Daniel Moss
Numa história de colaboração entre o meio urbano e o rural, encontramos a chave para explicar como o serviço público de água da cidade de nova York tem conseguido oferecer aos seus nove milhões de usuários uma fonte de água pura. Os produtores de leite do norte do estado – que vivem a mais de 150 km de distância da gigante metrópole – tornaram-se os guardiões das bacias hidrográficas, trabalhando de mãos dadas com seus vizinhos urbanos. Como essa inusitada parceria se estabeleceu, já que as relações entre a cidade e o campo são, na maioria das vezes, assimétricas?
Começando na década de 1830, com o aumento exponencial da população urbana, lideranças de Nova York se dirigiram para o norte e o oeste em busca de ambientes rurais que pudessem fornecer água pura a preços acessíveis. Construíram uma série de reservatórios ligados a uma maravilha da engenharia – um tubo de concreto pelo qual um carro inteiro poderia passar, conduzindo milhões de litros de água por segundo apenas pela força da gravidade. O sistema de abastecimento hídrico causava inveja a cidades em todo o mundo que lutavam contra doenças, como a cólera, e buscavam superar os problemas da escassez e da poluição da água.
No início do século XX, as fontes de água em Nova York já não eram tão puras. E, à medida que a agricultura industrializada começou a comprometer a vitalidade econômica dos estabelecimentos agrícolas, a paisagem mudou drasticamente. Os agricultores da região de Catskill, localizada a montante da cidade, buscando desesperadamente manter suas atividades econômicas, seguiram o caminho da modernização das operações agrícolas. O uso de fertilizantes químicos aumentou, os rebanhos leiteiros foram se concentrando, a erosão se acentuou, e patógenos surgiram nas fontes de água que abasteciam Nova York. De um lado, os habitantes da cidade começaram a ocupar os subúrbios e fixar segundas moradias próximas à bacia; de outro, os agricultores passaram a vender lotes cobertos de florestas que antes funcionavam como verdadeiros filtros naturais.
Ao final da década de 1980, especialistas em saúde pública e a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA, na sigla em inglês) determinaram que a cidade deveria aumentar o tratamento de sua água potável. Desde então, os órgãos reguladores começaram a fazer pressão sobre as administrações do município. Até esse momento, a qualidade da água que chegava à cidade era tão boa, que o tratamento era relativamente leve. Os custos de construção de novas instalações de tratamento foram estimados em mais de US$ 4 bilhões. Além disso, os custos anuais para operação dessas instalações passariam a ser de US$ 200 milhões, o que faria com que o custo da água na cidade Nova York dobrasse, gerando impactos pesados sobre o orçamento das famílias de baixa renda.
DA INFRAESTRUTURA CINZA À INFRAESTRUTURA VERDE
Momentos de transição de gestão podem ser oportunidades para início de grandes mudanças. No começo dos anos 1990, o então prefeito de Nova York, David Dinkins, nomeou Al Appleton como Comissário do Departamento de Proteção Ambiental e como diretor do Sistema de água e Esgoto da cidade. Logo ao assumir seus cargos, Appleton se deparou com uma encruzilhada inusitada. Ele poderia dar a má notícia a uma administração economicamente debilitada de que era necessário investir em uma nova infraestrutura cinza para tratar a água ou poderia propor uma alternativa verde, ou seja, o restabelecimento da capacidade de filtragem natural realizada pelos ecossistemas. Ele sabia que essa segunda opção seria como nadar contra a corrente já que a mentalidade dominante da indústria americana de tratamento água e dos órgãos reguladores se chocava frontalmente com estilos de gestão pública orientados por perspectivas socioambientais.
Para a equipe de Appleton, fazia pouco sentido permitir que investimentos dispendiosos fossem feitos para atender aos padrões de qualidade da água do EPA enquanto a pureza da água potável de Catskill continuava se deteriorando. Em poucas palavras, a filosofia que norteava a equipe era a de que um ambiente saudável produz água de boa qualidade. Para tanto, três passos foram seguidos:
1. Identificar os focos de poluição;
2. Convencer políticos, reguladores e engenheiros de que a opção mais inteligente e econômica para Nova York seria investir em uma infraestrutura verde;
3. Exigir o cumprimento das regulamentações ambientais existentes.
DA REGULAMENTAÇÃO À COOPERAÇÃO
Como mais de dois terços das terras nas áreas da bacia hidrográfica eram priva- das, a cidade não poderia vencer a batalha contra a contaminação apenas cercando as terras públicas. Por essa razão, a administração da cidade tomou a iniciativa de aplicar rigorosamente a regulamentação contra a poluição gerada pelo escoa- mento de dejetos de propriedades particulares. Pesquisadores identificaram que uma das principais fontes de poluição era o fluxo de esterco de gado para os riachos. Multas passaram a ser aplicadas com o intuito de reduzir o problema. Essa abordagem mais severa de proteção ambiental gerou muitas tensões com os agricultores que alegavam que, sem terem sido previamente adverti- dos, tinham suas atividades econômicas comprometidas pelas pesadas multas. Por meio de uma série de reuniões informais e amigáveis com a comunidade, Appleton e sua equipe foram duramente questionados. Para os agricultores que lutavam para sobreviver em um ambiente econômico hostil, a regulação da qualidade da água era uma postura arbitrária de setores urbanos que não entendem a economia rural. Reconhecendo o equívoco em sua abordagem inicial para enfrentar o problema, a prefeitura decidiu repensar suas estratégias.
A partir daí o Departamento de Agricultura do estado de Nova York foi acionado para o estabelecimento de um processo colaborativo, de mais larga duração. As associações de agricultores da bacia hidrográfica eram fortes, e o Departamento de Agricultura incentivou a administração da cidade a trabalhar de forma cooperativa com os agricultores. Assim, um processo que se iniciou como um exemplo a mais de choque de posições entre interesses das populações urbanas e rurais, tornou-se uma experiência bem sucedida de negociação baseada em conciliação de interesses. Enquanto a cidade tinha interesse na água limpa a um preço acessível, os agricultores tinham interesse em assegurar a sustentabilidade de seus modos de vida. O objetivo a partir daí passou a ser a implantação de soluções que atendessem os interesses de ambas as partes.
Se vocês não querem imposições da prefeitura, disse Appleton aos agricultores, elaborem um programa que atenda tanto às suas quanto às nossas necessidades. Não queremos administrar uma agência reguladora; queremos apenas água limpa. Se o seu programa conseguir isso, vamos abraçar essa causa. Desde então, transcorreram-se 18 meses de idas e vindas, de momentos de tensão, de intensa negociação entre a cidade e a comunidade rural de Catskill. No final, foi selado um acordo inovador e de grande alcance.
AGRICULTURA A SERVIÇO DA CONSERVAÇÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA
Com o apoio da administração da cidade, os agricultores de Catskill formaram o Conselho da Bacia Hidrográfica e criaram um programa chamado Planejamento Integral das Propriedades Agrícolas (em tradução livre), que incorpora a proteção ambiental na estratégia de gestão de cada estabelecimento rural. Os agricultores ligados ao programa aderem a um conjunto de princípios de boas práticas de manejo visando mitigar a poluição das águas. Em vez de uma abordagem generalizante determinando práticas específicas, um plano de controle de poluição foi desenvolvido em cada estabelecimento rural envolvido no programa. Esses planos eram elaborados pelos próprios agricultores com o apoio técnico de assessores do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Muitas vezes, esses planos reduziam a intensidade de tarefas penosas, como a coleta do estrume e, ajudaram a tornar mais rentáveis as atividades do estabelecimento. Medidas de redução da poluição seriam 100% financiadas pelo órgão de regulação da água da cidade de Nova York – que captaria os recursos por meio das contas de água dos consumidores urbanos.
Restavam ainda obstáculos significativos a superar. A comunidade rural insistiu em que a participação dos agricultores deveria ser voluntária – uma exigência de difícil aceitação pela prefeitura. A questão colocada pelos administradores da cidade era: poderia um programa voluntário fornecer água limpa? Por fim, a prefeitura cedeu, sob a condição de que houvesse uma participação substancial dos agricultores. Nenhum agricultor individualmente seria obrigado a participar, mas o Conselho Agrícola da Bacia Hidrográfica teria que garantir que pelo menos 85% de todos os agricultores da área de abrangência da bacia aderissem ao programa em um prazo de cinco anos. Se o conselho falhasse, a participação se tornaria obrigatória ou sanções seriam aplicadas. Outro ponto de discórdia dizia respeito à necessidade ou não de imposição de regulamentação sobre a qualidade da água sobre os agricultores. A administração municipal concordou que os agricultores que participassem de boa fé do programa estariam isentos dessa regulamentação, salvo em caso de violações flagrantes.
Após cinco anos, 93% dos agricultores de Catskill haviam aderido ao programa, com resultados espetaculares:
•Houve 75 a 80% de redução da carga de poluição dos cursos d´água gerada nos estabelecimentos rurais;
• A qualidade da água potável da cidade foi restaurada sem que tenha sido necessário o gasto de bilhões de dólares em mecanismos sofisticados de tratamento de água;
• Água limpa foi gerada a um preço acessível. O programa se autofinanciou por meio da economia de custos, além de contribuir para estabilizar as taxas de água e esgoto pagas pelos moradores da cidade, o que beneficiou, sobretudo, às famílias de baixa renda.
O fato de a conservação da bacia hidrográfica estar embutida nas contas dos consumi- dores possibilitou a constituição de um fundo permanente de financiamento da conservação da qualidade da água, um mecanismo institucional muito mais estável e vigoroso do que os convencionais fundos de bacias hidrográficas.
O programa ganhou grande aceitação pública – e, sem dúvida, também da flora e da fauna. Além dos efeitos diretos, contribuiu para angariar apoio político para alavancar outras estratégias de proteção da bacia hidrográfica, como a restauração de matas ciliares e a proteção ambiental em terras públicas. Algumas dessas áreas públicas foram abertas para uso recreativo.
O Conselho Agrícola da Bacia Hidrográfica lançou uma linha de produtos agrícolas com o selo Pure Catskills (Catskills Puro, em tradução livre), aproximando consumidores urbanos e produtores rurais. Há uma gama de produtos, incluindo carne de gado criado em pastos, vegetais e madeira. Para receber o selo, independente de ser orgânico ou não, todos esses gêneros devem ser produzidos de forma coerente com o objetivo de conservar a bacia hidrográfica. A preocupação com a saúde da bacia tornou-se tão grande que, em 2014, a legislatura de Nova York proibiu a exploração do xisto betuminoso na bacia (com a campanha contra o fraturamento hidráulico ), devido, em grande parte, ao fato de consumidores urbanos manifesta- rem explicitamente que querem proteger sua fonte de água.
Em uma escala mais ampla, o programa de Catskill inspirou programas de proteção de bacias hidrográficas e de agricultura sustentável em todo o mundo. Ele catalisou o interesse da indústria de água dos EUA em estratégias não convencionais de conservação, incluindo investimentos em infraestruturas verdes, em vez de, ou em conjunto com, infraestruturas cinzas. Esse caso de sucesso é inspirador de programas de pagamento de serviços ambientais ou ecossistêmicos que se disseminam em todo o mundo.
Contraditoriamente, a característica fundamental do sucesso de Nova York muitas vezes não tem sido considerada na concepção de programas baseados na ideia de pagamento de serviços ambientais. Muitos desses programas pagam os agricultores um valor anual por hectare para que eles deixem de cultivar suas áreas, reservando-as para a vegetação nativa. Tal abordagem é fundamentalmente equivocada porque acentua a falsa contradição entre os objetivos de produzir alimentos e de conservar a natureza, especialmente nos estabelecimentos rurais de pequena escala.
FATORES DE SUCESSO
Enquanto o programa de Nova York ofereceu aos agricultores instrumentos estimuladores para a adoção de práticas de conservação ambiental (tanto por meio de paga- mentos diretos como de incentivos fiscais), a verdadeira inovação prática e filosófica dessa experiência não consistia em transformar agricultores em preservacionistas, mas sim em apoiá-los a fazer o que sabem fazer melhor, ou seja, produzir alimentos. A cidade de Nova York precisava de um entorno com uma paisagem economicamente vibrante e ambientalmente saudável. Ao mesmo tempo em que a sustentabilidade ambiental é necessária para atender às demandas de água com qualidade na cidade, as iniciativas implantadas contribuíram para a melhoria da renda dos estabelecimentos familiares.
O programa não é um arranjo temporário. O apoio aos agricultores do norte do estado, através do Conselho Agrícola da Bacia Hidrográfica, é um dos principais componentes do orçamento anual do sistema de água da cidade de Nova York. De acordo com Al Appleton, o programa capta a renda ambiental proveniente dos serviços que os ecossistemas rurais fornecem às áreas urbanas e, em seguida, devolve essa renda para as paisagens e as comunidades rurais que os prestam, criando um ciclo justo de investimentos econômicos e ecológicos entre áreas urbanas e rurais, e favorecendo um futuro mais sus- tentável para ambas as partes. O programa demonstra que os serviços públicos de abastecimento de água podem ir além de soluções tradicionais, criando sistemas inovadores de governança e gestão dos recursos hídricos com o envolvimento das comunidades rurais. O Conselho Agrícola da Bacia Hidrográfica é liderado pelos agricultores que decidem como investir os fundos arrecadados; o órgão regula- dor da água da cidade de Nova York integra o conselho diretor, tendo direito a apenas um voto.
A relevância de um programa de pagamento por serviços ambientais a estabelecimentos rurais visando ao abastecimento de água e para a preservação de paisagens rurais não pode ser superestimada. Diariamente, 100 mil pessoas migram para as cidades em todo o mundo. A maioria delas não contará com sistemas de distribuição de água potável. Simultaneamente, o ritmo das transformações das paisagens rurais é mais rápido do que em qualquer época da história. Programas financiados pelos moradores das cidades, como o de Nova York, podem contribuir para estabilizar o uso e a gestão da terra em áreas rurais ao criar mecanismos de apoio aos agricultores que produzem de forma sustentável. Na era das mudanças climáticas, o exemplo de Nova York também oferece importantes lições para a construção da resiliência. O abastecimento de água e as bacias hidrográficas do entorno da cidade não foram compro- metidos pelo poderoso furacão Sandy, em 2012.
PARA ALÉM DE NOVA YORK
Em todo o mundo, o exemplo da cidade de Nova York tem atraído o interesse de gestores de água, governos municipais, ONGs e comunidades rurais, apesar das evidentes diferenças e desafios contextuais para sua adequação. Nos países do Sul, as taxas de água por si sós não são capazes de cobrir o custo total de um programa de recuperação de bacias hidrográficas, uma vez que a maioria dos consumidores é de baixa renda e não pode arcar com um aumento em suas contas. Enfraquecidos por implacáveis cortes nos gastos públicos, os serviços públicos de água tendem a enfrentar problemas financeiros, sendo muitas vezes incapazes até mesmo de construir instalações adequadas de tratamento de esgoto. Ministérios da Agricultura, de Minas e Energia, da Saúde, entre outros, também experimentam dificuldades financeiras e, diante disso, relutam em compartilhar seus orçamentos para a recuperação de bacias hidrográficas.
Da mesma forma, são consideráveis os desafios políticos para superar a fragmentação e a contradição entre leis, jurisdições e programas públicos ligados ao uso da água e da terra. Organizações da sociedade civil terão que firmar parcerias com órgãos governamentais para fortalecer sua capacidade de atuar na gestão do uso da água e do território. Os bancos de desenvolvimento terão de conceder financiamento a juros baixos para a implantação de infraestruturas verdes.
Apesar dessas dificuldades, o espírito da inovação é elevado. Em um recente congresso da Associação Latino-Americana de Operadores de água e Saneamento, o caso de Nova York –juntamente com exemplos latino-americanos – configurou- se um terreno fértil para um rico debate. Entre esses exemplos, estavam os dos sistemas públicos de água de Bogotá e de quito, que adquiriram e preservaram terras de grande relevância nos Andes, local de origem de suas fontes de água. Quito detém um fundo fiduciário para a restauração de bacias hidrográficas composto, principalmente, por contribuições anuais da companhia municipal de água e por contribuições privadas. Como exemplo oposto, a cidade de Lima conta com um pequeno fundo de bacias hidrográficas, de financiamento privado, cujos recursos não são suficientes sequer para arcar com os danos causados pela poluição gerada pela vigorosa indústria de mineração a montante.
Os serviços públicos de água não estão empenhados na limpeza de bacias hidrográficas, e a maioria prefere ficar longe de problemas a montante, optando por tratar quimicamente a água poluí- da. Aqueles que se envolvem sabem que não podem resolver os problemas sozinhos. As estratégias podem variar; a companhia municipal de água de Des Moines, capital do estado norte-americano de Iowa, recentemente processou agricultores, alegando que o excessivo escoamento de fertilizantes aumentou os custos de tratamento da água de forma insustentável. Ainda há muito o que aprender. A Aliança de Operadores de água da América Latina e Caribe, filiada ao Programa das Nações Unidas para Habitação (ONU-Habitat), apoia uma rede de aprendizagem entre os seus filiados interessados em colaborar com as comunidades rurais para a restauração de bacias hidrográficas.
A visão otimista é que melhores práticas serão desenvolvidas a partir de exemplos instrutivos. O caso de Nova York demonstra que uma forma integrada de planejamento urbano e rural pode trazer benefícios ambientais e econômicos para ambas as paisagens. Esses laços estão se fortalecendo cada vez mais dentro dos movimentos que lutam por sistemas alimentares locais e agroecológicos. O adesivo no vidro traseiro do carro com o dizer Sem agricultores, não há comida expressa o reconhecimento da interdependência e da cooperação entre o meio urbano e o rural. A relação é ainda mais profunda e, na verdade, chega ao fundo dos aquíferos. Uma agricultura saudável produz água saudável. Aliás, eis uma sugestão de alteração da mensagem do adesivo: Sem agricultores, não há água.
Daniel Moss
Coordenador do Programa Our Water Commons
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Revista V12N3 – Agricultura garante a qualidade da água nas torneiras da cidade