Nicole Rodrigues Vicente
Atualmente o estado de Rondônia constitui a principal frente de expansão das fronteiras agropecuárias do país. A crescente exploração extensiva da pecuária bovina e do cultivo da soja provocou aumentos dramáticos das áreas subtraídas às florestas nativas da região.
Realizada principalmente por migrantes vindos nas últimas décadas de outros estados, a agricultura em Rondônia se fundamenta em técnicas importadas de regiões de clima temperado. O uso intensivo dos solos, com práticas de aração, gradagem, subsolagem, emprego de agrotóxicos (herbicidas e inseticidas) e de fertilizantes químicos, tem por objetivo eliminar a regeneração natural e criar condições ambientais propícias para a produção em sistema de monocultivo.
A implementação desse sistema técnico no bioma tem conduzido os ecossistemas agrícolas a acelerados e profundos processos de degradação que inviabilizam a permanência das famílias agricultoras em suas terras após poucos anos de cultivo. Dessa forma, em que pesem os grandes aportes de insumos da agricultura moderna, tal lógica de uso da terra não se diferencia essencialmente dos tradicionais sistemas da agricultura migratória, na medida em que as famílias logo são levadas a buscar novas áreas para o plantio, em razão da queda do potencial produtivo dos solos e do aumento da incidência de plantas espontâneas competidoras das espécies cultivadas.
A produção de leite foi uma alternativa incentivada para fazer frente à queda da fertilidade das terras e, conseqüentemente, aos aumentos dos custos de produção das lavouras. Porém, tal como implementada, essa alternativa também mostrou logo suas fragilidades em razão dos impactos ambientais negativos ocasionados pelo superpastejo.
CONSTRUINDO ALTERNATIVAS SUSTENTÁVEIS PARA A AGRICULTURA FAMILIAR
Com o objetivo de diagnosticar e enfrentar os principais problemas produtivos vivenciados pela agricultura familiar no estado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Rondônia e o Projeto Padre Ezequiel (PPE) promoveram, em 2001, alguns encontros regionais. A necessidade de garantir o acompanhamento técnico a famílias agricultoras interessadas na experimentação agroecológica foi priorizada. Assim surgiu o Projeto Terra Sem Males (PTSM), financiado a partir de 2003 pelo Cafod (Catholic Agency Found for Oversea Development), agência inglesa católica de cooperação para o desenvolvimento.
Entre 2003 e 2006 o projeto acompanhou sistematicamente trinta famílias de quatorze municípios das regiões norte, sul, leste e oeste do estado. A partir de 2007 a abrangência geográfica foi reduzida, mas o número de famílias aumentou para cerca de cinqüenta.
As inovações agroecológicas estimuladas pelo projeto estavam orientadas fundamentalmente a intensificar a produção diversificada de alimentos para o auto- consumo familiar e para a venda, evitando a adoção de práticas danosas aos solos e à biodiversidade nativa.
NOVO OLHAR SOBRE AS PLANTAS ESPONTÂNEAS
Um dos maiores desafios enfrentados pelo projeto para estimular o avanço dos processos de transição agroecológica nas propriedades acompanhadas foi a construção e disseminação de nova concepção técnica para o manejo das plantas espontâneas. Ao conceituarem essas plantas como ervas daninhas, os agricultores acabavam por adotar estratégias para eliminá-las das áreas de lavoura, entre as quais, a queimada, os herbicidas e a capina excessiva.
Para reverter essa tendência, a equipe do Projeto Arboreto do Acre (Parque Zoobotânico/Universidade Federal do Acre) deu início a um processo de capacitação dos agricultores orientado para construir uma nova percepção acerca das plantas espontâneas a partir da discussão sobre os princípios da regeneração natural nos ecossistemas amazônicos e sobre os ciclos de vida das espécies florestais nativas. Foram então apresentadas ao grupo as técnicas de manejo agroflorestal que, com vistas ao aprimoramento das lavouras de café, introduziram preceitos ecológicos para o manejo das plantas espontâneas, assim como para a manutenção da fertilidade dos solos.
Por meio de cursos, mutirões e da observação de áreas experimentais, um grupo de 15 famílias plantadoras de café decidiu reorientar suas práticas de manejo dos cafezais, incorporando esses novos conceitos e princípios agroflorestais.
Esses princípios foram colocados em prática a partir da conjugação de alguns manejos, entre os quais: a manutenção do solo protegido com cobertura viva, morta e/ou com o sombreamento proporcionado pelas árvores; manutenção das espécies florestais da regeneração natural nos cafezais; introdução, nos cafezais, de espécies de interesse econômico adaptadas à região; valorização das espécies espontâneas como fonte de adubação; realização de podas em árvores senescentes e em árvores que sombreiam excessivamente os pés de café.
As experiências de duas famílias acompanhadas pelo projeto ilustram como esses princípios foram incorporados em situações distintas, permitindo o abandono das práticas tradicionais de manejo das plantas espontâneas, além de baixar custos de produção e promover maior vitalidade aos cafezais.
A EXPERIÊNCIA DA FAMÍLIA MENDES COSTA
Há mais de sete anos a família Mendes Costa realiza um trabalho inovador em sua propriedade, o sítio Cruzeiro do Sul, no município de Mirante da Serra. A economia familiar é baseada na combinação da produção do café e do leite, assim como na alta diversidade de espécies alimentícias destinadas essencialmente para o autoconsumo, tais como manga, banana, laranja, limão, cana-de-açúcar, hortaliças e mandioca.
A família começou sua experiência de agrofloresta sucessional numa área onde antes havia apenas o cultivo de café, consorciado com um ou outro pé de urucum, coco, mandioca e feijão nas entrelinhas. Naquela época, a manutenção da área de cultivo demandava muito esforço devido à forte incidência do capim braquiária (Brachiaria decumbens). As inovações no manejo foram incorporadas à medida que a família passou a participar das atividades de capacitação oferecidas pelo projeto.
Inicialmente a família realizou o plantio adensado de espécies pioneiras de ciclo rápido, tais como o milho e a abobrinha; de ciclo médio, como o gergelim e a mandioca; e de ciclo mais longo, como a bananeira, o cacau e a pupunha. As plantas espontâneas não-florestais eram roçadas com foice, enquanto as espécies florestais eram deixadas na área com a função de ajudar o desenvolvimento da lavoura. Quando o uso da foice se tornava prejudicial para o crescimento de espécies de interesse no sistema, realizava-se o arranquio manual, prática também conhecida como capina seletiva manual.
A capina seletiva permitiu o crescimento de espécies florestais espontâneas que cumprem várias funções ecológicas e que são manejadas ao longo do tempo de acordo com seus ciclos de vida. Entre as espécies florestais espontâneas mantidas na área destacam-se: o ingá (Inga spp), a embaúba (Cecropia spp), a goiaba (Psidium guayava), o freijó (Cordia Alliodora), o cedro (Cedrela odorata), a cerejeira (Torresia acreana) e a seringueira (Hevea brasiliensis).
O sombreamento do solo pelas espécies arbóreas é um mecanismo ecológico de inibição, em que uma espécie ou grupo de espécies limita o desenvolvimento de outras através de comportamentos antagonistas ou repelindo-as com substâncias químicas (Ricklefs, 2003). Para colocar esse princípio em prática, os agricultores permitem que um determinado grupo de espécies se estabeleça no sistema de forma a sombrear o solo e inviabilizar a colonização da área por espécies de capins que dependem de alta incidência luminosa para vegetar.
A EXPERIÊNCIA DA FAMÍLIA ARDISSON
O cafezal da família Ardisson, residente no município de Vale do Paraíso, era inicialmente conduzido em sistema de monocultura, o que favorecia a colonização de braquiária e capim colchão (Digitaria spp) nas entrelinhas. O aparecimento dessas plantas espontâneas obrigava a realização de roçagens regulares (com foice ou com roçadeira costal), prática que aumentava os custos e o desgaste físico dos membros da família.
Do ponto de vista ecológico, porém, essas espécies tradicionalmente consideradas daninhas cumprem função de proteção do solo por meio do mecanismo de tolerância, em que uma espécie ou grupo de espécies coloniza um determinado habitat pela sua alta capacidade de dispersão e de adaptação às condições ambientais locais, no caso aqui a alta incidência luminosa (Ricklefs, 2003).
Como atividade prática do curso de sistemas agroflorestais oferecido pelo projeto, a família implantou uma área experimental de agrofloresta sucessional em três linhas de seu cafezal, tendo cada linha 10 metros de extensão. Nessa área, a família pôde observar o desenvolvi- mento do sistema e tirar lições sobre as práticas agroflorestais.
Em cada uma das linhas foi realizado um manejo diferente dos capins. Na primeira, utilizou-se a capina manual; na segunda, a retirada com auxílio do facão; e na terceira, a capina com enxada. Após a limpeza da área, foram introduzidas, nas parcelas, espécies de ciclo curto, médio e longo, a maioria via sementes, nas categorias: a) agrícolas: banana, abacaxi e mandioca; b) florestais: mulungu (Erythrina spp), tucumã (Astrocarium spp ), urucum (Bixa orellana), mapati (Pourouma cecropiaefolia), mog- no (Swietenia macrophylla), cumaru (Dipteryx odorata), freijó e cerejeira; c) adubação verde: puerária (Pueraria phaseoloides), mucuna-preta (Mucuna aterrina), guandu (Cajanus cajan) e feijão-de-porco (Canavalia ensiformis D.C).
Além das plantas introduzidas, algumas espécies se desenvolveram espontaneamente, entre elas, a bandarra (Parkia multijuga bth), o assa-peixe (Vernonia polyanthes), o cedro-rosa (Cedrela odorata) e a castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa).
Ao longo dos seis meses que se seguiram após a introdução de novas espécies ao sistema, a família realizou o manejo de poda das pioneiras (ciclo curto), como puerária, mucuna-preta e assa-peixe (Vernonia polyanthes), além da colheita da mandioca. Realizou também o manejo de condução das espécies secundárias como o guandu, com o objetivo de aportar biomassa ao sistema e dessa forma favorecer as espécies secundárias mais tardias que permaneceriam na área por longo prazo, como urucum, banana, mapati e freijó.
A manutenção do sistema diversificado e adensado ao longo do tempo visa transformar o ambiente inicial em um habitat biologicamente mais rico, que tem seu funcionamento ecológico e sua fertilidade preservados pela sucessão biológica. Esse sistema de manejo fundamenta-se no mecanismo de facilitação, através do qual um grupo de espécies proporciona condições ecológicas mais adequadas para a colonização de espécies de um estágio sucessional mais avançado (Ricklefs, 2003). Desse ponto de vista, esse sistema diferencia-se totalmente das práticas tradicionais de manejo das plantas espontâneas, uma vez que estas últimas não permitem que a sucessão biológica ocorra.
Nicole Rodrigues Vicente
engenheira agrônoma, Msc em Recursos Genéticos Vegetais (Universidade Federal de Santa Catarina) e integrante da ONG Mutirão Agroflorestal
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Referências Bibliográficas
INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. Monitoramento da Floresta. São José dos Campos, 2004.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Plano de ação para a prevenção e controle do desmatamento na Amazônia legal. Brasília, 2004.
RICKLEFS, R. E. A economia da natureza. 5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003. 503p.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N1 – Agroflorestas sucessionais no manejo de plantas espontâneas na Amazônia