Rosângela Pezza Cintrão
A reforma agrária é uma das políticas públicas defendidas pelo movimento agroecológico nacional, vista como uma das condições fundamentais para se alcançar um desenvolvimento rural sustentável. Por sua parte, os movimentos de luta pela terra – em especial o MST – vêm crescentemente incorporando o enfoque agroecológico como paradigma para a estruturação técnico-econômica dos assentamentos. Simultaneamente, pesquisas acadêmicas recentes têm revelado os impactos positivos que pode trazer a conversão de grandes áreas monocultoras em novas unidades familiares de produção. Além disso, colocam em evidência estratégias produtivas já existentes nos assentamentos, que poderão ser potencializadas através de processos de transição agroecológica.
Um instigante exemplo é a pesquisa que deu origem ao livro Impactos dos assentamentos – um estudo sobre o meio rural brasileiro (Leite et alii, 2004), realizada em seis áreas com concentração de assentamentos de reforma agrária, identificadas como “manchas”: sudeste do Pará, zona canavieira nordestina, entorno do Distrito Federal, sertão do Ceará, sul da Bahia e oeste catarinense. A existência dos projetos de assentamento nessas áreas é fruto da iniciativa de luta dos próprios trabalhadores, em contextos de crise dos sistemas convencionais de produção marcados por monoculturas e elevada concentração de terras.
A análise do perfil dos assentados nessas manchas apontou que os assentamentos possibilitaram o acesso à propriedade da terra de uma população historicamente excluída, que na sua maioria vivia na zona rural da própria região. Embora tivessem anteriormente alguma inserção no mercado de trabalho, essas pessoas se encontravam em condições bastante instáveis e precárias, muitas vezes subordinadas às grandes fazendas, como meeiros, moradores, posseiros ou assalariados rurais. A criação dos assentamentos representou, em primeiro lugar, uma importante alternativa de ocupação estável e inserção social, tornando possível a esses trabalhadores centrar suas estratégias de reprodução familiar e de sustento econômico no próprio lote. Do total da população com 14 anos ou mais assentada nos projetos pesquisados, 90% trabalhavam ou ajudavam no lote, numa média de ocupação de três pessoas por unidade produtiva, sendo que 79% trabalhavam somente no lote.
Já a análise da produção vegetal e das criações consideradas importantes pelos assentados revelou um amplo leque de produtos, indicando a existência (mesmo dentro de um mesmo projeto de assentamento) de sistemas de produção diversificados. Certos cultivos predominam na grande maioria dos lotes, ainda que com variações nas diferentes manchas, e são ao mesmo tempo destinados aos mercados e considerados cruciais na alimentação das famílias. São eles o milho, a mandioca, o feijão e, em menor escala, o inhame, a banana e o arroz. Verifica-se também a presença de cultivos eminentemente comerciais, dentre os quais o algodão, a cana-de-açúcar, o cacau, o abacaxi e o fumo, dependendo da região. Aparece ainda um conjunto de produtos do extrativismo, a maioria utilizada para autoconsumo (como lenha, plantas medicinais e frutos silvestres), tendo alguns deles peso comercial, como a piaçava no sul da Bahia, a erva-mate no oeste catarinense e a madeira em estacas no sudeste do Pará.
A pauta de criação animal é também diversificada e utilizada simultaneamente para autoconsumo e venda. Os destaques em percentual de criadores são o gado (principalmente de leite, mas também para corte), a criação de aves (para carne e ovos) e suínos. Uma porcentagem menos significativa de assentados cria outros animais, como peixes, abelhas, cabras e outras aves (galinhas d’angola, patos etc). Produtos como leite e ovos têm peso importante no valor total da produção e certamente também na alimentação das famílias. A possibilidade de criar animais foi destacada pelos entrevistados (especialmente pelos antigos parceiros e assalariados permanentes) como uma das melhorias importantes nas suas condições de vida. A grande diversidade de produtos associando bens destinados ao autoconsumo e aos mercados está relacionada à estratégia econômica das famílias assentadas, que se resguardam, procurando maior flexibilidade produtiva frente às oscilações da comercialização, ao mesmo tempo em que garantem a melhoria dos padrões de qualidade da alimentação. Essa melhoria é reconhecida por 66% dos entrevistados pela pesquisa.
A importância do autoconsumo foi especificamente analisada por uma outra pesquisa realizada em assentamentos no estado do Rio de Janeiro, que quantificou detalhadamente o orçamento e os rendimentos das famílias e estimou em cerca de meio salário mínimo a renda média mensal correspondente ao autoconsumo. Essa mesma pesquisa constatou a existência de fluxos consideráveis de “doações” de produtos, tanto vegetais como animais, entre famílias, alcançando cerca de 8% do valor bruto da produção dos lotes (Leite, 2005). Essas doações, em geral não contabilizadas do ponto de vista econômico, indicam a importância das relações de reciprocidade e de compensações produtivas espontâneas através de “trocas” de produtos entre os assentados.
Quanto à comercialização da produção, a pesquisa revelou um quadro heterogêneo. De uma forma geral, os canais de venda utilizados pelos assentados não diferem substancialmente daqueles tradicionalmente acessados pelos agricultores familiares em cada região. Os atravessadores assumem papel de destaque, mas se verifica também a venda a outros agentes, como agroindústrias, açougues, armazéns, supermercados e cooperativas externas ao assentamento, com os principais canais de comercialização variando nas regiões conforme o tipo de produto.
As feiras livres aparecem como outro espaço importante de comercialização. Em vários municípios analisados, a presença dos assentamentos contribuiu para a diversificação e o crescimento da oferta local de produtos, chegando a repercutir no aumento do tamanho ou mesmo da freqüência das feiras e, em alguns casos, provocando rebaixamento de preços de produtos alimentares. Além disso, as feiras podem funcionar como momento de afirmação dos assentados junto à população local, com a colocação de barracas (ou mesmo com a implantação de novos setores na feira) identificadas com os assentamentos de reforma agrária.
Embora em pequena escala, a compra e venda de produtos entre famílias as- sentadas também foram constatadas, com mais relevância nos assentamentos maiores. Esses fluxos são também significativos na oferta e na demanda de serviços, já que vários dos assentados que declararam trabalhar parcialmente fora do lote o faziam dentro do próprio assentamento, seja em obras de infra-estrutura (construção de cercas, estradas, poços), seja como merendeiras, professoras ou agentes de saúde. Esses dados são indicativos da constituição de um mercado interno de produtos e serviços, que, de forma similar às doações mútuas, dão lugar a processos locais de circulação de rendas, gerando efeitos multiplicadores circunscritos à comunidade dos assentados e dinamizando suas economias.
Ainda com relação à comercialização, foram detectadas mudanças induzidas pela organização dos assentados, principalmente onde há presença de movimentos sociais organizados, como o MST. Exemplo disso é o aparecimento de cooperativas e associações e a introdução de inovações na gestão econômica, como o beneficiamento, a implantação de pequenas agroindústrias e/ ou a criação de pontos de venda próprios, possibilitando a agregação de valor às produções. Em vários casos, surgem marcas e selos próprios, vinculando a origem do produto à reforma agrária.
Apesar de os recursos obtidos por meio das diversificadas formas de venda da produção dos lotes não serem a única fonte de rendimentos das famílias assentadas, eles representavam, na média geral das áreas pesquisadas, 69% do total auferido, enquanto as atividades de trabalho externo representavam 14% e os benefícios previdenciários, 17%, sempre com diferenças entre as manchas.
De uma forma geral, a pesquisa constatou que o acesso à terra permitiu uma maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar. Resultou daí uma melhoria das rendas e das condições de vida, especialmente quando se considera a situação de pobreza e exclusão social que caracterizava muitas dessas famílias antes do seu ingresso nos projetos de assentamento.
Uma estimativa das rendas médias mensais brutas para o conjunto das famílias pesquisadas aponta um valor em torno de R$ 312,00 no período referente à safra 1998/99, pouco mais de dois salários mínimos por família (o salário mínimo correspondia a R$ 151,00 no mesmo período), variando de uma média de R$ 116,74 na mancha do sertão do Ceará até R$ 438,72 na mancha do oeste catarinense. Apesar de o nível médio de renda não ser elevado, houve em geral um aumento na capacidade de consumo das famílias em relação a sua situação anterior, não só no que se refere a gêneros alimentícios, mas também a outros bens, como eletrodomésticos, meios de transporte próprio, equipamentos agrícolas, bem como melhores condições de moradia.
Um aspecto de grande relevância socioeconômica e humana observado é que os assentamentos acabam atuando como mecanismos de consolidação ou mesmo de reconstituição de laços familiares antes desfeitos ou ameaçados pela necessidade de migrações e deslocamentos em busca de alternativas de sobrevivência. Além da freqüente presença de parentes em outros lotes do mesmo assentamento, verificou-se que em 24% dos lotes entrevistados viviam, além da família nuclear (pai, mãe e filhos), outros parentes, como pais/sogros, genros/noras, irmãos/cunhados e netos, muitos dos quais não moravam com a família antes de ela vir para o assentamento, indicando que as famílias assentadas podem estar servindo como amparo social a parentes. Ao constituírem capacidades de ocupação produtiva, de renda estável e de segurança alimentar, os assentamentos atuam como âncoras para a recomposição das famílias, aproximando membros que anteriormente estavam dispersos, possivelmente em função das dificuldades acarretadas pela necessidade de se inserir no mercado de trabalho, contribuindo para garantir a reprodução não apenas econômica, mas também e fundamentalmente social desse grupo de trabalhadores
Como uma síntese das evoluções positivas das condições de vida e da conquista de uma maior eqüidade social e econômica, os assentados apontam o sentido da nova condição, em que o acesso à terra faz com que se sintam “libertos”, senhores de seus próprios passos e capacitados a controlar suas vidas, deixando de ser “escravos”. Depoimentos nesse sentido apareceram em especial (embora não exclusivamente) nas áreas onde predominavam monoculturas e as relações de subordinação e de poder que as caracterizam. Apesar das dificuldades enfrentadas, e da pobreza ainda generalizada, o acesso à terra tem provocado rupturas e uma nítida sensação de avanço em relação ao passado.
Para além das melhorias trazidas para a vida das famílias assentadas, que por si só justificariam a implantação de uma verdadeira reforma agrária que resgatasse a dívida social com a população do campo, a pesquisa revelou que os assentamentos trouxeram mudanças também para os municípios onde estão inseridos. A ampla gama de produtos produzidos resultou na diversificação da oferta local de produtos agropecuários, o que foi verificado através da comparação entre a produção dos assentamentos e a produção total dos municípios estudados. O aumento do poder de compra das famílias assentadas teve repercussões na dinamização do comércio local dos municípios. A concentração de assentamentos modificou a paisagem, o padrão de distribuição da população e o padrão produtivo, multiplicando as estradas (que antes iam somente para as sedes das fazendas) e levando ao surgimento de novos aglomerados populacionais. Especialmente no caso das antigas áreas monocultoras ou de pecuária extensiva onde a agricultura patronal encontrava-se em crise, os assentamentos possibilitaram uma verdadeira “reconversão produtiva”, tanto mais visível quanto maior o número de famílias assentadas e a extensão da área ocupada, levando a processos de reorganização do sistema de uso dos solos e da produção familiar no seu contexto mais geral, e abrindo caminho para uma reestruturação agroecológica do meio rural.
Rosângela Pezza Cintrão:
engenheira agrônoma; mestre em Desenvolvimento e Agricultura; membro da coordenação da pesquisa sobre impactos dos assentamentos e secretária executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Referências:
LEITE, Sérgio P.; HEREDIA, Beatriz M.A.; MEDEIROS, Leonilde S.; PALMEIRA, Moacir G.S.; CINTRÃO, Rosângela P. Impactos dos assentamentos: um estudo sobre o meio rural brasileiro. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
LEITE, Sérgio P. Estratégias socioeconômicas, atividade produtiva e orçamentos domésticos nos assentamentos rurais. Rio de Janeiro: CPDA (mimeo), 2005.
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Revista V2N3 – A reforma agrária e a reconversão produtiva do meio rural