Pedro Jorge B. F. Lima
O cultivo de algodão em bases agroecológicas, iniciado em Tauá-CE, nos anos 90, estendeu-se para os municípios de Choró, Quixadá e Massapê, envolvendo, atualmente, 152 agricultores e agricultoras familiares, com uma área total de 189 hectares. É uma prática que associa, em seus objetivos, a geração de renda, a melhoria da qualidade do solo, a diversificação da oferta de alimentos sadios e o desenvolvimento de uma consciência ecológica entre famílias que dela participam.
Essa atividade é organizada pela Associação de Desenvolvimento Educacional e Cultural (Adec), uma organização de agricultores e agricultoras agroecologistas de Tauá, e pelos Sindicatos de Trabalhadores(as) Rurais (STRs) nos outros três municípios, em parceria com o Centro de Pesquisa e Assessoria, o Esplar, ONG que proporciona capacitação, acompanhamento técnico e assessoria à comercialização.
A PROPOSTA AGROECOLÓGICA
Do ponto de vista do sistema de manejo agroecológico, o solo é considerado elemento básico, sendo imprescindível o emprego de técnicas visando a sua conservação e melhoria: plantio em nível, enleiramento dos restos vegetais, valetas de retenção e/ou muretas de pedra, também em nível, adubação com esterco e plantio de leguminosas.
O algodão é consorciado com milho (Zea mays), feijão de corda (Vigna unguiculata), gergelim (Sesamum indicum) e guandu (Cajanus cajan), culturas estas de livre escolha de cada agricultor(a). Utilizam-se variedades de algodoeiro arbóreo 7MH, de cor branca, em 95% dos casos, e BR200, marrom, nos 5% restantes. O estímulo ao policultivo tem o objetivo de incrementar as alternativas produtivas e a flexibilidade econômica dos sistemas familiares, reduzindo simultaneamente os riscos de perdas de safra por falta ou excesso de chuvas, ataque de pragas ou outros fatores adversos. A totalidade desses agricultores e agricultoras dispõe de árvores de nim (Azadirachta indica A.Juss.) como recurso no controle de pragas e doenças de plantas e animais.
Para melhorar a nutrição das plantas e defendê-las do ataque de pragas, são utilizados preparados eficientes e de baixo custo para pulverizações com urina de vaca, na forma pura ou adicionada a extrato de folhas de nim, e/ou um biofertilizante à base de esterco fresco fermentado.
O manejo ecológico de pragas, especialmente do bicudo do algodoeiro (Anthonomus grandis Boheman), compreende um conjunto de medidas, como o plantio nas primeiras chuvas, catação de botões florais afetados e poda das plantas ao final da safra.
ESTRATÉGIA E METODOLOGIA
A estratégia de intervenção do Esplar tem como pressuposto a existência de uma associação local de agricultores(as) familiares interessada em organizar a produção de seus associados(as) em bases agroecológicas.
Para implantar sistemas agroecológicos, agricultores e agricultoras familiares e dirigentes dessas organizações participam de visitas de intercâmbio a lugares nos quais já se desenvolve a proposta e de cursos de capacitação em agroecologia, oferecidos pelo Esplar, que proporciona ainda acompanhamento técnico mensal, com visitas às áreas, reuniões de planejamento e avaliação do ano agrícola.
O acompanhamento é realizado em cada localidade, de forma coletiva, em rodízio, com a participação de agricultores e agricultoras, representantes da organização local e membros da equipe técnica do Esplar. É quando ocorrem as trocas de experiências que contribuem para a melhor assimilação das tecnologias que integram a proposta e o avanço na consciência do quê e por quê a estão implementando.
Para compensar o acréscimo de trabalho na produção e estimular o manejo ecológico, o Esplar concede um subsídio de até R$ 240,00/ha, pago por intermédio de cada organização local, depois de comprovada sua aplicação. Isso tem favorecido a discussão política junto aos grupos locais sobre os elevados subsídios concedidos aos produtores de algodão nos EUA e suas conseqüências sobre os preços internacionais do produto, sobretudo aqueles pagos aos pequenos produtores dos países pobres. (Ricúpero, 2001).
RESULTADOS
Os resultados obtidos em sete anos mostram que, do ponto de vista ambiental, ocorreram avanços significativos nos processos de conversão, tanto da agricultura tradicional como da convencional, para os padrões agroecológicos.
Em 2004, a adoção das técnicas preconizadas foi bastante elevada, especialmente daquelas relacionadas com a conservação do solo. A adesão ao plantio em nível aproxima-se dos 100%; aplicações de urina de vaca, extratos de nim e de biofertilizantes foram bastante utilizadas, entre 71% e 96%. O uso de esterco, bastante raro em cultivos de sequeiro no semi-árido, foi empregado em cerca de 23% dos casos.
Avaliações da qualidade do solo em áreas com esses sistemas, em Tauá, apontaram para uma “(…) maior capacidade de promover melhor qualidade do solo, com- paradas com as áreas de produção convencional (…) principalmente pelo uso de rotação de culturas, aplicação de fertilizantes orgânicos, redução dos tratos culturais, promovendo (…) o aumento do conteúdo de matéria orgânica do solo” (Lima, 2001). Também proporcionam “(…) a manutenção da qualidade do solo em condições semelhantes e/ou melhores que a condição natural”(Ototumi, 2003). Esses são resultados ainda não mensurados, mas percebidos com clareza e valorizados por agricultores e agricultoras envolvidos na experimentação.
A substituição dos agrotóxicos por produtos do nim e pelos biofertilizantes se traduz em autonomia em relação a insumos industriais e em ganhos para a saúde humana, animal e ambiental. Esses elementos, junto com a redução das queimadas, indicam que o caminho da sustentabilidade ambiental está sendo trilhado.
A valorização e dinamização dos processos locais de cooperação e articulação solidárias entre participantes das atividades demonstram os avanços no âmbito da sustentabilidade social e organizativa, apontando para uma maior efetividade da proposta, ao longo dos próximos anos, independente da presença do Esplar. Em particular, o consumo de alimentos livres de agrotóxicos e a incorporação do gergelim, alimento de alto valor nutricional, à dieta familiar constituem importantes indícios de mudança cultural.
A produção de 2004 compreendeu 17.232 kg de algodão em rama, 55.012 kg de milho, 16.532 kg de feijão de corda, 1.020 kg de gergelim e 4.619 kg de abóbora (Cucurbita moschata) e jerimum (Cucurbita pepo), que, somados a outros produtos de menor participação, resultaram num valor bruto da produção (VBP) de R$ 80.303,00. O feijão de corda teve o VBP mais elevado, 41,2% do total, seguido do algodão, com 25,7%, e do milho, com 20,5%.
O rendimento médio do algodoeiro, em 2004, foi de 128 kg/ha, cerca de 60% dos 214 kg/ha registrados no estado nos sistemas convencionais, em condições de monocultivo (IBGE, 2004). O menor rendimento dos sistemas agroecológicos se deve à menor população de plantas/ha e à inexistência de recursos que controlem efetivamente o bicudo, o que, por sua vez, limita a expansão da área média cultivada por família – atualmente em torno de 1,03 ha – em razão do trabalho adicional exigido na catação manual de botões florais afetados.
Para realizar a produção, foram empregados insumos de produção própria – sementes, esterco de gado, pó de folhas de nim – estimados em R$ 4.001,33. Os gastos com sementes de algodão, aluguel de trator (em 4,8% dos casos) e pagamento de trabalho contratado totalizaram um desembolso de R$ 19.395,70.
O trabalho empregado por hectare correspondeu a 56 h/d, sendo 75,4% realizado pela família e 24,6% pela mão-de-obra contratada. Isso implicou um gasto total de R$ 17.533,50. Para um VBP de R$ 80.303,00, o resulta- do líquido apropriado pelas famílias foi de R$ 56.906,40.
Considerando que o trabalho familiar aplicado nos consórcios correspondeu a 5.685,50 h/d, o valor apropriado por cada dia de trabalho foi de R$ 10,01, equivalente à diária paga na região, que é de R$ 10,00. Como esse conjunto de agricultores e agricultoras recebeu subsídios no montante de R$ 20.420,00, o valor final apropria- do por cada dia de trabalho familiar alcançou R$13,60, ou seja, quase 36% acima da diária vigente na região.
PERSPECTIVAS
Mesmo com as limitações impostas pelas variações climáticas próprias ao sertão semi-árido, a dimensão econômica dos consórcios agroecológicos já sugere um relativo avanço, levando-se em conta que se trabalha com agricultura de sequeiro. De qualquer forma, é necessário buscar alternativas que melhorem a renda auferida nos sistemas agroecológicos.
Encontrar meios para o controle do bicudo do algodoeiro, em bases ecológicas, permanece como grande desafio para que se consiga aumentar, de forma significativa, a oferta de algodão agroecológico e, em conseqüência, a renda de cada agricultor(a) participante da atividade.
O estímulo à participação ativa em todo o processo de trabalho, questionando, propondo e realizando mudanças ou ajustes nas propostas técnicas, leva ao desenvolvimento da consciência ecológica, à elevação da auto-estima e à criação de uma identidade própria de agricultores e agricultoras agroecológicos, que os diferencia nos grupos sociais aos quais pertencem.
A experiência com algodão agroecológico no Ceará tornou-se referência para organizações da agricultura familiar do semi-árido cearense e nordestino, para ONGs, centros de pesquisa e empresas do comércio justo, que a visitam para conhecer o trabalho em andamento e seus resultados. Grupos de agricultores e agricultoras familiares que visitaram Tauá, em 2003, iniciaram atividade semelhante em Afogados da Ingazeira e São José do Egito (PE) e Umarizal (RN), numa parceria entre a ONG Diaconia, de Recife, e associações de agricultores e agricultoras familiares e sindicatos de trabalhadores rurais. Também em Porteirinha (MG), um grupo de 15 agricultores e agricultoras implantaram as primeiras áreas de cultivo de algodão agroecológico em 2004, inspirados na experiência de Tauá, numa parceria entre o Sindicato de Trabalhadores Rurais e o Centro de Agricultura Alternativa de Montes Claros (MG).
A oferta anual de pluma de algodão agroecológico pela Adec tem variado entre 3 e 5,5 toneladas, bem inferior às demandas do mercado orgânico. A maior parte das duas últimas safras foi vendida à empresa francesa Veja Fair Trade, que atua no comércio justo e firmou contrato de três anos com a Adec, a partir do qual organizou uma cadeia produtiva para fabricar tênis ecológicos no Brasil e comercializá-los na Europa e no Japão. Outra parte da safra de 2004 foi vendida à Univens, uma cooperativa de costureiras de Porto Alegre, que também atua no mercado solidário. Nessas duas operações, a pluma foi vendida a R$ 6,00/kg, o dobro do preço do produto convencional. Cerca de 300 a 400 kg de algodão agroecológico são utilizados por três grupos de mulheres na produção de fios, vendidos para tecelagens artesanais. Com esses fios elas próprias também confeccionam peças em crochê e tricô, para colocação num mercado ainda incipiente.
Desse modo, o comércio justo ou solidário oferece condições excepcionais em relação ao mercado convencional: estabelecimento de preços capazes de cobrir os custos de produção e beneficiamento, acrescidos de um prêmio que garanta a sustentabilidade da Adec e o interesse crescente de agricultores e agricultoras em ingressar e/ou permanecer na atividade. O contrato firmado entre a Veja Fair Trade e a Adec é baseado na ética e na transparência, valores indispensáveis à construção de relações de confiança entre todos os envolvidos, resultando em maior segurança de colocação do algodão no mercado, melhor remuneração para quem produz e beneficia, contribuindo também para a consolidação de relações mais justas entre diferentes integrantes da cadeia produtiva.
Pedro Jorge B. F. Lima:
engenheiro agrônomo, mestre, pesquisador do Esplar, Fortaleza (CE).
www.esplar.org.br
[email protected]
Colaboraram na elaboração deste artigo:
Aécio Alves de Oliveira:
economista, professor do Departamento de Teoria Econômica da Universidade Federal do Ceará (UFC);
Ailton Carlos Ferreira Ponte:
estudante de agronomia da UFC, estagiário do Esplar;
André Lima:
estudante de economia da UFC, estagiário do Esplar;
Marcus Vinícius de Oliveira:
engenheiro agrônomo do Esplar.
REFERÊNCIAS:
RICÚPERO, R. Algodão: escândalo mundial. Globo Rural, Rio de Janeiro, ago. 2002.
LIMA, Herdjania Veras de. Influência dos sistemas de cultivo orgânico e convencional de algodão sobre a qualidade do solo no município de Tauá-Ce. Fortaleza, Universidade do Ceará, 2003. 53 f. Dissertação (mestrado em agronomia – área de concentração em solos e nutrição de plantas).
OTOTUMI, Adriana Tamie. Qualidade do solo em sistemas de cultivo agroecológicos no município de Tauá-Ce. Fortaleza, Universidade do Ceará, 2003. 54 f. Dissertação (mestrado em agronomia, área de concentração em solos e nutrição de plantas).
LEVANTAMENTO SISTEMÁTICO DA PRODUÇÃO AGRÍCOLA. Rio de Janeiro: IBGE, 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V2N3 – Algodão agroecológico: uma experiência no semi-árido cearense