Holger Mittlestrass
A cidade de Witzenhausen, no estado de Hessen, no centro da Alemanha, tem longa tradição em educação agrícola. Já em 1898 havia sido fundada uma escola dedicada ao estudo da agricultura tropical e subtropical, cujo objetivo era formar especialistas nesse campo para trabalhar nos países colonizados pela Ale- manha. Desde 1971, a cidade abriga a Faculdade de Agronomia, Desenvolvimento Rural Internacional e Proteção Ambiental, que faz parte da Universidade de Kassel. A partir de 1995, a faculdade se voltou completamente da agricultura convencional para a orgânica e se autodenominou Faculdade de Ciências da Agricultura Orgânica. O curso inclui, atualmente, vinte disciplinas que desenvolvem pesquisa e educação em manejo orgânico, sem guardar nenhum vestígio de atividades da agricultura convencional. No âmbito mundial, esse é um exemplo único.
UMA MUDANÇA CONTÍNUA
A agricultura alemã passou por mudanças drásticas no curso dos últimos 50 anos. Entre 1950 e 1995, os gastos com alimentação caíram de 50 para 15% da renda da família média alemã. Entre 1975 e 1995 o orçamento da União Européia para a agricultura subiu de 20 para 40 bilhões de euros. Simultaneamente, por volta de 60% dos estabelecimentos agrícolas desapareceram no país. O uso do solo agrícola, sobretudo nas regiões menos favorecidas, decaiu vertiginosamente e somente uma pequena porcentagem da população permanece empregada na agricultura. Como resultado de métodos agrícolas de produção intensiva, o país atualmente enfrenta sérios problemas ambientais: aumento da erosão do solo, perda na biodiversidade e poluição da água pelo uso de adubos nitrogenados e agrotóxicos. Esses processos não se restringem à Alemanha ou à Europa. São fenômenos presentes em todo o mundo. Portanto, não é de se estranhar que a demanda por um modelo de desenvolvimento sustentável tenha adquirido cada vez mais importância no debate internacional, pelo menos desde a divulgação do Relatório Brundtland e da realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio-92, realizada na cidade do Rio de Janeiro, onde dirigentes de 178 países assinaram a Agenda 21.
Seja pelos benefícios ambientais, seja pelas novas oportunidades de empregos gerados nas áreas rurais, em todo o mundo, bem como na Alemanha, muitos cientistas clamam por mudanças no atual modelo de uso do solo ao defenderem a agricultura orgânica. Não há como negar que, nos últimos anos, o manejo orgânico, e com ele o mercado de trabalho para especialistas da área, cresceu rapidamente, estimulado pela grande demanda dos consumidores e também pelas iniciativas de políticas nacionais e internacionais. Atualmente, a política agrícola da União Européia oferece aos países-membros a possibilidade de apoio ao cultivo e à comercialização de produtos orgânicos. Assim, alguns países, como a Dinamarca, Itália e Alemanha, têm desenvolvido planos especiais de ação para apoiar o manejo orgânico. Agricultores recebem subsídios especiais para converter seus métodos de plantio e adotarem manejos orgânicos. Como resultado, a Alemanha possui atualmente quase 17 mil propriedades agrícolas orgânicas certificadas, que cultivam 770 mil hectares, o que representa 4,5% da terra agricultável do país.
MUDANÇAS NOS CURRÍCULOS
A cidade de Witzenhausen é um exemplo único de desenvolvimento curricular que partiu de um pro- cesso gerado de baixo para cima. Durante a década de 70, depois da crise internacional do petróleo e de diversos escândalos ambientais, surgiu na Alemanha um forte movimento anti-nuclear e naturalista. Embora naquela época existissem apenas cerca de 400 propriedades orgânicas no país, os estudantes da área da agricultura exigiram aulas sobre agricultura orgânica. Eles fizeram manifestações dentro da faculdade, nos principais gabinetes da universidade e diante do Ministério de Educação Superior do estado de Hessen. Escreveram cartas para muitas organizações ligadas à agricultura pedindo apoio e organizaram reuniões com membros da faculdade e com o reitor da universidade. Por dispor de recursos suficientes na época, a universidade de Kassel reagiu positivamente, concedendo à faculdade uma cadeira adicional em “Métodos de Agricultura Alternativa”. Essa disciplina teve início em 1981, oferecendo matérias eletivas aos estudantes, além, de uma fazenda experimental para a prática da agricultura orgânica. Logo em seguida, foi contratado um professor especializado em manejo orgânico animal.
Os alunos continuavam sendo obrigados a assistir a várias matérias que seguiam as abordagens da agricultura convencional e por isso pediram que fosse incluído no currículo um curso especial em agricultura orgânica. Essa demanda foi atendida em 1993, após ter gerado diversos debates dentro da faculdade. Além do enfoque em agricultura orgânica, um novo conceito holístico de aprendizado e ensino foi desenvolvido e testado, tornando-se tão popular, que em 1996, a faculdade introduziu um curso completo em agricultura orgânica, que conferia o grau de bacharel em Ciências, assim como um mestrado. Dessa forma, a educação em agricultura na universidade se transformou em educação em agricultura orgânica, com um currículo que incluía outros métodos de ensino que complementavam as aulas, tais como cursos multidisciplinares, aulas práticas obrigatórias e atividades de trabalho em grupo. Em 2002, a faculdade introduziu um segundo curso de mestrado (Agricultura Ecológica Internacional), ensinado em inglês, para atender a demanda internacional por cursos de base científica em agricultura orgânica voltados para climas tropicais e subtropicais. Em 2006, a faculdade deve oferecer um terceiro curso de mestrado (Comércio Internacional de Alimentos e Estudos Sobre o Consumo), também ministrado em inglês, abordando assim toda a cadeia alimentar orgânica.
ESTRUTURA GERAL
Um dos requisitos para ser aceito na faculdade é passar por um período de pelo menos três meses de aulas práticas numa fazenda. O grau de bacharelado requer dois anos de matérias básicas sobre ciências naturais e agricultura. Essas matérias são estruturadas em módulos de 180 horas cada, que devem ser completados ao final de um semestre, o que permite que os alunos possam cursar um semestre em outra universidade. No total, são 16 módulos obrigatórios, todos considerando princípios orgânicos em diferentes formas. Além de um módulo específico em ecologia e agroecossistemas, existem módulos que tratam sobre a produção de gêneros alimentícios com foco na rotatividade dos cultivos ou no uso de adubo orgânico, descartando o uso de agrotóxicos ou de fertilizantes químicos. Há também módulos voltados para a produção animal que enfatizam formas apropriadas de alojamento, alimentação e garantia do bem-estar animal. O curso é estruturado de tal maneira que, ao seu final, todos os estudantes cobrem cinco campos temáticos (que tratam sobre aspectos ecológicos, das plantas, dos animais, econômicos e sociais), propiciando uma perspectiva interdisciplinar que verdadeiramente reflete a agricultura orgânica.
Após esse período de estudos básicos, os alunos têm diversas opções de especialização, com sete módulos eletivos. O exame de bacharelado consiste numa tese, que deve ser elaborada em dois meses, com uma pesquisa específica sobre um tema de livre escolha e um teste oral. Mais tarde, depois dessa primeira graduação, eles podem continuar com um curso de mestrado ensinado em alemão, cujo foco é agricultura alemã e européia, ou um mestrado em inglês, voltado para agricultura e desenvolvimento rural internacional. Os estudantes devem concluir 12 módulos em três semestres. A avaliação final requer a elaboração de uma tese em cinco meses e um teste oral.
OBJETIVOS E MÉTODOS DE APRENDIZAGEM
O objetivo principal da faculdade é o desenvolvimento de soluções voltadas para um local específico com o uso mínimo de recursos não-renováveis, com ênfase especial na manutenção dos ciclos de nutrientes, na criação de uma relação balanceada entre áreas (paisagem natural) produtivas e “não-produtivas” e no estabelecimento de um vínculo entre a prática agrícola, o mercado regional e o desenvolvimento rural. Os objetivos do aprendizado de todos os cursos incluem o aumento de conhecimento científico e de habilidades práticas. Assim, o aluno aprende a conhecer e valorizar os ciclos da natureza e a pensar de forma interdisciplinar, para que esteja apto a agir de maneira responsável, a exercitar habilidades comunicacionais, pedagógicas e organizacionais, além de trabalhar cientificamente.
Novos métodos de ensino e aprendizagem foram introduzidos para que todos esses objetivos sejam alcançados. Por exemplo, os alunos têm que apresentar palestras e escrever relatórios científicos sobre temas especiais. Devem também organizar e ministrar seminários tutoriais com o apoio de um professor, escrever resenhas consistentes sobre seminários ou organizar excursões ou conferências que abordem temas específicos. Espera-se que, com essa reforma no aprendizado e ensino, os alunos possam não só obter conhecimento, mas também outras habilidades que lhes serão úteis para o seu futuro profissional. Os alunos devem trabalhar num estudo de caso de maneira metodologicamente clara e especificamente disciplinar, sendo avaliados por suas capacidades de trabalho em equipe, seu pensamento interdisciplinar e sua iniciativa para a solução de problemas.
Durante os dois últimos semestres do curso de bacharelado, muitos estudantes participam de um projeto de conversão de uma fazenda. Nesse projeto, agricultores da região que utilizam manejo convencional e que estão interessados em produzir organicamente concordam em trabalhar em conjunto com um grupo de estudantes pelo período de um ano. Juntos, analisam a propriedade e fazem um planejamento realista para a conversão produtiva do sistema.
Adicionalmente, ocorrem duas atividades especiais na metade de cada semestre. No verão, ocorrem excursões de duração de uma semana para que os estudantes conheçam a agricultura orgânica praticada em outros países. A escolha do país a ser visitado, o destino e os temas ou tópicos específicos a serem estudados são decididos pelos próprios alunos no início do semestre de inverno. Toda a excursão é organizada e conduzida pelos estudantes. O mesmo ocorre na conferência realizada no meio do semestre de inverno. No início do semestre de verão, os alunos decidem qual o tema que desejam tratar. Um grupo de cerca de dez alunos prepara a conferência, inclusive a captação dos recursos. Assim como a participação em outras atividades, a contribuição dos alunos nesses diferentes projetos também é levada em conta na sua avaliação.
CONTROLE DE QUALIDADE
Durante o projeto-piloto, entre 1995 e 1999, o curso foi intensamente avaliado. Questionários passados a ingressantes no curso mostraram que houve um aumento no número de alunos com pouca experiência em agricultura ou na atividade agrícola propriamente dita (cerca de 75%), o que demonstrou que era preciso dedicar mais atenção aos aspectos práticos da agricultura. Discussões com alunos e com diferentes especialistas revelaram a necessidade de focar o curso no desenvolvimento de competências para o trabalho autônomo no ramo da agricultura orgânica. Houve também discussões sobre o mercado de trabalho dessa atividade que identificaram que era preciso aprofundar as habilidades técnicas e não só o conhecimento científico. Avaliações feitas mais adiante mostraram que os alunos apreciam os novos métodos de aprendizagem e as habilidades que adquirem. Estudos de acompanhamento apontaram para o fato de que cerca de um terço dos que concluíram o curso continuam na prática agrícola, enquanto outro terço se dedica a vários serviços, como a prestação de consultorias, o trabalho em associações de produtores ou em órgãos de controle. No total, mais de 30% de todos os formados trabalham diretamente com agricultura orgânica, como agricultores, consultores ou na comercialização.
A experiência da Universidade de Kassel é inédita no que se refere à forma como foi desenvolvido o seu enfoque pedagógico, privilegiando o envolvimento ativo dos alunos em todas as aulas, assim como no papel de palestrantes, na organização de conferências e excursões ou no intenso trabalho em conjunto com agricultores orgânicos ou com aqueles que pretendem adotar esse modelo. Assim, promove um intercâmbio regular com representantes do mercado de trabalho da agricultura orgânica e, com a organização de tantas capacitações e viagens a campo sobre assuntos específicos, fortalece os vínculos entre teoria e prática. Atendendo a diversos pedidos vindos de outros países, a faculdade também intensificou suas atividades internacionais com universidades parceiras de todo o mundo, realizando pesquisas em comum e programas de intercâmbio de alunos. Isso tudo proporciona um conhecimento sólido e uma visão holística da agricultura aos alunos, que também adquirem qualificações sociais de grande importância, tais como habilidades de comunicação, organização e pedagogia. Esse contexto também facilita a evolução contínua das perspectivas e abordagens da universidade em relação à agricultura de modo geral.
Holger Mittelstrass:
coordenador de estudo, Faculdade de Ciências da Agricultura Orgânica Universidade de Kassel, Alemanha.
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Referências:
DABBERT, S. Support of organic farming as a policy instrument for resource conservation. In.: ISART, J (Ed.); LLERENA, J.J. (Ed.) Resource Use in Organic Farming. Proceedings of the Third ENOF Workshop. Ancona, Italy ,1997.
LAMPKIN, N.; WEINSCHENCK, G. Organic Farming and agricultural policy in western Europe. In.: ÖSTERGAARD, T. (Ed.): Fundamentals of Organic Agriculture. Ökozentrum Imsbach, Tholey-Theley, Germany, 1996.
WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Our Common Future: The Brundtland Report. Oxford, Inglaterra: Oxford University Press, 1987.
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Revista V3N1 – A criação de uma faculdade de ciências da agricultura orgânica