Glauco Regis Florisbelo, Fernanda Testa Monteiro e Simone Ribeiro
Centro de Tecnologias Alternativas (CTA) é uma ONG que atua na Zona da Mata de Minas Gerais na promoção da agricultura familiar e da Agro- ecologia. Desde o início da década de 1990, a entidade incorporou em suas linhas de ação a perspectiva de fortalecer as organizações dos próprios agricultores e agricultoras com vistas a torná-las protagonistas na construção do desenvolvimento local (DL). Essa estratégia foi assumida a partir da percepção de que a simples adoção por parte dos agricultores de tecnologias mais sustentáveis se mostrava incapaz de realizar mu- danças mais profundas nas comunidades e nos municípios. Ou seja, constatou-se que era imprescindível incorporar uma perspectiva mais ampla de análise para que transformações estruturais ocorressem.
Assim, o CTA foi mudando sua atuação, procurando o engajamento dos agricultores e agricultoras em ações que repercutissem de forma mais significativa em suas realidades. Tínhamos claro que o envolvimento das pessoas e de suas organizações seria uma condição central para que o processo de desenvolvimento ocorresse. Assim surgiu o lema envolver para desenvolver, e passamos a tratar o tema como envolvimento local.
Em geral, quando o tema do desenvolvimento local é abordado, logo vêm à cabeça projetos grandiosos, vinculados à figura do poder público local e dos diferentes atores sociais existentes na localidade. Entretanto, nossas experiências nos ensinaram que é possível iniciar processos de DL mesmo que seja a partir de uma articulação de poucos parceiros, desde que não se perca de vista a necessidade de agregação de novos e diversificados atores, inclusive órgãos do poder público. Para tanto, o foco principal dessas experiências esteve centrado no fortaleci- mento das organizações locais, para que elas adquirissem maior capacidade de assumir de maneira autônoma a condução desses processos.
O CTA assessorou iniciativas de promoção do DL nos municípios de Araponga, Acaiaca, Tombos e Espera Feliz, que apresentam características ambientais e agrícolas bem diferentes entre si. Também os níveis de organização dos agricultores são bastante heterogêneos. Este artigo traz uma síntese das principais análises e lições aprendidas durante as sistematizações realizadas em dois momentos da trajetória do CTA: em 2003 e 2007.
CONHECIMENTO COMPARTILHADO DA REALIDADE
Os processos de envolvimento local devem começar com um bom alinhamento das expectativas de todos os parceiros, que também devem ter clareza dos objetivos e etapas a serem realizadas a partir das estratégias definidas. Vale destacar que é importante que, ao longo do processo, esses objetivos sejam retomados e discutidos.
Ainda na fase inicial, é necessário perceber as fragilidades presentes nas organizações e propor caminhos para sua superação, que poderão ser logo deflagradas.
A realização de diagnósticos nos municípios, com foco em suas áreas rurais, foi uma estratégia que utilizamos em todos os casos. Esses exercícios compartilhados de leitura e interpretação da realidade são oportunidades para que ocorram o nivelamento de percepções e um grande aprendizado coletivo, tanto pelas comunidades quanto pelas organizações locais. Ao mesmo tempo, promovem a mobilização das comunidades; a divulgação do processo; uma nova percepção da realidade para agricultores(as) da base e para as lideranças; e sobretudo, a identificação dos problemas e potenciais das comunidades e do município. Por isso, quanto mais as organizações locais participam da preparação e da realização do diagnóstico, melhor. Nossa experiência demonstrou que as metodologias utilizadas devem ser construídas e executadas pelo conjunto de parceiros, e nunca ficar somente a cargo da assessoria.
PLANEJANDO O DESENVOLVIMENTO LOCAL
A partir da avaliação das organizações locais sobre suas capacidades de interferir no contexto em que atuam, duas linhas de ação foram implementadas. A estratégia adotada nos municípios de Tombos e Acaiaca consistiu na elaboração de um Plano Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (PMDRS). Em Araponga, iniciamos com um Plano de Ação para o conjunto das organizações parceiras que avançou para a elaboração de um PMDRS após algum tempo, com o fortalecimento das organizações locais e com a construção de relações com o poder público municipal. A experiência mais recente é a do município de Espera Feliz, onde a princípio as organizações não se sentiam em condições de enfrentar a amplitude e a complexidade dos temas inerentes à elaboração de um PMDRS e tampouco dialogavam com o governo local.
O plano de ação orienta e articula as estratégias das organizações locais para o DL. Os temas tratados são abrangentes, fruto das reflexões nas comunidades motivadas pelo diagnóstico. As perspectivas para a juventude rural e os cuidados com o meio ambiente são exemplos de questões enfocadas nesses processos. No entanto, as propostas e ações planejadas terminam se restringindo àquelas que estão dentro do campo da governabilidade das organizações envolvidas.
No caso de Espera Feliz, as ações definidas no Plano de Ação estiveram centradas no campo da formação e promoção da Agroecologia, no planejamento da produção agroecológica para a comercialização coletiva, no cooperativismo e na valorização da cultura local.
Assim, o plano de ação acaba orientando e articulando as próprias organizações sociais, dando a elas maior clareza de seu papel na condução das atividades priorizadas. Nesse sentido, ele pode criar as condições necessárias para que relações com o poder público sejam estabelecidas, assegurando maior capacidade política para a defesa e a implementação de programas públicos de interesse da agricultura familiar (seja por meio da pressão ou da negociação).
O ENVOLVIMENTO DE MULHERES E JOVENS NO PROCESSO
Ter incorporado em nossas estratégias de trabalho uma perspectiva sensível às questões de gênero e de geração foi fundamental para qualificar as ações voltadas para envolver ativamente as populações locais e suas organizações nos processos de promoção do DL.
Nos espaços onde vivem, mulheres e jovens têm condições desfavoráveis em relação aos homens adultos, em função de terem acesso limitado a bens e recursos, além de pouca influência na tomada de decisões das famílias e das organizações. Deixar de reconhecer essa situação é ignorar as injustiças sociais e, por conseqüência, reproduzir as desigualdades. Do nosso ponto de vista, não há processos efetivos de DL sem que mudanças nas relações de gênero e geração sejam promovidas.
Vale ressaltar que a participação das mulheres e dos jovens nunca ocorre espontaneamente. Portanto, é preciso perceber como as relações de poder estão estabelecidas para então orientar os trabalhos de forma a garantir a sua presença. Algumas estratégias foram elaboradas e postas em prática nesse sentido, entre elas: a organização de grupos separados de homens adultos e mulheres adultas, rapazes e moças, em todas as etapas, desde o diagnóstico até a elaboração de propostas; a adequação dos horários das reuniões às mulheres; e a garantia de espaços-creche e de animadores para as crianças durante os eventos. Foi necessário também assegurar momentos paralelos de capacitação e fortalecimento das mulheres e dos jovens para que estes se sentissem em melhores condições de intervir nos espaços conjuntos. Além dessas medidas, foi importante manter esse tema na agenda permanente de debate nos espaços de coordenação dos processos.
O PAPEL DA ASSESSORIA E DAS ORGANIZAÇÕES LOCAIS
O CTA vivenciou dois momentos distintos no que se refere à natureza de sua assessoria aos processos de desenvolvimento local, que corresponderam ao fato de os técnicos residirem ou não nos municípios. A presença do técnico no local proporciona um conjunto grande de vantagens, mas também implica em desvantagens. Ao morar no município, o técnico normalmente atua na mobilização dos atores sociais, na animação do trabalho, assim como na articulação política, quando fica responsável por garantir que o tema do DL seja um fio condutor e que esteja presente na pauta de todas as organizações locais. Porém, percebe-se que, embora a presença permanente da assessoria permita que o trabalho se torne mais efetivo e constante, quando não há técnico local, as organizações acabam assumindo essas tarefas, o que certamente incrementa o seu nível de apropriação política e metodológica do processo. Portanto, é certo que os processos de DL necessitam de pessoas e organizações que estimulem a participação, que articulem as agendas e os trabalhos e que mantenham o projeto ativo mesmo quando nenhum evento está sendo realizado. Mas o ideal é que cada vez mais as organizações locais chamem para si essas atribuições. Afinal, com o avanço dos trabalhos, há a tendência de as ações se tornarem mais complexas, o que exige o emprego de muito tempo em atividades de mobilização e animação.
Em Espera Feliz, por exemplo, foram indicados dois agricultores para atuar como mobilizadores, ou seja, como responsáveis pela animação do processo e articulação política das ações junto às organizações locais. O CTA acompanhou à distância, estando presente em alguns momentos-chave. Foi estabelecida uma coordenação colegiada, com representantes das organizações sociais locais e do CTA.
Nesse contexto, o CTA tem o papel de assessorar metodologicamente o conjunto das atividades, valendo-se de seus acúmulos adquiridos pela vivência de outras experiências similares. Atua também na mediação dos debates entre as organizações locais. Nesse caso, cumpre uma dupla função: ao mesmo tem- po em que contribui com um olhar externo, é parte envolvida, já que integra a articulação de entidades que desenvolvem as ações no município. Independentemente do papel que desempenha nos diferentes momentos do processo, uma atenção permanente sempre é dispensada para assegurar que a assessoria favoreça a emergência de um ambiente de construção coletiva, prevenindo-se do risco de dar o tom metodológico sozinha.
O CTA já prestava assessoria técnica às experiências agroecológicas existentes nesses municípios. Com os processos de diagnóstico e planejamento, houve uma reorientação dessa assessoria para garantir uma articulação entre as ações técnicas e as demais, buscando ampliar a escala e alcançar um número maior de famílias na promoção da Agroecologia a partir da valorização dos exemplos das famílias pioneiras na prática agroecológica.
Coube também ao CTA estabelecer uma ponte entre as experiências, promovendo intercâmbios entre as lideranças, assim como entre as experiências e instituições de ensino e pesquisa, como a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig). Diversos projetos de pesquisa e de extensão foram elaborados e implementados partindo das demandas apontadas nos PMDRS e nos Planos de Ação.
CONCLUSÃO
A vivência de processos participativos de (des)envolvimento local tem caráter formativo e fortalece as organizações sociais envolvidas, pois possibilita a aproximação entre elas, facilita o intercâmbio de informações, a negociação de prioridades e a articulação de ações conjuntas, a partir da construção compartilhada de uma percepção sobre a realidade local.
E é por isso que o fortalecimento das organizações sociais locais figura como um objetivo central nos processos de (des)envolvimento local. Podemos relacionar alguns indicadores alcançados nesse sentido: a capacidade de diferenciação de papéis entre as organizações sociais; o estabelecimento de um conjunto de estratégias e, com base nelas, a execução de ações coerentes; o grande reconhecimento da organização local por parte de sua base social e o constante envolvimento de novas pessoas nos seus trabalhos; e a renovação dos quadros políticos das organizações, sem que a qualidade da intervenção seja reduzida.
Assim, o que nossa experiência de vários anos nos ensinou, em síntese, é que a atuação protagonista das organizações locais ocorre quando é orientada por princípios como autonomia e independência, mantendo e incentivando suas capacidades de proposição e negociação junto ao poder público e suas habilidades para elaborar e implementar projetos próprios voltados para a promoção do desenvolvimento local, sempre com base no ativo envolvimento das pessoas e organizações.
Glauco Regis Florisbelo
engenheiro agrônomo do CTA
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Fernanda Testa Monteiro
engenheira agrônoma e consultora do CTA
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Simone Ribeiro
pedagoga do CTA
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Revista V4N2 – A experiência da promoção do (des)envolvimento local na Zona da Mata