Anésio da Cunha Marques,Valdir Frigo Denardin e Maurício Sedrez dos Reis
A erva-mate (Ilex paraguariensis A. St. Hil) é uma árvore de médio porte, de ocorrência natural no sub-bosque da Floresta com Araucária, formação típica das áreas mais altas do Sul do Brasil. A utilização das folhas da erva-mate já era comum entre as populações indígenas que habitavam o Sul da América do Sul bem antes da chegada dos espanhóis e portugueses. O uso da infusão dessas folhas ricas em cafeína e de vários outros compostos que lhe conferem propriedades estimulantes, nutricionais e medicinais se disseminou também entre os imigrantes e acabou configurando um dos principais itens da economia regional durante cerca de cem anos. Atualmente, estima-se que a exploração da erva-mate abranja por volta de 700 mil hectares em 180 mil estabelecimentos rurais.
As folhas do mate podem ser obtidas por meio do extrativismo nas florestas nativas ou da colheita em ervais plantados. Dados apontam que 57% da produção brasileira é obtida por extrativismo, sendo essa, em termos quantitativos, a principal atividade extrativista do Brasil (IBGE, 2013a; 2013b)
PAISAGENS, EXTRATIVISMO E A CONSERVAÇÃO PELO USO
A exploração da erva-mate nativa pode ser considerada como importante estímulo para a conservação ambiental, pois sua ocorrência no sub-bosque da floresta e seu significativo valor econômico conferem valor monetário à floresta em pé.
No entanto, os sistemas oficiais de extensão rural e de pesquisa agrícola sempre priorizaram o plantio da erva-mate, mas fora das áreas de floresta, muitas vezes incentivando o plantio monocultural e o uso de pacotes agroquímicos com adubações químicas e agrotóxicos. Além disso, a legislação ambiental é muito restritiva e praticamente impede o desenvolvimento de práticas de manejo nos ervais nativos junto às florestas.
Essa depreciação das práticas extrativistas pode ser fruto de certo preconceito, já que muitas vezes são consideradas atrasadas. De fato, o extrativismo da erva-mate em paisagens florestais ou agroflorestais não parece fazer parte do mundo dos técnicos. Por essa razão, o maior conhecimento sobre o manejo dos ervais nativos é proveniente da experiência acumulada pelos agricultores, que têm nessa atividade uma estratégia tradicional de reprodução econômica.
Outro aspecto importante nesse contraditório contexto está relacionado à dimensão legal concebida por uma diferenciação artificial das paisagens rurais entre paisagens de produção e paisagens de conservação (SILVEIRA, 2009). No entanto, o que de fato orienta a lógica de apropriação das paisagens pelos agricultores é a constituição de espaços de ambiguidade, ou seja, híbridos de natureza e cultura na paisagem rural, já que são ao mesmo tempo de conservação e de produção. Na visão urbana, e mesmo segundo muitos cientistas e técnicos com preocupações exclusivamente conservacionistas, o termo paisagens não remete a espaços habitados e manejados pelas populações locais.
Essas diferenças entre as perspectivas dos agricultores e as de muitos técnicos podem ser observadas nos debates sobre os ervais nativos no Planalto Norte Catarinense (PNC), a maioria integrante de florestas manejadas em associação com a criação de gado (caívas). Se, de um lado, esses remanescentes florestais possuem fisionomias bem distintas das florestas naturais, por outro, só persistiram até hoje na paisagem devido ao uso consorciado entre floresta, extração de erva-mate e criação de gado. Em suma: a conservação ambiental da floresta é assegurada pelo seu uso social enquanto fonte de renda.
A ideia de que existem paisagens que não sofreram alteração por atividades humanas, as paisagens prístinas, é um grande mito. Há evidências de que as Florestas com Araucárias, mesmo aquelas consideradas naturais, sofreram intervenções humanas no passa- do, notadamente dos povos Kaingang (REIS; LADIO 2012).
ERVAIS: CONSERVANDO AS PAISAGENS FLORESTAIS
Um estudo sobre as paisagens dos ervais realizado junto a agricultores familiares do PNC constatou que a cobertura florestal nativa média dos estabelecimentos rurais é de 42 % – bem maior do que a média estadual de 24%. Além disso, em 68% dessas áreas florestais, realiza-se o manejo da erva-mate, evidenciando a importante associação entre a atividade ervateira e a conservação da mata nativa.
Essa importância se torna ainda mais patente quando se constata que 65% das áreas ocupadas pelos ervais florestais possuem de excelente a boa aptidão agrícola e 21% possuem regular aptidão agrícola. Isso significa que são áreas que seriam convertidas em lavouras se não fossem ocupadas por atividades econômicas que fazem uso dos remanescentes florestais. De fato, a erva-mate é apontada em 80% das entrevistas como um dos principais motivos para que não ocorra a conversão.
“É tudo plaininho (a área do erval), bom para lavoura, mas ficou por causa do erval […] o pai falava: não vamos desmatar porque tem muita erva”. (Agricultor do PNC)
Em 55% das entrevistas, relatou-se o valor da combinação de produtos da floresta (madeira, lenha e erva-mate) com a criação de gado.
“Preservei a mata porque era o futuro para os filhos […] tinha a erva, tinha a lenha e mantinha o gado, mesmo no inverno brabo”. (Agricultor do PNC)
Outro aspecto que demonstra o valor do papel da atividade ervateira na conservação ambiental é o fato de que duas das principais espécies arbóreas ameaçadas de extinção da Floresta com Araucária apresentam alta frequência nos ervais nativos do PNC. A araucária (Araucaria angustifolia) está presente em 98%, enquanto a imbuia (Ocotea porosa) está em 79% dos ervais. Dessa forma, mesmo quando sub- metidas à pressão de pastejo, as áreas de ervais apresentam-se como importantes sistemas de conservação de espécies arbóreas ameaçadas de extinção.
Além disso, constatou-se que a quase totalidade dos ervais possui ligação direta com outros fragmentos florestais. Devido ao fato de apresentarem uma permeabilidade da matriz mais favorável do que a das áreas de lavoura ou de pastagens plantadas, conclui-se que elas contribuem para o aumento da conectividade e a diminuição dos efeitos de borda.
No entanto, apesar da importância dos ervais nativos para a conservação da biodiversidade, a legislação impõe restrições ao manejo produtivo dos remanescentes florestais, levando os agricultores a abandonarem a atividade ervateira. Em algumas situações, eles implantaram ervais em áreas abertas, tornando seus agroecossistemas ecologicamente mais frágeis e menos resilientes. Além disso, por conta das restrições ambientais, a conservação das florestas acaba significando uma penalização para os agricultores, pois suas terras são desvalorizadas por não poderem ser convertidas em áreas agrícolas.
“Junto com o erval foi ficando a mata […] O pai ia retirando muita erva-mate, alguma madeira, lenha, hoje não pode mexer em nada e, sem o “cuido”, a erva vai se aca- bando. Quem conservou as matas sofre com as leis e quem desmatou tem as terras valorizadas”. (Agricultor do PNC)
Frente a esse conflito socioambiental, o caminho não parece ser a autorização para desmatamentos, mas também não se deve impedir qualquer manejo, já que foi justamente o uso dessas áreas de mata, configuradas como paisagens culturais, que possibilitou a sua conservação. É preciso, portanto, desenvolver sistemas de manejo da Floresta com Araucárias que possam gerar divisas financeiras com a floresta em pé, na maioria das vezes associados à criação animal e complementados com políticas de paga- mento por serviços ambientais.
Nesse sentido, a construção de estratégias oficiais para o desenvolvimento de manejos da rural e de programas de fomento, buscando compatibilizar a geração de renda, a conservação genética e outras funções sociais e ecológicas da floresta em pé. Mas esse desafio deve ser enfrentado necessariamente a partir da revalorização dos conhecimentos dos agricultores e agricultoras que há décadas manejam a erva-mate e nem por isso deixaram de conservar suas florestas.
Anésio da Cunha Marques
Analista Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
[email protected]
Valdir Frigo Denardin
Professor da Universidade Federal do Paraná
[email protected]
Maurício Sedrez dos Reis
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]
Referências bibliográficas:
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MARQUES, A. C. As paisagens do mate e a conservação socioambiental: um estudo junto aos agricultores familiares do planalto norte catarinense. 2013. 434 f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.
MCNEELY, J. A. Ecoagricultura: alimentação do mundo e biodiversidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
REIS, M. S.; LADIO, A. H. Paisajes con Araucarias en Sudamérica: construcciones culturales precolombinas y del presente para producción de alimento. In: NAVARRO,V; ESPINO- SA, S. (Eds). Memorias de las Jornadas de reflexión acerca de los paisajes culturales de Argentina y Chile, en especial los situados en la región Patagónica. Rio Gallegos, Argentina: COMOS/UNPA/UMAG. v. 1, p. 224-244, 2012.
SILVEIRA, P.C.B. Híbridos na paisagem: uma etnografia de espaços de produção e de conservação. Ambiente & Sociedade, Campinas, v. 12, n. 1, p. 83-98, jan.-jun. 2009.
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Revista V11N3 – As paisagens dos ervais no Planalto Norte Catarinense e a conservação dos remanescentes florestais