Alvori Cristo dos Santos
O olhar sobre a renda, proposto neste artigo, é uma “ferramenta de linguagem” empregada na promoção de um processo de comunicação entre agricultores e todos os sujeitos histórica e organicamente envolvidos com os camponeses. Para isso, é necessário estarmos completamente abertos a uma construção compartilhada, defendendo nossos pontos de vista, sem dúvida, como sujeitos efetivos, mas metodologicamente dispostos a absorver consertos, arrumações e aprimoramentos. Fundado nessa concepção, este texto tem um objetivo ainda mais definido: expor, por meio de um olhar sobre a renda, a condição monetária da produção da agricultura familiar da região Sul do Brasil, comparando sistemas convencionais com caminhos agroecológicos em construção.
O conceito de renda tem estado orientado quase sempre por um enfoque econômico centrado exclusivamente nas relações monetárias insumo-produto e voltado para oportunidades de mercado. Esse reducionismo se deve também à não-disponibilização de instrumentos metodológicos para a análise da realidade sob outra perspectiva, contribuindo para abstrair do debate e da tomada de decisões a questão dos modelos de desenvolvimento e projetos de sociedade. Além disso, esse enfoque torna agricultores, organizações, instituições de apoio, programas de desenvolvimento e políticas reféns de um único objetivo: a oportunidade de bons negócios no mercado que, via de regra, se traduzem em ganhos individuais somente viáveis em cenários de resultados negativos para a maioria.
A geração dos indicadores de renda utilizados neste artigo não teria sido possível sem o concurso da Rede de Agricultores Familiares Gestores de Referências, que se estrutura como uma rede-ferramenta no sul do país. O processo metodológico de produção de referências em rede foi iniciado em novembro de 2003 em 14 regiões de organização histórica da agricultura familiar (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná). A Rede é formada até o momento por 212 agricultores gestores comunitários e 801 agricultores vizinhos. Entre as organizações parceiras, estão cerca de 50 sindicatos de trabalhadores rurais e sindicatos da agricultura familiar, associados à Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Sul (Fetraf-Sul), 25 cooperativas de crédito integradas ao Sistema de Crédito Solidário (Cresol), dez ONGs vinculadas à Rede Ecovida e um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Os indicadores de campo são registrados pelos agricultores nas comunidades e sistematizados também por eles, contando com o apoio de organizações parceiras.
A RENDA DA AGRICULTURA COMO INDICADOR DA POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO
A renda aferida das 1.013 famílias agricultoras que integram a Rede de Referências indica uma condição de risco para um número significativo delas. Quase 47% necessitariam recorrer a algum tipo de financiamento da produção ou complementação de renda para obter um balanço monetário positivo no ano agrícola 2003/2004, um período de preços elevados para a soja, o milho, o feijão, o fumo e o leite, produtos cuja comercialização representa parte significativa do resultado econômico dos sistemas de produção praticados por essas famílias. Se utilizarmos preços médios históricos, o número de famílias com renda negativa tende a aumentar consideravelmente.
O formato de cálculo da renda da agricultura foi obtido simplesmente deduzindo-se do valor bruto da venda da produção os custos tecnológicos e de manutenção da estrutura produtiva (consertos de rotina no ano agrícola) e despesas de consumo da família. Interpretar esse indicador é um desafio. Ele foi utilizado por sua proximidade com os fluxos monetários reais com que operam os agricultores. O formato é efetivamente uma ferramenta de diálogo em construção. Apesar de sua aparente obviedade como meio para se obter a quantidade de dinheiro em fluxo no final de um ano agrícola, seus significados e valor encontram-se abertos a um processo de análise crítica.
De qualquer forma, a primeira consideração a ser feita se refere ao número de famílias com renda negativa. A avaliação inicial permite observar que as políticas e ações de desenvolvimento para a região não apresentam nenhuma agenda objetiva para essa questão e seguem coniventes com uma condição de inoperância e/ou aceitação do status quo. Todas as iniciativas e agendas de desenvolvimento deveriam trabalhar com indicadores desse tipo como elemento-base de planejamento estratégico, explicitando os riscos, avaliando impactos junto às populações e elaborando ações concretas. É necessário estipular objetivos e metas no sentido de reverter os cenários dominantes sobre as dinâmicas de exclusão e permanência de famílias no campo.
OS DIFERENTES CAMINHOS DA AGRICULTURA FAMILIAR
Os resultados relacionados à produtividade do trabalho se referem à área de produção manejada por uma pessoa adulta e são apresentados a partir de quatro caminhos distintos seguidos pelas famílias produtoras associadas à Rede de Gestores de Referências. Dentre as 1.013 famílias que participam até o momento dessa rede-ferramenta, é possível distinguir quatro grandes “categorias de caminhos” ou estratégias de manejo técnico-econômico dos sistemas produtivos:
- agricultura tradicional;
- agricultura convencional;
- agricultura orgânica;
- agricultura agroecológica de agrofloresta.
Cada atividade agrícola, cada família e, no caso presente, os conjuntos de famílias representados por “categorias de caminhos”, podem ter a renda apresentada nesse formato.
OBSERVAÇÕES:
- a renda da agricultura = (valor bruto da produção) – (custos tecnológicos) – (custos de manutenção) – (despesas de manutenção familiar);
- as taxas inflacionárias futuras são tendenciais. Foram estabelecidas com base em séries históricas disponíveis para o caminho convencional e divulgadas amplamente na literatura;
- as expressões -1X, -2X, -4X representam uma incógnita (X) relacionada a ordens de grandeza dos custos e preços, que poderão assumir variações para menos em níveis e intensidades diferentes (-1, -2, -4), dependendo das estratégias produtivas e de mercado seguidas pelos demais caminhos da agricultura familiar em situação real. Essas expressões referentes aos caminhos tradicional, orgânico e agroflorestal ainda não são conhecidas na forma de indicadores sistematizados e validados. Por isso, são subtraídas do percentual padrão de tendências inflacionárias futuras correspondentes à agricultura convencional, que é tomada como parâmetro de comparação com os demais caminhos;
- a área de produção significa, aproximadamente, a área trabalhada por uma pessoa adulta em tempo integral, indicador que nos possibilita comparar sistemas de produção bastante diferentes;
- os indicadores de produtividade do trabalho expressam a capacidade de trabalho de uma pessoa adulta, que tem à disposição determinados meios de produção normalmente disponíveis na agricultura familiar da região Sul.
Os resultados apresentados no Quadro 1 proporcionam um olhar sobre os níveis de renda da maioria dos agricultores em cada categoria de caminho. Isso significa que em cada categoria algumas famílias apresentam melhores resultados, outras se alinham aos níveis de renda constantes do quadro e outras obtêm resultados piores. A grande questão que destacamos se refere à representação, em cada categoria de caminho, do grupo de famílias com pior renda e exposto, portanto, ao maior risco em menor espaço de tempo.
A “agricultura tradicional” é aquela praticada por famílias com limitado acesso aos benefícios das políticas públicas. Emprega um manejo técnico com baixa utilização de insumos externos e mostra indicadores de produtividade menores em relação aos padrões normalmente definidos como competitivos. É comum comercializar pequenas quantidades de produtos variados. Uma pessoa adulta praticando esse caminho em tempo integral tem condições de trabalhar cerca de 5 ha de terra, contando com a força de trabalho manual e/ou com alguma combinação de tração animal, ou mesmo com a aquisição de horas/máquina. Como assinalado no Quadro 1, os custos tecnológicos representariam em torno de 18% dos preços recebidos pela venda dos produtos, os custos de manutenção da infra-estrutura produtiva representam 4% e as despesas de manutenção familiar 35%, determinando uma renda positiva de 43% sobre o valor bruto da produção. É importante considerar, nesse caso, ser expressivo o número de famílias que não dispõe dessa área produtiva, recorrendo sistematicamente a outras rendas para complementar o orçamento. Mesmo com a venda da produção a preços baixos no mercado, muitas famílias, embora vivendo em condições precárias de subsistência, conseguem operar com menores riscos, se comparados aos do caminho da agricultura convencional. A taxa de reajuste dos custos tecnológicos pode ser menor do que no padrão convencional. A taxa resultante da expressão (15-2X) pode ter resultados variando, por exemplo, entre 13% a 9%, o que configura uma situação de maior resistência quando com- binada com os baixos custos tecnológicos que compõem a renda, mesmo em cenário de menores preços recebidos por seus produtos (5-X). Esta expressão de tendência inflacionária pode significar uma remuneração dos produtos comercializados pela agricultura tradicional de 4% ou 3%, por exemplo. Muitas famílias agricultoras que seguem este caminho vendem sua produção em estabelecimentos comerciais que financiam direta e indiretamente sua produção e despesas de manutenção familiar. Dessa forma, condicionadas por uma situação de dependência, essas famílias têm seus produtos remunerados a um preço menor do que aqueles praticados no mercado convencional. Apesar da baixa dependência de insumos externos, as situações de pobreza e a limitada disponibilidade de terra podem conduzir a agricultura tradicional à superexploração dos recursos do meio e à inviabilidade do sistema.
A “agricultura convencional” é o único caminho que apresenta dependência de recursos externos para garantir, em cenários futuros, a permanência de suas atividades produtivas. A produção de grãos e leite é efetivada, total ou parcialmente, com aquisições de algumas horas/máquinas. Os custos tecnológicos de produção são elevados, representando 77% dos preços recebidos no mercado. Esses indicadores, quando analisados segundo as tendências das taxas inflacionárias futuras (preços reajusta- dos em torno de 5% ao ano e custos tecnológicos reajustados a taxas por volta de 15% ao ano), nos permitem perceber uma condição de risco extremo para um número mais expressivo das famílias que seguem esse caminho. São famílias submetidas à “tesoura”, que estrangula uma agricultura altamente dependente de insumos externos e que se baseia em um pequeno número de produções com preços deprimidos nos mercados.
A “agricultura orgânica” é uma categoria de caminho histórico trilhado por todos aqueles que, há algumas décadas, aceitaram o desafio de construir o novo. Ela constituiu uma expressão da agroecologia como nova forma de produzir e, ao mesmo tempo, é reflexo do mercado, orientando um processo alternativo. É a expressão da contradição. Os custos tecnológicos representam 27% dos preços recebidos: em par- te, porque a agricultura orgânica não recorre aos pacotes preconizados pela modernização conservadora da agricultura, mas também porque comercializa seus produtos a preços mais elevados, que são pagos por um mercado constituído por consumidores com maior poder aquisitivo. No entanto, nessa perspectiva, que inclui a especialização, os cenários futuros não garantem condições de maior autonomia econômica, apresentando cenários de riscos. A relação entre preços e custos ainda pode indicar tendências a rendas negativas no caminho orgânico, com taxas inflacionárias tendenciais de custos tecnológicos um pouco menores que no caminho convencional (15-2X), porém sem capacidade de recuperar renda e mantendo-se na busca de mercados que remunerem seus produtos a preços maiores que os convencionais.
A “agricultura agroecológica de agrofloresta” demonstra definitivamente a capacidade de ruptura técnico-econômica com a equação negativa entre preços e custos do capital representada pela agricultura convencional. O caminho seguido por esse padrão de agricultura aponta para uma perspectiva de autonomia e soberania. Os custos tecnológicos necessários correspondem a 12% dos preços de venda dos produtos. Nos cenários futuros, as taxas inflacionárias podem tender significativamente a zero (15-4X). Depoimentos de agricultores, trilhando de oito a dez anos os caminhos da agroecologia de agro- floresta, dão conta de planos visando ao fim da necessidade de importação de fertilidade para seus sistemas, limitando os custos de produção ao manejo de podas de condução da agrofloresta, à manutenção dos equipamentos necessários a essa prática e algum processo de beneficiamento e comercialização. Se tais referências se confirmarem no futuro, os alimentos ecológicos não terão que ser mais caros. A forte produção para o autoconsumo permite diminuir os custos de compra de alimentos, ao mesmo tempo em que potencializa a diversificação da pauta de produtos alimentares a serem escoados nos mercados. Muitos agricultores, agricultoras e outros agentes desses caminhos Brasil afora encontram-se em processos intensos de construção de conhecimentos na agroecologia de agroflorestas, apresentando grande diversidade de raízes socioculturais: populações indígenas, quilombolas, caboclos, negros, migrantes, povos das florestas, dos Cerrados, do Pantanal, do semi-árido, dos faxinais, dos pampas, ribeirinhos e pescadores. Ao mesmo tempo, manejam de forma complexa a biodiversidade em uma grande variedade de ambientes e de atividades econômicas envolvendo a erva-mate, banana, café, cupuaçu, açaí, plantas medicinais, essências nativas, hortas e quintais.
No entanto, é importante afirmar que o conceito de renda no formato proposto neste artigo, mesmo que entendido como uma “ferramenta de linguagem” e explicite contradições da agricultura convencional, está ainda restrito a indicadores convencionais. Permanece, assim, o desafio de incluir, neste e em outros formatos de representação da renda, outros indicadores que expressem a condição de sustentabilidade e de novos paradigmas. Os números apresentados são olhares sobre processos. E gostaria que assim fossem lidos, com todos os limites que nossa capacidade de olhar e perceber possui.
Ao encerrar este artigo, quero fazer um agradecimento muito especial a todas as famílias agricultoras e a todas as organizações parceiras da Rede de Gestores de Referências que estão viabilizando a geração dessas informações e o aprimoramento dos conhecimentos sobre novas possibilidades de sonhar. A possibilidade de sonhar exige esforço, trabalho, método e concepção. A sistematização dos conhecimentos alternativos exige estarmos abertos para encarar rupturas, exige construção efetiva e exige solidariedade na construção.
Alvori Cristo dos Santos:
engenheiro agrônomo, técnico do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser).
Baixe o artigo completo:
Revista V2N3 – As contradições da economia de mercado: um olhar sobre a renda da agricultura agroecológica