Ronak Shah e Niranjan Ameta
Como resultado do aquecimento global, a agricultura nas zonas áridas vem sendo seriamente ameaçada, seja pelo aumento da temperatura, seja pela mudança no padrão de chuvas com o aumento das secas. Tais fatos estão diretamente ligados à redução da produtividade do solo e a uma maior incidência de pragas e doenças que vêm sendo verificadas nessas regiões. A segurança alimentar é assunto de importância crescente para as comunidades rurais que retiram seu sustento da agricultura. A adaptação às mudanças do clima é, portanto, uma preocupação central nesse contexto. Muitos esforços estão em curso para identificar abordagens e medidas para reduzir a vulnerabilidade das comunidades rurais aos impactos dessas mudanças. Este artigo apresenta um desses esforços: a experiência da combinação de práticas tradicionais e modernas facilitada pela ONG indiana Seva Mandir.
ADAPTAÇÃO TRADICIONAL
Dhala é um belo assentamento tribal localizado na região montanhosa de Udaipur, no Sul de Rajasthan (um estado do noroeste da Índia). Essa região tem um padrão de precipitação pluviométrica baixo e bastante errático, com períodos de seca a cada três anos. A maioria das propriedades tem menos de dois hectares. Como os sistemas de irrigação são pouco desenvolvidos, a maior parte da agricultura é dependente de chuva.
No final do século passado, os agricultores em Dhala, assim como os de outras comunidades rurais e tribais de Udaipur, vinham enfrentando muitas dificuldades, como degradação do solo, baixa disponibilidade de água e falta de conhecimentos e recursos para investir na melhoria da agricultura. Como resultado, obtinham baixos níveis de produção e de renda.
A variação climática é fenômeno comum e muito natural na zona árida de Udaipur, fazendo com que os sistemas agrícolas na região tenham que regularmente se adaptar a essas mudanças. Nesse processo, muitas práticas locais, simples e eficientes no uso de recursos, evoluíram com base nas experiências, ensaios, recursos e habilidades dos agricultores. Muitas delas, como as descritas a seguir, são hoje componentes essenciais dos sistemas agrícolas locais.
Cultivos consorciados
O policultivo consiste em cultivar duas ou mais espécies ao mesmo tempo, no mesmo local. Em Dhala, os agricultores cultivam milho junto com várias leguminosas, como grão-de-bico, feijão-da-índia (Phaseolus mungo) ou gergelim (Sesamum indicum). O policultivo é realizado em diferentes combinações: uma carreira de milho e uma de leguminosas; ou uma de milho, duas de leguminosas e outra de milho. A seleção de um consórcio em particular depende das condições do solo, da topografia e das demandas específicas do agricultor. Esses diferentes arranjos reduzem o risco de perda total das lavouras em períodos de pouca chuva. Assim, se a produção de milho é prejudicada, os agricultores podem contar com as leguminosas para geração de renda, com menor dispêndio de água. O policultivo também permite um melhor aproveitamento da terra, ao produzir diferentes cultivos ao mesmo tempo. Além disso, as leguminosas, por exemplo, fixam grandes quantidades de nitrogênio, contribuindo para o desenvolvimento do milho, assim como para a redução da presença de pragas e doenças.
Adubação verde
O uso de fertilizantes químicos tem sido favorecido nos últimos anos por subsídios governamentais e outros fatores externos. Em Dhala, no entanto, a tradicional prática da adução verde continua bastante disseminada. A adubação verde consiste no uso de crotalária (Crotalaria juncea), uma leguminosa forrageira com alto teor de nitrogênio. A espécie é cultivada durante as monções (estações de chuva) nos campos que receberão posteriormente trigo ou outros cultivos comerciais. As plantas são cortadas antes da floração e incorporadas ao solo, melhorando sua estrutura e fertilidade. A adubação verde também ajuda a controlar pragas, doenças e plantas espontâneas nos cultivos de inverno. Os agricultores de Dhala relatam que as produções de trigo são bastante boas nas áreas onde a crotalária foi cultivada. Muitos deles são favoráveis ao uso dessa prática. O maior empecilho à sua adoção é a necessidade de dedicar terra (e energia) para o seu cultivo durante as monções, que é a principal estação de plantio.
Cobertura morta
A cobertura morta é usada para reduzir a evaporação, assim como para prevenir a erosão do solo. Ela aumenta a infiltração de água e ajuda a evitar que as camadas superficiais do solo sejam carregadas por ventanias ou pelo escorrimento superficial da água. Em Dhala, a cobertura morta é usada no cultivo de tubérculos como cúrcuma (Curcuma longa) ou gengibre (Zingiber officinalis). Após a semeadura, as áreas são cobertas com folhas de khakhra (Butea monosperma) – uma leguminosa arbórea local altamente abundante –, que lá ficam até que as plantas cresçam. A adoção dessa prática também levou a um uso adicional da khakhra, que também pode ser empregada como adubo verde.
A INTRODUÇÃO DE PRÁTICAS AGRÍCOLAS MODERNAS
Seva Mandir é uma organização de desenvolvimento que tem trabalhado nos últimos 40 anos com mais de 600 comunidades rurais e tribais em Udaipur. Seus diversos programas abordam os temas dos recursos naturais, saúde, educação, mulher, criança e instituições locais. Há quase duas décadas a organização atua em Dhala, período no qual realizou várias intervenções voltadas à promoção do desenvolvimento local. Durante a primeira metade da década atual, foi implementado um programa de desenvolvimento integrado de microbacias com o intuito de melhorar a produtividade da terra e dos recursos hídricos, além de ajudar os agricultores a enfrentar o clima errático com secas frequentes. Ao longo do processo, foram promovidas práticas agrícolas inovadoras, envolvendo tanto a agricultura de sequeiro como a irrigada.
Sementes melhoradas
A agricultura em Dhala tem de conviver com um ambiente de pouca chuva e secas frequentes. Além disso, a água para irrigação é um luxo para as comunidades. Assim, a maioria dos agricultores se vê obrigada a privar-se de cultivar espécies que demandam mais água, como o trigo, ou a gastar grandes somas em irrigação. Para enfrentar esses problemas, foram difundidas variedades de maturação precoce e tolerantes à seca. A introdução dessas sementes deu-se em 2006, com dois agricultores, e espera-se abranger 60 famílias neste ano.
Vermicompostagem
Essa é uma prática da agricultura orgânica amplamente usada na produção de sequeiro. É empregada para aumentar a quantidade de nutrientes do solo e sua capacidade de reter água. Seu preparo envolve a compostagem de esterco de gado com biomassa vegetal, como folhas de nim (Azadirachta indica) ou resíduos de forragem, e o uso de minhocas para decompor tudo. A vermicompostagem também foi introduzida três anos atrás e já foi adotada por mais de cem agricultores.
Diversificação de cultivos
A dependência em apenas um ou dois tipos de culturas aumenta consideravelmente a vulnerabilidade dos sistemas agrícolas. A perda de uma lavoura pode comprometer significativamente a segurança alimentar, especialmente para a pequena produção realizada em áreas marginais. O trabalho de diversificação de cultivos em Dhala teve como objetivo justamente assegurar renda e alimentação para consumo próprio das famílias mesmo em casos de extremos climáticos. Como parte desse processo, os agricultores foram estimulados a cultivar hortaliças em pequenas parcelas e a plantar árvores em áreas degradadas (como as que vinham sendo usadas apenas como pastos).
Bancos de sementes
Bruzamentos dirigidos e a coleta de sementes para o plantio do ano seguinte são tradições antigas na Índia. Contudo, o desenvolvimento pelo governo de um sistema centralizado de fornecimento de sementes e a proliferação de variedades híbridas desarticularam essas práticas ao longo das últimas três ou quatro décadas, aumentando a dependência dos agricultores em relação às agências externas. O banco de sementes é uma tentativa de reviver, sob uma nova forma, os velhos sistemas locais de abastecimento. Com o apoio da Seva Mandir, um banco de sementes foi estruturado há dois anos, reunindo 17 agricultores que receberam as novas sementes de trigo e grão-de-bico. Atualmente, o banco conta com 45 membros, que também passaram a armazenar sementes de milho.
RESPOSTA DA COMUNIDADE
Durante séculos, os agricultores de Dhala seguiram muitas práticas tradicionais e locais de agricultura sustentável, a maioria das quais ainda está bem integrada a seus sistemas de produção. A adaptação às novas práticas tem sido gradual ao longo dos últimos anos. Atualmente, cerca de metade de todas as famílias agricultoras já experimentou ao menos uma dessas inovações, e os resultados têm sido estimulantes.
A título de exemplo, a variedade de sementes de trigo introduzida requer irrigação apenas duas vezes ao longo de todo o ciclo, enquanto que normalmente é preciso irrigar cinco ou seis vezes. Mais importante ainda é o fato de que a produtividade dessa nova variedade de trigo é praticamente a mesma das variedades comuns. Isso significa que o dinheiro gasto com bombeamento da água (em média 3 mil rúpias – cerca de R$ 150 reais – por hectare) é agora economizado. Além disso, os agricultores devolvem ao banco de sementes uma vez e meia o volume de sementes recebido da Seva Mandir, armazenando as para o próximo ano. Portanto, a comunidade está ficando menos dependente de sementes de fora.
Em relação à vermicompostagem, as famílias que a experimentaram obtiveram quantidades consideráveis de composto que está sendo todo usado na produção de hortaliças e demais produtos. Já a diversificação das culturas com a produção de cultivos alimentares, frutas e hortaliças permite que uma quantidade maior de alimentos fique disponível ao longo do ano. Na experiência local, pode-se afirmar que a adoção de novas práticas não significou uma contradição com relação à sabedoria tradicional. Os agricultores compreendem muito bem seu manejo tradicional e só aceitarão novas ideias e abordagens após avaliá-las. Os agricultores em Dhala consideram que os dois conjuntos de práticas são complementares. Dessa forma, uma vez convencidos de seus benefícios, eles passaram a incorporar as inovações em seus sistemas técnicos.
UMA ABORDAGEM VIÁVEL PARA A ADAPTAÇÃO ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
As diferentes intervenções em Dhala foram planejadas com o objetivo de enfrentar as dificuldades de sustento da comunidade por meio do aumento da produtividade da agricultura local. Esse processo, como mostram os resultados, está progredindo de forma bastante consistente e os objetivos estão sendo atingidos de forma satisfatória. Vale ainda ressaltar que, embora a adaptação às mudanças do clima não fosse um resultado esperado, as intervenções claramente refletem muitas medidas nessa direção, tanto em termos de mitigação no curto prazo quanto no que se refere à construção de resiliência no longo prazo.
Nesse sentido, a experiência em Dhala tem demonstrado a viabilidade da adaptação local às mudanças do clima global. Poucos anos atrás, o tema era tratado separadamente e as medidas de adaptação não eram vistas como parte constituinte de programas de desenvolvimento local. Já os debates recentes sobre o assunto, que enfocam a necessidade de adaptação, apontam para abordagens que podem ao mesmo tempo atender às necessidades do desenvolvimento. Afinal, as evidências vêm agora demonstrando que as medidas de adaptação não podem estar dissociadas das atuais agendas de desenvolvimento e é necessário buscar formas de articular ambos os desafios.
Já se reconhece o fato de que sistemas agrícolas de sequeiro em comunidades como Dhala apresentam um bom grau de resiliência para enfrentar os impactos das mudanças climáticas. O conhecimento tradicional e as práticas agrícolas nele baseadas são um ingrediente vital na atual necessidade de adaptação. Por outro lado, estamos todos testemunhando que o ritmo da mudança do clima é muito mais rápido que as variações climáticas naturais e prevê-se que seus efeitos sejam mais severos. Os sistemas agrícolas locais já estão enfrentando dificuldades e os métodos tradicionais podem não ser suficientes para fazer frente a seus impactos. A adaptação gradual não será uma alternativa viável e os agricultores terão de se preparar para as mudanças drásticas que estão por vir.
A ideia de associar práticas agrícolas tradicionais com práticas inovadoras, como vem ocorrendo em Dhala, demonstrou ser um caminho para reduzir a lacuna existente entre a vulnerabilidade e a resiliência dos atuais sistemas. Com base em suas próprias avaliações e demandas, os agricultores em Dhala estão integrando práticas novas e velhas, com resultados positivos:
“Este ano pudemos fazer o plantio tardio e choveu próximo à média. Mesmo assim nosso milho está quase no ponto de colheita (mais cedo que o comum) e a produção será maior do que estamos acostumados…”.
Num futuro próximo, os sistemas agrícolas em Dhala apresentarão diferentes combinações de práticas agrícolas tradicionais com inovadoras. Acreditamos que tais combinações ampliarão a capacidade de adaptação dos sistemas locais e reduzirão o tempo de adaptação às mudanças climáticas. E, ainda que os sistemas precisem se aclimatar às variações do meio ambiente, gozarão da vantagem dos modernos conhecimentos sobre riscos e impactos das mudanças climáticas.
O CAMINHO ADIANTE
Ao reconhecer que as zonas áridas são altamente vulneráveis aos efeitos da mudança do clima, atualmente a Seva Mandir planeja promover diferentes medidas de adaptação junto a outras comunidades na região. A abordagem adotada em Dhala apontou um caminho a seguir. A organização trabalhou com desenvolvimento rural com cerca de 80 comunidades, em todos os casos atuando conjuntamente com as samuh (organizações de base local). A Seva Mandir também acredita firmemente que nesse tipo de trabalho os enfoques “de baixo para cima” são mais adequados, uma vez que estão mais próximos das comunidades e aumentam a sustentabilidade social dos processos de desenvolvimento. Portanto, os esforços devem ser permanentes para permitir que se identifique a emergência local de novas tendências que gerem soluções para a adaptação às mudanças climáticas.
Agradecimentos
Os autores gostariam de expressar sua gratidão pelo apoio oferecido à Seva Mandir pela Organização Intereclesiástica para a Cooperação ao Desenvolvimento (Icco) e pela Kerk in Actie.
Ronak Shah e Niranjan Ameta
técnicos de Seva Mandir
[email protected]
Referências Bibliográficas
DIXIT, S.; WANI, S.; REDDY, R.; ROY, S.; PATHAK, P.; REDDY, B. Participatory varietal selection and village seed banks or self-reliance: Lessons learnt. Hyderabad: International Crops Research Institute for the SemiArid Tropics, 2005.
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MCGRAY, H.; HAMMIL, A.; BRADLEY, R. Weathering the storm: Options for farming adaptation and development. Washington: World Resources Institute, 2007.
Baixe o artigo completo:
Revista V6N1 – Associando práticas tradicionais e modernas na adaptação às mudanças climáticas