Miguel Ângelo Perondi e Norma Kiyota
No sul do Brasil, principalmente no meio rural, sempre existiu a ideia de que a água seria um recurso ilimitado, reabastecido por chuvas regulares e abundantes. Entretanto, com a diminuição da área de floresta, a intensificação da produção agropecuária e a perfuração exacerbada de poços artesianos, a falta de água para a agricultura tem se tornado um fenômeno cada vez mais comum. Nas estiagens de 2004 e 2005, houve a necessidade do uso de caminhões-pipa para o abastecimento de água dos estabelecimentos com criações de aves e gado leiteiro.
Após as estiagens, ocorreu o aumento da demanda pela perfuração de poços artesianos que, em muitos casos, foi atendida com o apoio clientelístico de algumas prefeituras. Medida que serviu de solução para alguns, mas aprofundou o problema de um número maior de famílias rurais que contavam com as fontes de água superficial.
Na região Sudoeste do Paraná, a precipitação média não se alterou significativamente nos últimos anos (IAPAR, 2007), mas o consumo de água aumentou bastante. Entre 1996 e 2006, a produção de leite cresceu 132%, a de aves, 243%, e a de ovos, 429% (IBGE, 2009). Percebe-se, portanto, que a crise de abastecimento de água nos estabelecimentos da região está associada principalmente ao aumento da demanda de água e da degradação ambiental.
A PROTEÇÃO DE FONTES SOB A PERCEPÇÃO DOS AGRICULTORES
O Projeto Água e Qualidade de Vida, conduzido no Sudoeste do Paraná pela associação do Centro de educação sindical (Acesi), com o apoio da Petrobras, conseguiu preservar, entre 2006 e 2009, um total de 2.210 fontes de água, beneficiando mais de quatro mil famílias ou cerca de 16 mil pessoas (ACESI, 2009).
A grande novidade do projeto foi ter sido concebido a partir de uma percepção mais próxima da realidade dos agricultores. A ideia consistia em obter uma água de boa qualidade em fontes protegidas com solo-cimento, método introduzido na região pelo instituto Paranaense de assistência Técnica e extensão Rural (Emater) nos anos 1980, bem como recuperar a mata nativa do entorno. Entretanto, o projeto foi além, ao empregar a água como tema gerador do debate sobre a qualidade de vida no meio rural e utilizando a proteção das fontes como instrumento do processo de formação.
O primeiro passo era motivar as famílias a se inscreverem no projeto por meio do sindicato de trabalhadores rurais (STR) do seu município. A etapa inicial do projeto consistia no diagnóstico socioeconômico da família e do histórico da mina de água a ser protegida. A partir de então, o monitor elaborava uma proposta de preservação, definindo a estrutura do solo-cimento, a área a ser cercada e o material necessário. Em seguida, a família deveria providenciar as ferramentas, terra e pedra que seriam utilizadas no dia definido para o mutirão. Essa atividade compreendia a limpeza da mina, o preparo do solo-cimento, a colocação das pedras, a colocação dos canos de PVC para escoamento da água, a medição da vazão de água, o isolamento da área com cerca e o replantio de espécies nativas na área cercada. Além disso, a família beneficiada dedicava dois dias de estudo sobre os objetivos e métodos do projeto, em atividades articuladas pelos monitores locais para que a proteção da fonte se tornasse uma atitude multiplicável pela vizinhança.
“Cada município se organizou dentro da sua estrutura e multiplicou suas ações via parcerias. Assim, de uma meta de preservar 30 fontes por município, foram preservadas 40, 50 e até 60; e de uma meta geral de preservar 720 fontes, foram preservadas 1.200 na primeira edição do projeto. Os próprios agricultores potencializam a multiplicação do trabalho de preservação da água”. (Norberto Citon, coordenador técnico do projeto)
Além da proteção de fontes, o projeto desenvolveu outras ações, como a sensibilização de estudantes sobre o tema da água, o que permitiu colocar o assunto em debate nas comunidades rurais e urbanas. O maior mérito do projeto, entretanto, foi o avanço do debate junto às famílias sobre a necessidade de repensar a estratégia de produção agrícola.
“Não queremos apenas proteger a fonte, pois não adianta fazer proteção com solo-cimento, jogar veneno em cima e continuar plantando só a soja. Nós queremos discutir a propriedade como um todo”. (Luis Pirin, coordenador do projeto)
O estímulo para reestruturar os sistemas de produção nos estabelecimentos rurais partiu, sobretudo, da percepção dos efeitos que as mudanças implementadas tiveram sobre a qualidade da água. A fonte, quando protegida com solo-cimento, melhorou drasticamente os parâmetros físico-químicos, o que foi verificado pela redução da turbidez da água. Porém, não obteve a mesma resposta no aspecto biológico, medi- do pelo grau de contaminação por coliformes totais, o que foi atribuído à dificuldade em isolar a fonte. Além disso, os agricultores deduziram que os níveis de concentração dos resíduos de agrotóxicos utilizados nas lavouras convencionais também não devem decair, ainda que o projeto não dispusesse de condições financeiras e técnicas para analisar essa forma de contaminação das fontes.
MELHORIA DA QUALIDADE DE VIDA PARA ALÉM DO RURAL
O casal Giacominni teve três filhos. Um deles reside na propriedade, já é casado, pai de três filhos e está construindo a casa por meio do Programa de Habitação Rural do Governo Federal. A propriedade abriga, portanto, duas famílias, num total de sete pessoas, com 14,5 hectares, sendo 4,84 averbados como reserva legal e o restante utilizado para a produção de grãos e de pastagens e silagem para abastecer 18 cabeças de gado leiteiro, principal atividade da família.
Amina de água está localizada na parte baixa da propriedade, no interior da reserva averbada. Ela foi cercada e revegetada com espécies nativas. A medida da vazão da mina no dia 1º de setembro de 2009 revelou que, naquele dia, foram produzidos 132 mil litros, o que, segundo a família, representa a média da vazão. Somente nos meses de março e abril é que a vazão reduz para 50 mil litros/dia. Grande parte da água não é utilizada e escorre em seu curso normal para o riacho próximo. A mina de água supre a necessidade das duas famílias que, em média, consomem 1.000 litros/dia. além disso, ainda abastece a atividade leiteira e o açude de peixes.
O município de Bom sucesso do Sul está a jusante da propriedade e possui uma população de 3.061 pessoas (IBGE, 2009): 2.050 residentes rurais e 976 urbanas. Se distribuirmos a água produzida na mina da família Giacominni entre as pessoas que vivem no meio urbano, chega-se à conclusão de que cada uma teria acesso a cerca de quatro metros cúbicos mensais de água, volume suficiente para suprir as necessidades básicas de abastecimento (ACESI, 2009).
APRENDIZADOS
Uma lição importante dessa experiência foi perceber os impactos positivos que o uso da água como “tema mobiliza- dor” produziu. Essa estratégia despertou a vontade dos agricultores em resolver o problema da crise ambiental, o que acabou por ressignificar o papel da unidade de produção agrícola como potencial produtora de água potável.
O crescimento do número de municípios atendidos pelo projeto entre a primeira e a segunda edição indica que houve expansão da base sindical na região, ampliando sua conexão com o projeto nos processos de capacitação dos monitores e das famílias beneficiadas. A manutenção de 28 monitores municipais e o investimento na formação das famílias permitiu desenvolver novas lideranças locais, fortalecendo a cidadania e o sentido de pertencimento e responsabilidade compartilhada.
Dessa forma, o projeto Água e Qualidade de Vida obteve resultados para além do acesso à água potável, permitindo formar agentes comunitários e famílias num modelo de produção e consumo mais criterioso e consciente.
Finalmente, o projeto contribuiu para a difusão de práticas sustentáveis, assegurando a disponibilidade de água superficial de qualidade, recuperando as matas e a biodiversidade e beneficiando o meio ambiente, as famílias e as futuras gerações.
Miguel Ângelo Perondi
agrônomo, doutor em Desenvolvimento Rural e professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
[email protected]
Norma Kiyota
agrônoma, doutora em Desenvolvimento Rural e pesquisadora do instituto agronômico do Paraná (Iapar),
[email protected]
Referências Bibliográficas:
ASSOCIAÇÃO DO CENTRO DE EDUCAÇÃO SINDICAL. Projeto Água e Qualidade de Vida. Francisco Beltrão: ACESI, 2009. 28p.
INSTITUTO AGRONÔMICO DO PARANÁ. Leitura das Estações Pluviométricas de Capanema. Francisco Beltrão e Pato Branco: 1980; 2006.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Agropecuário. Disponível em: <www.sidra.ibge. gov.br>. Acesso em: 10 out. 2009.
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Revista V7N3 – A gestão social da água no Sudoeste do Paraná