Claudio Ubiratan Gonçalves
Os extrativistas do piqui (Caryocar Brasiliensis, Cambess) da comunidade de Cacimbas, no alto da Chapada do Araripe, são herdeiros dos valores pregados pelo Padre Cícero, relacionados à disciplina cristã, ao respeito ao próximo e à devoção ao trabalho. Localizada no município de Jardim, no extremo sul do Ceará, a comunidade possui um modo particular de organização desenvolvido a partir do seu ajustamento às especificidades do meio natural e a esses valores de convivência social culturalmente herdados.
Este artigo demonstra a profunda incompatibilidade que existe entre as formas de vida e organização produtiva dos piquizeiros e as orientações correntes nas políticas públicas para o desenvolvimento implementadas na região. Ao apresentarmos a complexidade dos sistemas de trabalho e de organização comunitária dos piquizeiros, chamamos a atenção para a necessidade de reorientação das propostas de desenvolvimento regional, que devem ser formuladas no sentido de fortalecer as estratégias de ordenamento ecológico e territorial desenvolvidas pelas populações locais.
OS CICLOS ECOLÓGICOS NO ORDENAMENTO DO TRABALHO DOS PIQUIZEIROS
O piqui é uma árvore nativa de porte muito variável, podendo atingir mais de seis metros de altura. O período de floração e frutificação vai de dezembro a abril, muitas vezes chegando a maio. Em outras épocas do ano, costumam aparecer algumas frutas, denominadas de temporão. Coletado na floresta do Araripe, o piqui é conhecido por ser rico em vitaminas A e E. O povo indígena da região o denominava Pyrantecaira, isto é, que dá vigor e força. Além de seu emprego na alimentação humana, atualmente o piqui ganhou importância econômica associada ao uso terapêutico, à produção de mobiliário e de tanino, assim como fornecimento de óleo para a fabricação de sabão e lubrificante de máquinas.
Os extrativistas de piqui trabalham por conta própria, o que lhes concede uma relativa liberdade e poder de decisão pela ausência da figura do patrão. Dessa forma, imprimem um ritmo próprio aos seus modos de produção e organização coletiva. O ordenamento sazonal do trabalho dos piquizeiros está diretamente sintonizado com os ciclos ecológicos locais e compreende duas lógicas diferenciadas e complementares. A primeira está relacionada com as estações climáticas, que no semi-árido são bem demarcadas: os invernos, como épocas de chuva, e os verões, como as de seca. A segunda lógica implica o deslocamento da morada durante o ano: em um determinado momento ela é estabelecida na casa localizada no povoado e ,em outro, em um barraco erguido na mata, com lona e galhos de árvores colhidos da própria floresta.
O deslocamento da moradia por um período aproximado de três a quatro meses por ano revela a existência de estratégias de sobrevivência e de produção econômica típicas das populações do Araripe. Harmonizadas com os ciclos naturais, essas estratégias econômicas organizam o trabalho dos piquizeiros a partir da conjugação das atividades produtivas nas terras de mata e nas terras de roça, configurando um sistema produtivo que combina, no tempo e no espaço, atividades extrativistas com atividades agrícolas.
Segundo a tradição dos catadores de piqui, o tempo de duração da atividade extrativista, época em que se autodenominam barraqueiros, dependerá da produtividade da safra anual. De forma geral, os anos que se seguem a invernos bastante chuvosos favorecem as boas colheitas do piqui. As atividades agrícolas são realizadas em roçados diversificados com espécies e variedades cultivadas de ciclo anual. Por essa razão, são também muito dependentes dos totais pluviométricos, que costumam ser altamente variáveis na região.
Apesar da grande variabilidade climática na região, o ciclo espaço-tempo de distribuição anual do trabalho dos piquizeiros da comunidade de Cacimbas obedece em grandes traços ao padrão representado na figura abaixo.
No período compreendido entre os meses de janeiro a abril, estão concentradas as atividades que de- mandam mais trabalho. Além da coleta do piqui, ocorre o plantio, a limpa e a colheita do milho e do feijão. A mandioca também é colhida nesse período.
De maio a junho, a faveira (Dimorphandra gardneriana), uma leguminosa nativa, é coletada na área da Floresta Nacional do Araripe. Por suas propriedades medicinais, essa espécie tem demonstrado crescente potencial econômico. Por meio do incentivo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) local, os piquizeiros de Cacimbas têm exportado a faveira para a empresa de fármacos Merk. Desde o surgimento dessa oportunidade comercial, uma parte da colheita vem sendo exportada enquanto outra é comercializada nos mercados municipais de Crato, Juazeiro e Barbalha. Um volume menor é armazenado para uso na própria comunidade.
No período de julho a setembro, os sistemas produtivos dos piquizeiros não são capazes de absorver a mão-de-obra disponível. É a fase do ano em que ocorre de forma mais intensa a migração temporária de trabalhadores da comunidade, que em alguns casos levam junto as suas respectivas famílias. Alguns se ocupam nesse período em projetos de fruticultura irrigada nos estados do Rio Grande do Norte e Pernambuco e outros se deslocam para São Paulo para trabalharem na agroindústria canavieira. Aqueles que não migram se ocupam como trabalhadores agregados em fazendas de municípios próximos como Exu, Serrita e Ouricuri (PE). Outros ainda trabalham na construção civil dos espaços urbanos compreendidos pelo triângulo Crato-Juazeiro-Barbalha.
Fechando o ciclo anual, o período de outubro a dezembro é marcado pelo retorno à comunidade para o preparo das terras das roças e pela organização das famílias para a coleta da próxima safra do piqui.
DA ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA À ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
As políticas públicas implementadas historicamente na região não consideraram e não tiraram partido da riqueza cultural inerente às estratégias econômicas da população agroextrativista do Araripe. Mas foi, sobretudo, a partir da década de 1990, que as ações governamentais chocaram-se frontalmente com os sistemas produtivos tradicionais ao procurar fortalecer o setor agrícola do estado pela viabilização de cadeias produtivas de frutas, flores, hortaliças e inserir o Ceará no mercado exportador da agricultura irrigada.
Ao serem implantados junto à comunidade de Cacimbas, os programas oficiais de desenvolvimento assim concebidos trouxeram consigo claras contradições com as formas organizativas e as estratégias econômicas dos piquizeiros. Um exemplo disso foi a exigência da Secretaria Estadual de Agricultura (Seagri) para que a comunidade criasse uma associação específica para gerenciar o projeto de floricultura que procurou fomentar. Apesar de o projeto ter sido implantado, algumas lideranças da comunidade avaliam que o correto teria sido o fortalecimento da associação que já existia e não a criação de outro espaço organizativo, dividindo os grupos e enfraquecendo suas formas de organização local.
Outro exemplo vem da implantação de uma fábrica de processamento de óleo de piqui, iniciativa surgida a partir da demanda por padronização e controle de qualidade do produto, apresentada pelo Instituto Brasileiro de Educação e Negócios Sustentáveis (Ibens). As ações do Ibens se iniciaram em Cacimbas em 2002, quando realizou estudos sobre o piqui e elaborou um plano de negócios para identificar oportunidades comerciais para a comunidade. Assim, em parceria com o Ibama, foi implantada a unidade de processamento do óleo de piqui. Uma parte dos moradores de Cacimbas avalia que a construção da fábrica trouxe melhoria na qualidade do produto, o que facilitou a comercialização do óleo. Já outra parcela da comunidade manifestou descontentamento por ser excluída do processo por não reunir as condições necessárias para atender às exigências técnicas para o preparo e beneficiamento do óleo na fábrica. Dessa forma, a unidade de processamento deixou à margem parte significativa da comunidade que, por essa razão, teve sua organização local fragilizada.
O modo como os piquizeiros usam e se apropriam dos recursos da natureza é outro tema do debate que vem mobilizando a comunidade em defesa de seus direitos e de políticas públicas adequadas. Segundo a percepção dos piquizeiros, os limites para a coleta do piqui estão ligados às áreas de ocorrência da planta, não havendo distinção entre espaço privado ou público. Por ser uma espécie nativa, sua coleta não pode ser regulada. É com esse entendimento que a comunidade vem tradicionalmente extraindo o fruto em áreas sob controle do Ibama e em propriedades de fazendeiros. Também é nessas áreas onde são construídas as barracas do acampamento e onde é realizado o processamento primário do produto, que consiste no cozimento da semente para produção do óleo.
Para assegurar seus direitos sobre o uso dos recursos do território, a comunidade tem se articulado para se fazer representar politicamente em diferentes espaços de negociação com órgãos do Estado, tais como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Ministério da Integração Nacional, o Banco do Nordeste e a Floresta Nacional do Araripe (Flona), sob gestão do Ibama. O exercício de participação nesses espaços tem permitido à comunidade defender seus interesses gerindo os conflitos que surgem em diferentes momentos. A título de exemplo, citamos a recusa dos moradores de Cacimbas a utilizarem crachás no momento da coleta do piqui na Flona, uma condição imposta pelo Ibama.
Portanto, ao serem concebidos de forma fragmentada, tratando de modo separado as dimensões sociocultural, econômica, ambiental e política do desenvolvimento local, os programas do Estado têm sido incapazes de apreender e valorizar as estratégias de produção econômica e de reprodução social dos piquizeiros. Esquecem que essas estratégias são produto de saberes acumulados por meio da observação atenta das dinâmicas ecológicas e da oralidade e transmissão de conhecimentos entre as gerações.
Nesse sentido, compreender essas estratégias para aprimorá-las é o desafio colocado para que se estabeleça um modelo de desenvolvimento regional fundamentado numa noção tão cara aos piquizeiros: a de que a melhoria e a reprodução de seus meios de vida dependem essencialmente da conservação da diversidade das áreas de transição caatinga-cerrado e da sua integração com os sistemas de produção agrícola. A rica experiência dos piquizeiros ensina que é na manutenção e integração de diversas atividades produtivas no tempo e no espaço que eles constroem seus meios de vida e suas formas de organização.
Claudio Ubiratan Gonçalves
assessor da Comissão Pastoral da Terra da Diocese de Crato (CE), professor adjunto do Núcleo de Geografia da Universidade Federal de Sergipe e membro do GT-Agrário da Associação dos Geógrafos Brasileiros
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Referências Bibliográficas
CRUZ, G. L. Dicionário das Plantas Úteis do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira/Difel, 1982.
GONÇALVES, Cláudio Ubiratan. Ética e diferenciação interna do trabalho na ordem territorial e ambiental do Cariri Cearense: solidariedade e conflito. 2005. Tese (Doutorado) – PPGEO/UFF, Niterói.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N2 – A organização dos piquizeiros na Chapada do Araripe