Adriana Galvão Freire, Luciano Silveira, Roberval da Silva e Paulo Petersen
A existência de estruturas em rede socialmente organizadas para transmitir conhecimentos de uma geração para outra ou entre pessoas e grupos de uma mesma geração é marca característica do mundo rural. Essas redes se expressam com maior vitalidade em comunidades nas quais o saber-fazer é fruto do patrimônio cultural local.
A influência dos valores associados aos pacotes tecnológicos da “modernização agrícola ”promovidos pelos programas convencionais de “desenvolvimento rural” tem sido um dos principais fatores responsáveis pela fragilização dessas redes locais de conhecimento. Em substituição aos circuitos horizontais de produção e transmissão do saber, esses programas estabelecem com as famílias e comunidades rurais relações verticalizadas, fundamentadas na lógica da “transferência de tecnologias”. Essa concepção unidirecional e “de cima para baixo” de comunicação é geradora de crescentes níveis de dependência técnica e cultural.
Com o objetivo de reconhecer, revigorar e redinamizar as redes locais e os mecanismos horizontais de troca de conhecimento, a AS-PTA vem, em seus programas de desenvolvimento local, forjando seu método de ação na disseminação das práticas de experimentação agroecológica e no estímulo à interação dos(as) agricultores(as).
Diversos instrumentos vêm sendo desenvolvidos para facilitar, potencializar e qualificar a comunicação e o intercâmbio entre agricultores(as), favorecendo a criação de redes locais de inovação agroecológica. Vídeos, cartilhas, boletins informativos, painéis fotográficos, peças teatrais e outros meios são empregados para a socialização das informações. Todos operam como instrumentos portadores dos conhecimentos adquiridos localmente, na prática experimentada e vivenciada. E é assim que a sistematização passa a cumprir um papel fundamental na valorização e na reorganização do saber construído e acumulado, além de qualificar a troca e a geração de novos conhecimentos.
O BOLETIM INFORMATIVO
Um simples mas eficiente instrumento de sistematização que vem sendo amplamente utilizado junto às dinâmicas do agreste da Paraíba é o Informativo da Agricultura Familiar. Produzido com recursos simples de diagramação e reproduzido dentro do próprio escritório local, o boletim informativo busca traduzir em palavras e imagens o depoimento e a interpretação dos agricultores e agricultoras a respeito de suas experiências.
Além de apresentar suas inovações, esses instrumentos dão visibilidade às histórias de vida das famílias agricultoras ou à trajetória de um determinado grupo, sinalizando seus problemas e dificuldades práticas, as soluções encontradas e, sobretudo, os caminhos percorridos para o desenvolvimento da inovação focalizada. Assim concebidos, esses instrumentos procuram evidenciar as capacidades criativas dos indivíduos e grupos locais no enfrentamento dos obstáculos do cotidiano.
Para que os(as) agricultores(as) experimentadores(as) se apropriem efetivamente do material produzido é necessário que a edição final seja fiel às suas idéias, falas e pensamentos e que sua cultura e valores sejam respeitados. Quando finalizada a primeira versão do documento, ela retorna aos agricultores e agricultoras para que possam conhecer e ajustar o conteúdo. Esse procedimento é importante para que eles se apropriem da sistematização de sua experiência, pois serão os próprios que farão a distribuição do boletim.
O destaque às trajetórias das pessoas e/ou grupos em seus processos de inovação é o aspecto central das narrativas apresentadas. Em muitas situações, as inovações apresentam baixa aplicabilidade em contextos distintos dos quais foram desenvolvidas. No entanto, ao explicar os princípios e fundamentos associados à inovação, estimula-se que outros grupos ou indivíduos a ajustem para as suas realidades específicas ao conduzirem suas próprias experimentações. Ao apresentar a inovação sistematizada no contexto no qual ela foi desenvolvida e experimentada, o material realça o potencial criativo e as formas de experimentação e organização adotadas. Esse realce exerce um papel importante ao elevar a auto-estima dos inovadores e ao motivar outras pessoas e grupos a também ingressarem nas redes de inovação local.
GERAÇÃO E DISSEMINAÇÃO DE CONHECIMENTOS
A experiência da AS-PTA no agreste da Paraíba tem mostrado que o emprego dos boletins informativos nos momentos presenciais de intercâmbio contribuem efetivamente para a troca e a construção de novos conhecimentos. Foi, por exemplo, no momento da constituição da Comissão de Saúde e Alimentação do Pólo Sindical da Borborema que um grupo de agricultoras experimentadoras discutiu a importância de se realizar um encontro regional que pudesse valorizar e dar visibilidade às experiências desenvolvidas no “arredor de casa”.
Com o objetivo de melhor conhecer e entender esse espaço tão complexo, deu-se início a um processo de sistematização a partir do qual as agricultoras que participam da comissão buscaram olhar criticamente para esse espaço para compreender quais eram as partes que o compunham, suas funções, seus principais problemas e, principalmente, procuraram identificar as experiências que vinham sendo desenvolvidas para solucionar dificuldades coletivamente vivenciadas.
Durante os três meses que antecederam o encontro, a comissão promoveu várias visitas de intercâmbio e identificou, nas comunidades, iniciativas significativas que poderiam ser apresentadas no evento para motivar os seus debates. Após essas rodadas de identificação de práticas locais inovadoras, foram escolhidas sete experiências que ajudariam o grupo a interpretar esse subsistema durante o encontro: a horta de plantas medicinais e o uso da água servida; a reciclagem de lixo; a criação de animais de terreiro; o uso da cerca viva ou de tela para divisão do espaço; o uso da multimistura e a fabricação de remédios caseiros; o beneficiamento de frutas nativas; e a organização do espaço do “arredor de casa”.
A fim de auxiliar a socialização dos conhecimentos acumulados no decorrer do processo preparatório e fomentar as capacidades interativas das agricultoras durante o evento, foi elaborado um conjunto de instrumentos de comunicação. As experimentadoras, as famílias ou mesmo um grupo de agricultores(as) que têm suas inovações sistematizadas são levadas a descrever e interpretar suas realidades por meio de uma conversa informal articulada pela assessoria ou pelas lideranças do Pólo que integram as comissões temáticas. Essas conversas auxiliam a preparação das pessoas que apresentarão suas experiências no encontro e fornecem as informações necessárias para que uma primeira versão do informativo seja elaborada.
No evento, foi estruturado um cenário que reproduzia o “arredor de casa”. Nele, as agricultoras se posicionavam para apresentar suas experiências. Preparadas para partilhar os ensinamentos aprendidos com suas próprias práticas, as agricultoras levaram espontaneamente para o encontro porções de multi-mistura, remédios caseiros, amostras de vários tipos de plantas utilizadas como cerca vida, diversas mudas de plantas medicinais, de frutas nativas e os doces beneficiados. Ao final de suas apresentações, as agricultoras distribuíram ao público, formado por quase 100 mulheres, os boletins informativos que relatavam a trajetória de suas experiências. Alguns desses boletins foram elaborados pela própria experimentadora.
APRENDER COM AS PRÁTICAS
O fortalecimento de um sistema compartilhado de comunicação social no Pólo da Borborema permitiu que os grupos de agricultores-experimentadores se apropriassem não só dos instrumentos de sistematização, mas também da concepção metodológica que os fundamenta. Diante de um intenso processo de experimentação, os agricultores e agricultoras acreditam ser necessário atualizar os conteúdos dos boletins in- formativos, sistematizar suas novas experiências imprimindo o mesmo dinamismo verificado na experimentação ao processo de comunicação. A sistematização cumpre assim um papel essencial na mediação da cadeia de geração e partilha de conhecimentos agroecológicos.
Testemunha-se hoje a afirmação de um movimento social de inovação com base no intercâmbio, na troca horizontal de saberes e na constituição e estímulo às redes de conhecimento. Na Paraíba, esse movimento social já rompeu as fronteiras do Pólo da Borborema e irradia-se para diversas regiões do estado onde atua a Articulação do Semi-árido Paraibano (ASA-PB), um fórum de organizações e pessoas para a promoção da convivência com o semiárido. Já são mais de 150 boletins informativos sistematizados em todo o estado, animando as várias redes de inovação de âmbitos local e estadual. São centenas de agricultores e agricultoras que compartilham seus conhecimentos para muito além de seus círculos de influência presencial.
Observa-se no Brasil um movimento crescente de reflexão coletiva sobre abordagens metodológicas inovadoras para a construção do conhecimento agroecológico. Um número já expressivo de entidades vem utilizando instrumentos como o boletim informativo para estimular a construção e circulação de conhecimentos sistematizados das experiências vivenciadas localmente.
Adriana Galvão Freire:
assessora técnica da AS-PTA
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Luciano Silveira:
coordenador do Programa Local do Agreste da Paraíba
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Roberval da Silva:
assessor técnico da AS-PTA
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Paulo Petersen:
diretor-executivo da AS-PTA
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Revista V3N2 – A sistematização no fortalecimento de redes locais de inovação agroecológica