Sarah-Lan Mathez-Stiefel, Cecilia Gianella Malca e Stephan Rist
Nos Andes do Peru, o alto nível de agrobiodiversidade é resultado de uma longa história de coevolução das populações e seu ambiente, representando um grande potencial para o desenvolvimento sustentável, tanto em termos locais como em nível regional e nacional. No entanto, em contraste com tamanha riqueza biológica, grande parte dos povos nativos andinos vive em condições socioeconômicas e políticas precárias, o que tem ocasionado, nas últimas décadas, processos massivos de migração dos jovens rumo aos centros urbanos e às terras baixas da Amazônia.
Para fazer frente a essa situação, e com o objetivo de criar novas opções de subsistência para os agricultores familiares andinos, diversas iniciativas econômicas e produtivas têm sido desenvolvidas. Entretanto, esses projetos geralmente caem na armadilha de serem orientados por um enfoque unilateral. Sendo assim, ainda que sejam voltados para atender questões específicas, como, por exemplo, gerar recursos monetários, eles criam uma série de novos problemas e contradições em relação às estratégias de vida dos agricultores andinos.
Ciente dessas contradições, o programa regional BioAndes optou por desenvolver iniciativas com um enfoque biocultural, partindo do pressuposto de que, se as mudanças socioculturais são o principal elemento causador da degradação da biodiversidade, é possível que sejam também uma fonte fundamental para sua conservação. Nesse sentido, o programa BioAndes reconhece a interdependência entre a diversidade cultural e biológica e a necessidade de articular o fomento à biodiversidade com processos de fortalecimento cultural.
Ao associar os conhecimentos científicos e populares, os principais instrumentos utilizados pela BioAndes para desenvolver tais iniciativas são: o diálogo intercultural, a aprendizagem social e o desenvolvimento de habilidades por meio da pesquisa-ação transdisciplinar.
Dessa forma, as comunidades nativas, os governos locais, os profissionais de desenvolvimento e os pesquisadores estão se esforçando para criar formas inovadoras de valorização econômica, cultural e política da agrobiodiversidade andina.
PROGRAMA BIOANDES NO PERU
No Peru, o programa BioAndes está sendo implementa- do na província de San Marcos, na serra norte (Cajamarca), e no distrito de Pitumarca, na serra sul (Cuzco).
A província de San Marcos abrange vários níveis de altitude, que vão de 2.250 a 4.000 metros, o que permite o cultivo de grande variedade de plantas, desde frutíferas e milho nas terras mais baixas até cereais e tubérculos andinos nas mais altas. Sua população é mestiça e nutre um forte senti- mento de identidade local.
O distrito de Pitumarca está situado entre 3.600 e 6.400 metros acima do nível do mar. A maioria de seus habitantes é de origem quéchua, que também é o idioma predominante no lugar, e se dedica à agricultura para consumo próprio e à criação de alpacas, assim como mantém uma importante e notável tradição têxtil.
As atividades do projeto são variadas e vão desde o cultivo, o processamento e a comercialização de frutas andinas orgânicas em San Marcos até o resgate de técnicas naturais de tingimento de lã de alpaca e tecelagem tradicional em Pitumarca. Há ainda o fomento ao ecoturismo responsável em ambas as regiões. O diferencial dessas iniciativas é que todas são acompanhadas de atividades que valorizam os conhecimentos populares sobre o meio ambiente, tais como inventários da agrobiodiversidade local e pesquisas sobre o manejo local de recursos naturais e o conhecimento ambiental nativo. Outra característica é que são direcionadas a gerar incidência política e promover – de baixo para cima – a criação de políticas que conectem os atores locais (comunidades e associações de produtores) às autoridades (governo municipal e provincial).
PAUTAS PARA POLÍTICAS
Os três anos de implementação dos projetos da BioAndes renderam conquistas e lições importantes que servem de subsídio para a formulação de políticas de desenvolvimento social e conservação da biodiversidade nos Andes.
Valorizando econômica e culturalmente a agrobiodiversidade
Uma primeira conquista é a valorização econômica, culturalmente contextualizada, da agrobiodiversidade. Embora existam riscos associados à incorporação de populações nativas na economia de mercado, foi interessante observar que, no caso de Pitumarca, a comercialização de produtos têxteis na cidade de Cuzco representa uma ferramenta efetiva para a revitalização cultural. Motivados pela grande demanda relacionada ao turismo vivencial e ao perceber a necessidade de reforçar sua própria identidade, os agricultores e, em particular, os jovens, começaram a revalorizar as diversas técnicas tradicionais de tecelagem, tais como a fiação de lã de alpaca e ovelha, o tingimento com produtos naturais (plantas e minerais) e o resgate da iconografia nativa, todos elementos específicos do vale de Pitumarca.
Algumas dessas técnicas tinham sido abandonadas pela população ao logo do século passado. A partir de 1910, a lã passou a ser tingida quase que exclusivamente com tintas sintéticas e, desde a década de 1980, o uso da lã sintética também passou a predominar. Felizmente, alguns habitantes de Pitumarca mantiveram sua grande habilidade para a tecelagem e guardaram algumas telas antigas que serviram como referência, o que permitiu recuperar e revitalizar as técnicas e os desenhos tradicionais. Atualmente, o valor econômico atribuído a seus tecidos pelos turistas e pelo mercado externo tem levado à revalorização de seu patrimônio cultural e ao restabelecimento parcial do tecido e da vestimenta tradicional. Além disso, as mulheres que participam na elaboração e comercialização dos produtos têxteis locais têm agora sua própria renda e aprenderam a se organizar em associações, o que lhes concede maior independência e poder, assim como um maior reconhecimento no interior de suas famílias e de suas comunidades. Esse novo cenário também faz com que as mulheres jovens andinas tenham a perspectiva de elevarem seu status social dentro da comunidade.
Vinculando os produtos locais a suas paisagens naturais e culturais
Uma importante lição aprendida é que as iniciativas bioculturais têm mais chances de êxito quando estão inseridas em atividades que não se concentram apenas nos produtos locais, mas que também buscam a valorização mais ampla da paisagem natural e cultural. Exemplo disso são as ações voltadas para a promoção do agroturismo e da gastronomia regionais; do manejo mais sustentável dos recursos locais, incluindo a restauração dos ecossistemas; e da realização de inventários que revelam a importância da agrobiodiversidade e dos conhecimentos locais a ela associados.
Em San Marcos, todas as atividades relacionadas à valorização dos produtos da agrobiodiversidade foram incorporadas a um projeto mais abrangente de agroturismo que prestigia tanto os componentes naturais como os socioculturais do território. Graças a um trabalho conjunto com uma extensa rede, formada por associações locais de agricultores, operadores de turismo, acadêmicos e autoridades locais, tem se despertado a consciência sobre os princípios da Agroecologia entre diversos setores da sociedade: pequenos produtores, turistas e estudantes. Para tanto, são realizadas visitas a áreas de plantio de cultivos orgânicos nativos (tais como, frutas, cereais, batatas e outras variedades de tubérculos, além de plantas medicinais), onde os excursionistas têm a oportunidade de observar como são processados, assim como conhecem as práticas de conservação de solos, conversam com os agricultores e obtêm uma mostra de seu formidável conhecimento agrícola. Além disso, os visitantes executam algumas tarefas agrícolas, participam das festividades do calendário ritual agrícola e desfrutam da gastronomia baseada nos produtos locais. Essa experiência permite que turistas geralmente vindos de centros urbanos apreciem os benefícios da agrobiodiversidade para a população local e verifiquem a compatibilidade entre os princípios agroecológicos e os sistemas e conhecimentos andinos. Os principais sócios desse projeto são a Associação Provincial de Produtores Ecológicos de San Marcos (Appesam) e o governo do município, que reconhece a necessidade do desenvolvimento de múltiplas atividades econômicas para conseguir fomentar o desenvolvimento do território de maneira sustentável.
Globalizando as iniciativas locais de desenvolvimento
Uma terceira lição aprendida a partir das experiências do projeto é que a sustentabilidade dessas iniciativas, muitas vezes induzidas por agentes externos, está condicionada à capacidade dos pequenos produtores de se apropriarem das ações e assimilarem os conhecimentos adicionais exigidos para levá-las a cabo de acordo com a sua concepção do que é desenvolvimento. Portanto, o desenvolvimento de capacidades pessoais e institucionais para manejar e controlar da melhor maneira possível toda a cadeia produtiva, desde a produção até a comercialização, é muito apreciado pelos atores locais, sobretudo pela geração mais jovem, ainda que isso não necessariamente signifique um aumento da renda no curto prazo.
Além disso, esse processo de apropriação só pode ser bem sucedido se estiver ligado à criação ou ao fortalecimento de redes sociais (por exemplo, movimentos sociais, associações, cooperativas, etc) que contribuam para articular essas iniciativas locais a outras de contexto global. Essa tendência a globalizar as ideias locais de desenvolvimento arraigadas nas culturas nativas expressou-se em San Marcos por meio do apoio concedido à Appesam, uma organização local que busca produzir e conservar cultivos nativos a partir de práticas agroecológicas e estabelecer relações comerciais justas por meio de parcerias estratégicas com o setor privado e instituições públicas. A Appesam integra a Associação Nacional de Produtores Ecológicos do Peru (Anpe-Peru), o que lhe tem permitido obter apoio político, além de organizacional, e encontrar melhores oportunidades para comercializar seus produtos em nível regional e nacional. Além disso, seu vínculo com a Anpe-Peru contribuiu para que se associasse ao movimento internacional Slow Food, do qual participa com a produção, processamento e comercialização de três frutas nativas: a amora azul andina (Vaccinium floribundium), o maracujá-banana (Passiflora mollissima), e o tomate capucho ou uchuva (Physalis peruviana).
Em Pitumarca, as associações locais de tecelãs e de criadores de alpacas foram fortalecidas ao obterem ajuda para se vincular ao governo municipal – especificamente por meio de sua participação em exercícios de orçamento participativo e na plataforma de negociações para o desenvolvimento do distrito. Essa participação permitiu que defendessem seus interesses e conseguissem que algumas de suas atividades fossem financiadas pela municipalidade.
Enfrentando as contradições entre diferentes racionalidades econômicas
Outra lição-chave do programa BioAndes se refere à necessidade de elaborar estratégias para que os agricultores andinos possam enfrentar as dificuldades geradas por seu confronto com a economia de mercado, situação em que geralmente se encontram em posição vulnerável e em desvantagem.
As mulheres tecelãs de Pitumarca, por exemplo, tornaram-se dependentes de alguns intermediários de artesanatos têxteis que têm a habilidade de dominar as duas racionalidades econômicas que coexistem nas comunidades: a externa, baseada na economia de mercado, e a local, baseada na reciprocidade e na solidariedade. Esses intermediários conseguem garantir a fidelidade das tecelãs, mantendo assim uma relação de dependência, tanto em termos técnicos (ao controlar o abastecimento de insumos para o tingimento natural e a execução dos passos finais da elaboração do produto) quanto comerciais (por meio da organização do transporte e da venda dos tecidos na cidade vizinha de Cuzco).
No caso dos produtores orgânicos de San Marcos, a contradição entre as racionalidades econômicas se expressa nas numerosas dificuldades que enfrentam quando tentam se incorporar ao mercado. Uma das principais barreiras é que o mercado abre mais oportunidades quando os produtores se especializam (no sentido da economia de escala), o que entra em conflito com a economia familiar, que consiste em produzir pequenas quantidades de muitos produtos diferentes para assim combinar a produção para o mercado com as necessidades relacionadas à manutenção de sua própria segurança alimentar.
Em ambos os casos, a população local teve que modificar seu sistema de produção tradicional baseado na família para se dedicar a uma produção mais comunitária, o que inevitavelmente levou à construção de novos vínculos de confiança e reciprocidade (por exemplo, por meio da criação de associações) como estratégia para mitigar os efeitos negativos da economia de mercado.
CONCLUSÕES
A experiência de BioAndes sugere que a valorização econômica e a comercialização de produtos locais e a consequente geração de renda podem ser ferramentas decisivas não somente para o empoderamento dos pequenos agricultores e das mulheres, mas também para o fortalecimento da identidade cultural dos jovens e a valorização do estilo de vida camponês.
Além disso, temos comprovado que a valorização da diversidade biocultural deve ser parte de uma proposta regional integrada. As estratégias locais e regionais em expansão estão muito mais em sintonia com as características históricas e atuais dos meios de subsistência andinos, que visam manter o acesso a uma grande diversidade biocultural sobre a base dos conhecimentos e habilidades nativos. Verificamos ainda como resultado uma significativa distribuição social dos recursos e a diminuição do quadro de vulnerabilidade das comunidades frente a riscos socioeconômicos e ambientais, tais como oscilações bruscas nos preços, mudanças climáticas e pragas em plantas e animais.
Considerando esse contexto, torna-se crucial que as autoridades regionais e nacionais aprendam a formular novos modelos de desenvolvimento econômico que possam explorar o potencial dos sistemas econômicos locais ou nativos e as estratégias de vida a eles associadas. Isso significa abrir espaço para economias alternativas baseadas em identidades andinas fortalecidas, para assim melhorar o modelo atual que atribui aos Andes peruanos um papel de mero exportador, o que por si só certamente é incapaz de dar o devido valor à diversidade biocultural andina.
A implementação de uma estratégia biocultural para valorizar a agrobiodiversidade local demonstrou ter grande potencial para gerar novas perspectivas para a juventude camponesa nos Andes (e possivelmente também nas terras baixas da América do Sul). No entanto, como isso tem que ser o resultado de uma construção coletiva de todos os atores envolvidos, é importante que os jovens camponeses não só participem do processo, como também tenham a possibilidade de definir as condições sob as quais isso se produz. O caminho para seguir adiante passa por compreender e superar de maneira conjunta as dificuldades que as novas gerações enfrentam em sua busca por inovar suas estratégias de vida, em interação com outros atores em nível regional, nacional e, eventualmente, global.
AGRADECIMIENTOS
BioAndes é um programa regional financiado pela Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação (Cosude). É implementado por um consórcio de três instituições – Agruco, da Bolívia, ETC, dos Andes no Peru, e EcoCiência, do Equador – e conta com o apoio conceitual e metodológico do Centro para o Desenvolvimento e o Meio Ambiente da Universidade de Berna, Suíça. Este documento está parcialmente baseado em trabalhos apoiados pelo Centro Nacional de Competência na Pesquisa Norte-Sul (NCCR North-South).
Sarah-Lan Mathez-Stiefel e Stephan Rist
Centre for Development and Environment, Universidade de Berna, Suíça
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[email protected]
Cecilia Gianella Malca
Associação ETC Andes, Lima, Peru
[email protected]
Referências Bibliográficas
As publicações do programa BioAndes estão acessíveis no endereço eletrônico: www.bioandes.org
Baixe o artigo completo:
Revista V8N1 – Agrobiodiversidade abre novas perspectivas para a juventude camponesa dos Andes