Rede de Banco de sementes e dos Fundos Rotativos solidários apontados na experiência do Polo da Borborema.
As experiências ressaltam também o incentivo às estratégias de revitalização dos mercados locais, priorizando e ampliando os circuitos comerciais curtos, capazes de absorver a diversidade da produção camponesa. A diminuição dos custos de produção somada a práticas de agroindustrialização difusa e autogestionada por grupos comunitários tem permitido agregar valor à produção e reter no território a maior parte da riqueza nele gerada. Vale destacar a expansão das feiras livres agroecológicas, valorizando as culturas alimentares locais e reaproximando produtores e consumidores. Outra vertente importante é a estruturação de polos mercantis territoriais conectando a demanda dos mercados institucionais locais (escolas, creches, restaurantes populares, etc.) à diversificada e saudável produção da agricultura familiar. Essas iniciativas vêm sendo promovidas sobretudo pelo Programa de aquisição de alimentos da Companhia Nacional de abastecimento (PAA/ Conab) e, mais recentemente, pelo Programa da alimentação escolar (Pnae). A experiência da serra Catarinense traz contribuições particularmente valiosas a esse respeito.
5) A RELAÇÃO ESTADO-SOCIEDADE E A CONTEXTUALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NOS TERRITÓRIOS
O estado pode e deve cumprir papel determinante na orientação dos rumos do desenvolvimento rural em defesa da agricultura familiar camponesa. Entretanto, historicamente, o estado brasileiro, assim como o de outros países latino-americanos, atuou em favor da grande empresa agromercantil, elegendo-a como modelo privilegiado de ocupação e desenvolvimento dos territórios rurais.
Apesar de o atual governo brasileiro manter o mesmo alinhamento histórico de favorecimento do agronegócio e do grande capital agroindustrial, os últimos anos foram ricos em experiências que sinalizam caminhos para a renovação das relações entre estado e sociedade. Hoje, percebe-se uma inflexão positiva das políticas públicas em direção ao fortalecimento das agriculturas de base familiar e ao reconhecimento e valorização de suas relações com seus territórios. Alguns artigos apresentados nesta edição apontam para a construção desses novos enfoques, tanto na elaboração como na implementação de políticas, ampliando a esfera pública do desenvolvimento para além do próprio estado.
As políticas em curso no Brasil que incidem no desenvolvimento territorial vêm criando oportunidade para a conformação de novos espaços de governança e para a democratização dos processos de definição sobre a alocação de recursos públicos, constituindo uma arena política privilegiada para a interlocução entre os diferentes atores que disputam esses recursos. Essa conjuntura cria condições favoráveis para que as políticas se contextualizem nos territórios, moldando sua intervenção às realidades locais e abrindo oportunidades para a dinamização dos processos de inovação.
Na atualidade, as consequências nefastas do modelo de desenvolvimento implementado com apoio do estado brasileiro são bastante conhecidas. Merece destaque a escolha feita a partir da década de 1960 de orientar as políticas para o mundo rural, no sentido da modernização da grande propriedade e do paradigma da Revolução Verde. Essa opção certamente não era a única possível naquele momento histórico. O artigo de Victor Toledo demonstra que a reforma agrária realizada no México, no início do século XX, teve impactos decisivos para a promoção de transformações estruturais positivas na sociedade mexicana ao dar lugar a processos de recampesinização em escala nacional. Essa experiência chama atenção para o papel que o estado Brasileiro pode vir a cumprir nesse campo, em que pese o fato de que mesmo o estado mexicano tenha abandonado o legado da revolução do início do século passado ao se alinhar visceralmente à globalização neoliberal, como deixa claro o artigo de Jaime Morales e Maria Hernandez.
Retomar a rica experiência mexicana e buscar inspiração nela para engendrar processos similares em outros países, fato que tem sido historicamente bloqueado no Brasil, é um desafio que se coloca na ordem do dia face aos decisivos dilemas enfrentados pelas sociedades contemporâneas. Entretanto, mudanças dessa magnitude não se farão sem que os movimentos sociais acumulem força política a partir de suas experiências concretas para que sejam capazes de influir na correlação de poder na sociedade de forma a promover transformações estruturais em favor de processos massivos de recampesinização dos territórios rurais.
Luciano Marçal da Silveira
Coordenador do Programa de Desenvolvimento Local do agreste da Paraíba
[email protected]
Referências Bibliográficas
WANDERLEY, M. N. B. O agricultor familiar no Brasil: um ator social da construção do futuro. In: Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. Rio de Janeiro, AS-PTA, 2009. (Número especial da revista agriculturas).
Baixe o artigo completo:
Revista V7N1 – A construção de territórios camponeses