Julia Wright
No início da década de 1990, Cuba mergulhou em uma crise provocada pela queda da União Soviética, que até então era a sua principal fornecedora de alimentos, combustíveis e insumos agrícolas. Essa crise atingiu a agricultura cubana de forma especialmente grave por quatro motivos. Em primeiro lugar, porque os sistemas agrícolas no país estavam fortemente “industrializados”, tanto assim que utilizavam mais tratores e fertilização nitrogenada (192 quilos por hectare) que sistemas de produção similares nos Estados Unidos. Em segundo lugar, porque Cuba importava a maior parte dos insumos agrícolas e produtos alimentícios necessários para o seu sustento. Em 1988, por exemplo, importou 100% do tri- go, 90% do feijão, 94% dos fertilizantes, 82% dos agrotóxicos e 97% da ração animal. As fazendas controladas pelo Estado produziam apenas 28% das calorias consumidas pela população. Em terceiro lugar, porque Cuba passou a vender seu açúcar no mercado internacional, deixando de receber, desde então, valores até três vezes superiores pagos por países com os quais mantinha relações políticas privilegiadas. Além disso, com a entrada do açúcar cubano nesse mercado, os preços internacionais caíram drasticamente. Por último, porque o país pouco diversificou sua produção agrícola e sua indústria leve durante as décadas anteriores, o que colocou sua economia numa situação vulnerável.
Em um período de dois a quatro anos, a disponibilidade de agroquímicos foi reduzida em 80%, enquanto a queda de combustíveis fósseis foi de 47% para o diesel e 75% para a gasolina. A importação de alimentos foi reduzida à metade. Como resultado, tanto a produção agrícola como a disponibilidade de alimentos caíram a níveis alarmantes. Em 1993, o país esteve perto de enfrentar uma grave crise alimentar.
Em meados dos anos 80, desenvolveu-se no país alguma consciência a respeito dos impactos negativos das práticas da agricultura industrializada sobre a qualidade dos alimentos e sobre a saúde humana, especial- mente devido aos altos teores de nitrato presentes em alguns alimentos. Outros impactos negativos desse modelo agrícola estavam relacionados à larga escala de desflorestamento, salinização, erosão, compactação e perda da fertilidade dos solos. Os rendimentos das principais culturas de exportação também estavam decaindo. Ao mesmo tempo, a complexa estrutura de pesquisa agrícola não era muito eficiente. Estava cada vez mais evidente que esse modelo agrícola não gerava autonomia ao país e que a dependência de insumos devia ser reduzida. Infelizmente, antes que o país pudesse desenvolver estratégias para sair dessa situação, a crise já havia se instalado.
O ÊXITO DAS ESTRATÉGIAS PARA SUPERAR A CRISE
No período de uma década após o início da crise, a agricultura cubana duplicou sua produção, aumentando em 25% a disponibilidade de calorias e permitindo a manutenção de um programa alimentar consistente e socialmente eqüitativo. Esses resultados foram alcançados como resultado da implementação de políticas estatais, mas também por mudanças provocadas pela absoluta impossibilidade de o país seguir adotando o modelo produtivo anterior. O foco no desenvolvimento e emprego de tecnologias baseadas no conhecimento, nas habilidades humanas e nos recursos locais, em vez daquelas dependentes de insumos importados, esteve entre as principais mudanças implementadas. O novo modelo enfatizava a
diversificação da agricultura e dos mercados; o parcela- mento das grandes propriedades; o aumento da eficiência dos processos pós-colheita; o desenvolvimento de planos regionais de segurança alimentar (permitindo maior acesso às terras); o desenvolvimento de um forte movimento de agricultura urbana; o investimento em pesquisa e em programas de extensão e capacitação agrícola; e a reversão da migração campo-cidade por meio da criação de melhores condições de vida e oportunidades nas áreas rurais. O total dos subsídios estatais para a agricultura caiu drasticamente, com estimativas de queda entre 50 e 90% no triênio 1993-1996.
Apesar do planejamento centralizado, o governo abriu mão de grande parte do controle que exercia sobre a produção e a distribuição de alimentos. Iniciativas e atividades promovidas por grupos locais agora eram incentivadas, tornando a produção e a distribuição de alimentos mais descentralizadas. A produção e a produtividade das principais espécies que compõem a cesta básica dobraram e continuaram a crescer. E o mais importante: a disponibilidade de alimento foi recuperada a níveis aceitáveis no plano nacional. Ao final daquela década, Cuba detinha mais soberania sobre seu sistema alimentar do que em qualquer outro momento de sua história. A adoção desse novo modelo de produção permitiu uma excepcional capacidade de recuperação da agricultura cubana durante a década de 1990.
O contínuo crescimento da produção alimentar, assim como de outros ganhos proporcionados pelo novo modelo agrícola, não estiveram relacionados apenas à utilização de técnicas de produção mais sustentáveis. Muitos outros fatores contribuíram para esses resultados: a diversificação de culturas com o plantio de espécies agrícolas mais nutritivas e resistentes; o aumento da eficiência e da autonomia das propriedades por meio de acordos mais estáveis de uso e gestão das terras; o desenvolvimento de vínculos locais entre produtores e consumidores; o reconhecimento oficial da contribuição da produção da agricultura de base familiar; e o aumento do leque de incentivos públicos à disposição dos produtores de alimentos.
FASES DA TRANSIÇÃO
Ao contrário do que se pensa, até o ano 2000 não houve em Cuba nenhuma política oficial orientada para a transição agroecológica. No entanto, muitas iniciativas isoladas estavam sendo empregadas nesse sentido, como o desenvolvimento de centros de produção de insumos para controle biológico de pragas; unidades de demonstração agroecológica; cursos de capacitação ecológica; cultivos organopônicos urbanos (em canteiros com substratos orgânicos); e a organização de instituições de promoção da agricultura orgânica (Associação Cubana de Agricultura Orgânica e o Grupo de Agricultura Orgânica).
O motor das inovações implementadas nesse período inicial de conversão da agricultura cubana não foi uma mudança deliberada na forma de conceber o processo produtivo. Foi sim o resultado das restrições provocadas pela falta de petróleo e de agroquímicos e da necessidade de alcançar a auto-suficiência alimentar no país. Ao estudar o desenvolvimento da produção agroecológica em Cuba na década de 1990, Funes (2002) identificou que os principais métodos de manejo difundidos se limitavam a “substituir insumos”. Ele se refere a esse período (1990-2000) como “a primeira fase” e a base para a consolidação de processos mais avançados de transição agroecológica que se verificaram posteriormente.
Com efeito, agricultores, grupos e instituições cubanas continuavam operando nesse período segundo as concepções do modelo convencional. Uma minoria superou esse enfoque, ao eliminar qualquer insumo externo e se concentrar na promoção de sistemas produtivos que interagiam de maneira mais equilibrada com a natureza. Havia uma tendência de as instituições governamentais se orientarem mais pelo padrão industrial de produção agrícola, enquanto alguns poucos projetos mais dinâmicos e organizados por agricultores, pesquisadores, grupos de extensão ou ONGs adotavam um enfoque mais ecológico.
Nem todos partiram do mesmo ponto. Alguns grupos, como os ligados ao movimento orgânico, ou os de pesquisadores sobre controle de pragas e doenças, já trabalhavam com base no enfoque agroecológico desde o princípio dos anos 90. Já as antigas fazendas estatais transformadas em cooperativas, implementaram grandes mu- danças em suas práticas na década de 90, ao adotarem algumas técnicas de manejo ecológico. Também houve diferenças no processo de transição de diferentes culturas. O milho, por exemplo, permaneceu recebendo poucos insumos. Já a produção de bananas, deixou de demandar alto uso de insumos químicos para adotar um modelo mais ecológico. Durante esse período, os produtos de exportação prioritários, como a cana-de-açúcar, permaneceram sendo manejados convencionalmente.
DESAFIOS PARA O AUMENTO DE ESCALA DA AGRICULTURA ECOLÓGICA
A experiência cubana evidencia que a falta de agroquímicos e de combustíveis fósseis não levam necessariamente a um emprego massivo de métodos de produção agroecológicos. Mecanismos adicionais de apoio necessitam ser criados para que isso ocorra. Segundo agricultores e profissionais do setor agrícola entrevistados entre 1999 e 2001, uma série de condições seriam necessárias para a generalização da agroecologia no país. Esses fatores podem ser classificados em três grupos: os relacionados à produção do conhecimento agroecológico, os ligados ao acesso a recursos e tecnologias, e aqueles vinculados a questões políticas e sociais.
A necessidade de desenvolver sistemas de produção do conhecimento agroecológico
Quase todos os agricultores entrevistados indicaram que a falta de conhecimento e de capacitação vinha sendo uma das principais limitações para o aumento de escala da aplicação de sistemas de manejo ecológico. A disseminação de conhecimentos sobre agricultura ecológica evitaria a criação de alguns mal-entendidos. A Agroecologia era concebida comumente como uma forma de agricultura que empregava poucos insumos externos e que era voltada para os pobres. Era relacionada assim a uma agricultura de baixos rendimentos, enquanto o emprego de agroquímicos era associado a formas modernas de pra- ticar a agricultura. Essa percepção provocou hesitação do Estado em promover a agricultura ecológica já que seria “anti-revolucionário” implementar uma política que não levasse à maximização produtiva.
Os agricultores que associavam agricultura ecológica à falta dos agroquímicos tinham muitas dúvidas quanto ao futuro. Para eles, parar de usar agroquímicos significaria o aumento da incidência de pragas e doenças, o que resultaria na queda dos rendimentos. Implicaria também a diminuição do tamanho e da qualidade dos produtos. O trabalho aumentaria devido à falta de combustível para os tratores. Os riscos produtivos seriam maiores.
ACREDITAVA-SE TAMBÉM QUE AS PRÁTICAS DE MANEJO ECOLÓGICO SERIAM INAPROPRIADAS PARA PROPRIEDADES DE DIMENSÃO MAIOR.
Os pesquisadores entrevistados tinham percepções muito semelhantes. Para eles, a agricultura ecológica estava associada a baixos rendimentos e à agricultura de subsistência.
Segundo os entrevistados, para que o potencial da Agroecologia fosse compreendido seria necessário evitar denominá-la como agricultura de “baixo uso de insumos” ou “de poucos recursos”. Seria importante também divulgar os resultados de pesquisas sobre o desempenho da agricultura ecológica.
Inicialmente, a disseminação da agroecologia em Cuba se processou da mesma forma que a agricultura industrializada, ou seja, por meio de métodos impostos de cima para baixo, com base na lógica da transferência de tecnologias. Essa abordagem convencional foi eficaz até certo ponto, mas logo mostrou seus limites. Com o tempo, as metodologias também começavam a mudar e um conjunto de novos desafios se apresentaram (ver quadro).
A necessidade de aumentar a disponibilidade e o acesso a recursos e a tecnologias apropriadas
De acordo com os agricultores entrevistados, a falta de insumos necessários para o emprego maciço dos métodos biológicos de controle de pragas e de produção de adubos orgânicos era o segundo principal obstáculo que deveria ser superado para que as práticas de manejo ecológico se disseminassem. A insuficiência de recursos e tecnologias apropriadas era vista como um problema também pelos profissionais de assessoria, que recomendaram aumentos nos investimentos para a produção e o armazenamento de insumos biológicos.
A necessidade de garantir condições políticas e sociais favoráveis
Embora, sob vários aspectos, a reação política à crise do início dos anos 90 tenha favorecido o desenvolvimento da abordagem agroecológica em Cuba, algumas políticas públicas jogaram papel contrário. Entre elas, podemos destacar:
- A legislação ambiental já havia sido implementada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, mas o Ministério da Agricultura ainda não havia internalizado seus preceitos;
- as metas nacionais de aumento dos rendimentos da agricultura no curto prazo confrontavam-se com o objetivo de promover a sustentabilidade no longo prazo;
- os planejamentos de produção realizados pelo Estado indicavam muitas vezes o plantio de espécies que não eram apropriadas às condições ambientais locais. A lógica de “intensificação” produtiva adotada nesses planos estatais em geral não favorecia a utilização de adubos verdes, de consórcios e de pousios nos sistemas. O procedimento centralizado de distribuição de sementes pelo Estado dificultava o desenvolvimento de capacidades locais de estocagem por parte dos próprios agricultores;
- havia pouco incentivo para a produção de alimentos de qualidade. Os principais objetivos das políticas oficiais estavam voltados para baixar custos produtivos e para a produzir grandes quantidades de alimentos que eram distribuídos pelo governo sem serem classificados.
DESENVOLVENDO SISTEMAS DE PRODUÇÃO ECOLÓGICA
Mudanças práticas como as requeridas em um processo de transição agroecológica de abrangência nacional exigem mudanças também nas mentalidades dos diferentes grupos sociais envolvidos. Aqueles que apoiavam a agricultura ecológica em Cuba, aliás, enfatizavam essa necessidade de mudança de pensamento no país para que se pudesse passar do estágio de substituição de insumos para o redesenho dos sistemas segundo o enfoque agroecológico.
O exemplo cubano demonstra que a remoção ou a ausência de agroquímicos (ou do setor privado do agronegócio) não implica necessariamente no desenvolvi- mento de um modelo de produção ecológico. Tal processo de conversão exige uma decisão consciente. A produção ecológica mostrou-se tecnicamente possível e economicamente viável como componente fundamental de uma estratégia voltada para a promoção da segurança alimentar da nação.
Os sucessos obtidos em Cuba, no que se refere à segurança e soberania alimentar e à produtividade agrícola em geral, mostram o que pode ser feito quando há vontade política. Essa mesma disposição política para mudanças deve continuar existindo com o desenvolvimento de políticas públicas mais amplas, voltadas para a promoção da agricultura ecológica. Essa conclusão vem da análise de outro aspecto da transição cubana. Num período de dez anos, o país saiu de uma séria crise de escassez alimentar para uma situação em que mais de um terço da população de Havana está acima do peso, aumentando em muito a freqüência de doenças relacionadas à obesidade. Altos níveis de resíduos de agrotóxicos continuam sendo encontrados nos produtos priorizados pelo Estado para a produção de grande escala.
Se de um lado Cuba tem sido capaz de assegurar alimento para sua população ao combinar métodos ecológicos com os convencionais, por outro, são as implicações mais amplas dessas estratégias que afetam a saúde da nação e do meio ambiente. A degradação do solo continua sendo um grande problema para o setor agrícola, assim como as secas sucessivas, para as quais se exigem cultivos e padrões produtivos mais adaptados e resistentes, além de sistemas de manejo hídrico sustentáveis.
Alguns efeitos positivos produzidos pelas tímidas mudanças em direção a abordagens agroecológicas já começam a aparecer. Os agricultores já percebem alguns benefícios indiretos da redução do uso de agroquímicos sobre o meio ambiente e a saúde. O setor de pesquisa, que foi forçado a conduzir seus trabalhos segundo o enfoque agroecológico, já tem desenvolvido inovações técnicas importantes. O sistema alimentar cubano já começa a se beneficiar com a maior diversidade de alimentos frescos. Outros benefícios da produção agroecológica podem ser explorados no futuro. Entre eles, estão o desenvolvimento de um setor de exportação de alimentos orgânicos e a produção de gêneros de alta qualidade para abastecer o crescente mercado interno de turismo.
Cuba se diferencia por seu modelo centralizado de governo. Muitos podem argumentar que essa condição torna difícil comparar a sua experiência de transição agroecológica com a realidade de outros países. No entanto, em muitos lugares do chamado “mundo livre”, as decisões sobre o desenvolvimento da agricultura e sobre a cadeia de abastecimento alimentar são centralizadas por poucas corporações, o que reduz muito as margens de escolha por parte dos consumidores e dos agricultores.
Uma característica da agricultura moderna é a sua crescente mecanização e uniformização produtiva. Seus sistemas de produção e as longas cadeias produtivas a eles associados são altamente dependentes do uso de combustíveis fósseis. Cuba tem caminhado na direção contrária da tendência mundial. Seus sistemas de produção e consumo são cada vez mais descentralizados e menos mecanizados, permitindo o aumento dos níveis de autonomia, diversidade e complexidade. Quando a temi- da crise global de fornecimento de combustível chegar, o exemplo cubano poderá ser inspirador de estratégias de transição para padrões produtivos mais sustentáveis.
Julia Wright:
International Programme, Henry Doubleday Research Association
[email protected]
Referências Bibliográficas:
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Baixe o artigo completo:
Revista V3N3 – A transição agroecológica na agricultura cubana