Rosa Peralta entrevista Naidson Batista
Nesta edição de Agriculturas que aborda a temática da água, a experiência da articulação do semiárido (ASA) não poderia faltar. Na entrevista a seguir, Naidson Batista, da coordenação executiva da asa, como o acesso à água de qualidade tem contribuído para melhorar a qualidade de vida das famílias agricultoras da região.
EMBORA O SEMIÁRIDO ENFRENTE HOJE A MAIS LONGA SECA DOS ÚLTIMOS 30 ANOS, ELA APARENTEMENTE NÃO TEM PROVOCADO OS GRANDES MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS DE OUTRAS ÉPOCAS. O QUE MUDOU NO CENÁRIO DA REGIÃO?
Tudo está fundamentado no fato de que não existe falta de água crônica no semiárido. Existem regiões em que chove 200 mm por ano, mas há locais em que chega a chover 700, 800 mm. Assim, o que existia era uma falta de armazenamento, pois toda a água das chuvas era desperdiçada ou concentrada nos grandes açudes que estavam dominados pelo latifúndio e pelas elites. Historicamente, quando os açudes ficavam cheios, eram cercados para que as pessoas não tivessem acesso a eles. O agricultor familiar, os indígenas e os ribeirinhos podiam ver a água, mas não tinham acesso a ela. A água, portanto, existia, o que faltava era armazenar e distribuir de forma democrática.
Com o processo que vem sendo construído desde que a ASA foi criada, notadamente por meio do Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), a perspectiva voltou-se para o abastecimento familiar. A cisterna tem que estar perto da casa da família, para que ela capte a água do telhado. E mesmo que essa água se destine apenas ao consumo humano (beber e cozinhar), não para animais, nem cultivos, assistimos a um aumento significativo da capacidade de resiliência das famílias, que não precisam mais migrar, não saem mais do seu chão.
COMO AS EXPERIÊNCIAS DE MAIOR ACESSO À ÁGUA TÊM SE REFLETIDO EM TERMOS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL DAS FAMÍLIAS?
Primeiramente, é preciso encarar a água como um alimento, pois é o elemento básico para qualquer pessoa sobreviver. E qual a qualidade da água que as pessoas tinham no semiárido? Água barrenta, suja, utilizada tanto para o banho como para os animais. Era uma água poluída, mas não havia outra. As comunidades não tinham nenhuma iniciativa no tratamento da água. Havia até quem já captasse, mas como purifico? E o P1MC supera essa questão, pois aborda como tornar uma água poluída em uma água pura, como limpar o telhado, aponta que não se deve captar a primeira água da chuva. Com isso, houve uma diminuição significativa de doenças infecciosas e da mortalidade infantil, que eram diretamente relacionadas ao uso inadequado da água. Além disso, como é utilizada para beber e cozinhar, não há como dissociar da dimensão da segurança alimentar e nutricional.
É preciso também considerar o tempo que antes era perdido buscando água nos reservatórios distantes. Hoje, mesmo contando apenas com a cisterna destinada exclusivamente ao consumo humano, algumas famílias puderam passar a se dedicar a produzir alimentos, embora isso ainda não seja um processo sistemático.
Finalmente, há o fato de que muitas famílias já estão tendo acesso ao Programa Uma Terra Duas águas (P1+2), que consiste na entrega de uma segunda cisterna destinada à produção (seja para irrigação dos plantios ou para dar de beber aos animais). Isso foi possível porque já estamos alcançando a meta de 1 milhão de cisternas de placa, se somarmos as construídas pela ASA, pelos consórcios e pelos estados.
O QUE FOI PRECISO PARA IMPULSIONAR ESSA ESTRATÉGIA DE ARMAZENAMENTO E DISTRIBUIÇÃO DEMOCRÁTICA DA ÁGUA?
Em primeiro lugar, foi necessária a mudança do foco das organizações sociais que atuam na região. Embora já procurássemos angariar água, para que seu acesso fosse democratizado, atuávamos em cima de projetos, e não de políticas.
Em 1999, com COP III, demos um passo decisivo ao criar a ASA. Começamos a nos perguntar de que forma poderíamos interferir na construção de uma politica capaz de mudar efetivamente o quadro de falta d’água. E a resposta que demos a nós mesmos foi de que primeiro precisávamos sistematizar nossa prática: saber o que estávamos fazendo, qual tecnologia estávamos utilizando, qual a metodologia, destacando princípios, modalidades, concepção. Metodologia não é um pacote, mas uma concepção de trabalho. No processo metodológico, precisávamos apontar em que partes do semiárido poderíamos aplicar a proposta e qual o custo disso. Na sistematização, buscamos identificar as mais diversas experiências de construção de cisternas espalhadas pela região.
A partir desse trabalho, a ASA mostrou que havia água suficiente, e isso foi o estalo que precisávamos para entender que o acesso só seria democratizado com o armazenamento da água. Isso deu início às ações de promoção das cisternas enquanto política de convivência com o semiárido.
QUAIS FORAM OS CAMINHOS PARA A CONSOLIDAÇÃO DESSA POLÍTICA DE CONVIVÊNCIA?
De posse dessa identificação e descrição das experiências de sucesso, partimos para transformá-las em política, formatando estratégias de convivência com o semiárido. Nesse segundo momento, portanto, saímos para buscar apoio para implementar essa política que estávamos desenhando.
Procuramos então a comissão de transição dos governos FHC e Lula, mas também buscamos outros espaços onde se faz política. Privilegiamos os conselhos, em nível federal, estadual, municipal, como Consea, Condraf, Conselho de Economia Solidária, Conselho de Mulheres. Passamos a participar das conferências, também em todas as esferas, da federal à municipal.
Chegamos a firmar em 2000 e 2001 um convênio com a Agência Nacional de água (ANA) e conseguimos 13 ou 14 mil cisternas. Mas foi apenas depois que Lula assumiu que começamos a trabalhar as cisternas em escala, não mais em uma dimensão experimental. Isso começa a mudar o cenário de vulnerabilidade, porque, ao ganhar escala, percebemos uma possibilidade concreta de solucionar questões crônicas do semiárido.
Conseguimos muitos parceiros: a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), o extinto Ministério da Segurança Alimentar (Mesa), diversos sindicatos de São Paulo, entidades da cooperação internacional, que foram ampliando a proposta das cisternas como estratégia de estoque e de distribuição democrática da água.
QUAL O GRAU DE LEGITIMIDADE E INCIDÊNCIA QUE A ASA TEM CONQUISTADO NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS VOLTADAS PARA O SEMIÁRIDO?
Essa forma de intervenção foi tão eficaz que o P1MC e o P1+2 constam nos documentos de referência desde a primeira Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Dessa forma, deixam de ser apenas da ASA, o conselho passa a assumir como uma política sua. E isso para nós não é ruim, porque estamos numa dimensão maior, em que a política sai de nossa mão, de experiências pequenas, isoladas, e vai para espaços com possibilidade de se universalizar. Aconteceu com o P1MC e queremos que aconteça com o P1+2 e o programa de sementes que estamos dando início.
É possível perceber também quando analisamos o processo metodológico do Pro- grama Mais Cisternas, do Governo Federal. Essa política de cisternas está toda baseada no processo construído pela ASA, que inclui a formação das famílias, a participação no preparo do terreno, a doação de mão de obra de ajudante de pedreiro, a hospedagem dos pedreiros, a construção nos mesmos moldes técnicos da ASA. Até a lei que especifica os passos da construção, os custos do material, tudo está baseado no processo da ASA. Quando um governo de estado fecha um convênio com o MDS, a maior parte das organizações sociais contratadas é ligada à ASA. E isso é um grande ganho político para a ASA: de um lado, a ASA constrói, por outro, nossas organizações concorrem e ganham as licitações quando há cisternas construídas por consórcios ou pelos estados.
QUE PRÁTICAS TÊM SE DESTACADO NESSE CONTEXTO DE MUDANÇAS NA VIDA DAS PESSOAS DA REGIÃO?
Em nossa proposta metodológica, é imprescindível que uma família influencie outra. Isso é até um elemento de disputa política, pois, na proposta metodológica dos financiadores, o foco está no financiamento de um equipamento material. Já para nós, o equipamento mais importante a financiar é o intercâmbio, para que os agricultores aprendam uns com os outros como utilizar os resultados, como eles podem crescer. Então colocamos como componente obrigatório no projeto os intercâmbios, que podem ser nas áreas de experiência, regionais interestaduais, estaduais. Há até um encontro interestadual de agricultores e agricultoras-experimentadores. Assim, a pessoa, antes ou logo após ter recebido a tecnologia, tem que se contaminar pelo processo, ela vai visitar a propriedade de outra pessoa e bebe dessa experiência, conhece as dificuldades, as formas de superação, as inovações, os caminhos. Ela pode ver de perto como a família que recebeu a visita vai desdobrando e ampliando a experiência. Tem família que recebeu um barreiro e hoje tem dois. Ao ver isso, ela conclui que a política não está no campo da conversa fiada, mas no campo real, da vida material, em que as pessoas captam a água e passam a ter acesso a uma alimentação saudável, podendo ainda vender a sua produção.
E é por isso que os intercâmbios são tão obrigatórios quanto as etapas de escavação, de construção. A família não pode receber o equipamento se ela não se dispõe a intercambiar, a aprender, mas isso não ocorre no semiárido. Em geral, a família fica num grau de emotividade, de envolvimento tão grande, que basta apenas criar a ocasião para que ela possa fazer isso.
COMO A MAIOR SEGURANÇA HÍDRICA E A ARTICULAÇÃO SOCIAL TÊM ALTERADO AS RELAÇÕES DE PODER HISTORICAMENTE MARCADAS PELA SUBORDINAÇÃO DA POPULAÇÃO E PELO CLIENTELISMO?
Ainda temos muito que andar, mas podemos afirmar que as pessoas não só deixaram de migrar, como também não vendem nem trocam mais seu voto, só porque agora têm água. O voto no semiárido sempre foi o voto de cabresto. Mas as famílias hoje têm água e não precisam vender seu voto, nem se submeter a nenhum coronel ou político para manter a sua vida física. Há um senhor que afirmou: Eu hoje sou livre porque não preciso pedir água pra ninguém e não preciso votar em nenhum político para garantir a água para minha esposa e meus filhos. Não é mais preciso migrar. E certamente os antigos donos da água não ficam nem um pouco felizes com essa nova situação.
Embora não tenhamos uma pesquisa sobre o assunto, temos a vivência, a conversa. Sabemos, inclusive, que há vários níveis de subordinação, da mulher, por exemplo. Ela era uma escrava, porque, na divisão do trabalho, em casa, na família, ela é quem buscava a água. Com a falta da água, ela não tinha tempo para outra coisa; numa estiagem não fazia mais nada além de buscar água. Ela não podia frequentar reuniões, associações, espaços de organização e de atuação política.
E quando a pessoa não ocupa esses espaços, ela fica desinformada, não busca seus direitos, porque está num patamar de informação e formação baixo. Com a chegada das cisternas, as mulheres, de uma hora para outra, passaram a ter um tempo disponível. Hoje, cerca de um milhão de mulheres deixam de carregar água na cabeça e dedicam seu tempo a estudar, produzir, trabalhar, frequentar suas organizações, seus espaços de articulação popular, cuidar melhor da família.
Elas também puderam estabelecer uma relação diferente dentro do núcleo familiar, participando tanto de organizações mistas como de mulheres. As escravas da lata d’água hoje são fortes lideranças, atuam nos movimentos de mulheres, estão presentes nos sindicatos, nos movimentos de mudanças de qualidade de vida. Podem fazer política e, finalmente, ter uma vida mais digna, mais humana. Tudo isso deve ser computado no acesso à água.
E DE QUE FORMA AS AÇÕES DA ASA ESTÃO CONTRIBUINDO PARA A MUDANÇA NAS RELAÇÕES DE GÊNERO NA REGIÃO?
A ASA centra o processo das cisternas nas mulheres, pode cadastrar a família, mas em geral cadastra a mulher, que foi quem sempre cuidou da água. Nós avaliamos que ela não deve deixar de cuidar, mas deve parar de carregar na cabeça. A gente até reforça que é dever de toda a família cuidar da cisterna, limpar, valorizar, evitar que os animais sujem, mas sabemos que é a mulher que assume o papel determinante.
QUAL TEM SIDO O PAPEL DELAS NA CONSTRUÇÃO DESSE MODELO DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO?
O papel delas é tão significativo que, em geral, nos intercâmbios, quem apresenta o processo, é a mulher. O protagonismo é delas. Às vezes o homem fica como mero expectador e às vezes conta a experiência juntamente com ela. A mulher passou a ser uma pessoa que sistematiza a experiência, tem ela publicada, recebe visitas, vai a encontros, até internacionais, sendo que antes grande parte delas não saía do arredor de casa. São elas que lutam para que as cisternas cheguem mais rápido a suas comunidades. As mulheres mapeiam quem não foi contemplado pelo P1MC ou P1+2, levam as demandas para as comissões, para os consórcios. Infelizmente, ainda não aparecem suficientemente nos relatórios, nos eventos ou publicações, mas o poder, antes abafado, de se relacionar, de mobilizar, de lutar é impressionante.
Com a chegada da segunda água do P1+2, a presença da mulher na produção se mostra ainda mais forte, pois houve a possibilidade de intensificar o arredor de casa, os plantios de hortas, fruteiras, o que costuma ser tocado por ela.
QUAIS OS PRÓXIMOS PASSOS NESSA CAMINHADA?
A ASA segue na estrada. Nós não nos colocamos como uma organização que vai solucionar a falta d´água. Queremos políticas de convivência com o semiárido, queremos que as famílias tenham condições e sejam capazes de armazenar água para o consumo humano.
Mas há todo um conjunto de outras ações de convivência com o semiárido. A ASA começou com o acesso à água para consumo, depois para a produção. Para essa segunda etapa do P1+2, procuramos os mesmos parceiros para que não seja um projeto, mas sim uma política. Até o momento implantamos entre 100 mil e 115 mil infraestruturas para captação da segunda água, aquela destinada à produção.
Hoje já estamos abrindo o leque para ter água nas escolas e, para o armazenamento das sementes das famílias. Há 640 bancos coletivos de sementes em todo o semiárido. Esse estoque, mapeamento e resgate das sementes crioulas é um componente fundamental na política de convivência com o semiárido. Outro elemento é que as famílias estoquem alimentos, como fubá, milho, feijão, tanto para consumo humano como para as criações, durante todo o ano e, principalmente, para épocas de maior estiagem.
É essencial também o uso de espécies vegetais e animais adequadas às condições locais, pois, se continuar com o criatório extensivo de animais, por exemplo, vamos destruir o restante de caatinga. E o que queremos é a revalorização e o renascer da caatinga.
EM SUA OPINIÃO, QUAIS OS MAIORES DESAFIOS PARA ESSE MOVIMENTO DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO?
O principal desafio é o aceso à terra, sobretudo pelas comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, de fundo de pasto. Se não tivermos garantido o acesso e a permanência das comunidades nessas terras, essas pessoas vão migrar, pois elas precisam de terra numa dimensão mais ampla. Uma comunidade tradicional, em cinco hectares, não consegue fazer nada, pois o uso da terra é comum e coletivo. O acesso à terra no semiárido, portanto, deve ser garantido a todos, mas em proporções variadas. Há locais em que são necessários 400 hectares e locais que precisam de muito menos, mas é preciso terra suficiente para comportar as tecnologias de captação, de criação de animais.
Outro problema é que percebemos que a continuidade da política que há 10 anos estamos construindo hoje está ameaçada. Temos visto a diminuição das tecnologias do P1MC, o governo também reduziu o P1+2, o que é um recuo inaceitável. O ajuste fiscal cortou em parte esses programas. Assim, a perspectiva é não atingir nem metade da meta de implantação de tecnologias em 2015 e, provavelmente, a perspectiva é ainda pior em 2016. O ajuste fiscal está cortando dos mais pobres, dos excluídos, está afetando as políticas sociais, faz com que os direitos comecem a refluir, comprometendo a consolidação da convivência com o semiárido.
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Revista V12N3 – Acesso à água evita migrações e quebra histórico de subordinação no semiárido