Antônio Augusto Lopes Neto, Auxiliadora Feital, Isabel de Luanda Lopes, Angélica Almeida e Liliam Telles
Este texto aborda o trabalho de acompanhamento e sistematização das informações coletadas pela pesquisa intitulada Caderneta Agroecológica (CA) do Programa mulheres e Agroecologia, vinculado ao centro de tecnologias Alternativas da zona da mata (CTA-ZM). A CA é um instrumento de mensuração criado pelo CTA-ZM para auxiliar na administração da produção de mulheres agricultoras, por meio do registro do consumo, da troca, da venda e da doação do que é cultivado nos quintais produtivos.
Ao sistematizar o trabalho das agricultoras familiares, a caderneta dá visibilidade à contribuição da mulher na manutenção da unidade produtiva, promovendo a Agroecologia, a segurança alimentar e nutricional e a geração de renda.
Realizada em 14 municípios da Zona da Mata Mineira ao longo de 2014, a pesquisa sistematizou as informações coletadas pela equipe do programa a partir do registro das atividades de 64 agricultoras, gerando um banco de dados que pretende apresentar as experiências agroecológicas protagonizadas pelas mulheres na região.
A sistematização e a socialização das experiências das mulheres por meio da CA têm como objetivo incentivar as organizações a adotarem enfoques de trabalho sensíveis às desigualdades de gênero, contribuindo para reafirmar que o fortalecimento da Agroecologia só será possível com a radicalização do feminismo, ou seja, rompendo com a ordem social que historicamente desvaloriza e penaliza as mulheres.
A CA incorpora as contribuições da economia feminista, atrelando a dimensão do trabalho doméstico e de reprodução a um conceito de economia centrado na sustentabilidade da vida, e não apenas em relações de mercado (CARRASCO, 2012). Com isso, confere visibilidade ao aporte econômico gerado pelas mulheres, reconhecendo o trabalho não remunerado como parte de um mecanismo de submissão e exploração que marca as relações patriarcais.
Ao mesmo tempo, a caderneta é a afirmação do papel das mulheres camponesas na construção da Agroecologia. As informações coletadas dão conta da contribuição das mulheres, que vai muito além da esfera reprodutiva. Ao se dedicarem aos agroecossistemas, as mulheres têm permitido a existência de uma enorme variedade de sementes, alimentos, plantas medicinais e saberes, garantindo soberania e segurança alimentar e nutricional, saúde e renda para as famílias.
TRABALHO INVISÍVEL
A sistematização das experiências tem sido uma prática comum adotada por entidades do campo agroecológico para construir esse novo paradigma de desenvolvimento rural (CARDOSO; SCHOTTZ, 2009). Não raro esse recurso metodológico é utilizado para o intercâmbio de saberes entre técnicos, agricultores e ativistas, que passam a valorizar os conhecimentos dos camponeses como elementos dinamizadores dos processos de transformação social. É a partir dessas experiências sistematizadas, localizadas nos mais distintos contextos e territórios, que tem se tornado possível a elaboração de novos referenciais técnico-metodológicos para a construção da Agroecologia (FERREIRA; SCHOTTZ, 2010).
No entanto, sob um olhar mais criterioso, percebe-se que, na maior parte das vezes, os homens são apresentados como protagonistas das experiências bem-sucedidas, ocultando a contribuição das mulheres camponesas. Ainda são raros os estudos com enfoque no trabalho produtivo realizado pelas mulheres nos agroecossistemas. Em geral, destaca-se a atuação da família ou do homem, sem questionar as relações sociais de poder vigentes, o que reforça a invisibilidade e a desvalorização do trabalho feminino.
A estrutura da sociedade patriarcal capitalista hierarquiza o trabalho, impondo uma divisão não natural entre mulheres e homens, entre produtivo e reprodutivo, entre público e privado. Dessa forma, o trabalho doméstico é visto como dever e obrigação das mulheres, sendo naturalizado, desqualificado e, por consequência, invisibilizado. Os espaços ocupados pelas mulheres aparecem secundarizados e menosprezados, em clara oposição àqueles espaços tradicionalmente dominados pelos homens.
Assim, o amplo leque de contribuições das mulheres, que desempenham diversas atividades reprodutivas e produtivas, agrícolas e não agrícolas, simplesmente não é reconhecido como trabalho e não é contabilizado.
Diante da constatação de que as desigualdades nas relações de gênero constituem um obstáculo à construção de estilos mais sustentáveis de desenvolvimento, as organizações têm buscado novos enfoques metodológicos sensíveis a essa temática (PACHECO, 2009). Nesse sentido, a CA ganha legitimidade, na medida em que busca dimensionar a contribuição produtiva das mulheres camponesas, consolidando a premissa de que Sem Feminismo não há Agroecologia.
ANOTAR PARA COMPROVAR
A partir de janeiro de 2014, a equipe responsável pelo monitoramento da Caderneta Agroecológica passou um ano visitando agricultoras e recolhendo informações sobre o seu dia a dia. Um grupo de 64 agricultoras familiares de 14 municípios da Zona da Mata foi selecionado, tendo como único requisito o cultivo de quintais produtivos.
Por meio de entrevistas semiestruturadas, visitas a campo e análises dos dados registrados, foi possível compor um quadro revelador da efetiva contribuição feminina na gestão dos agroecossistemas.
Em primeiro lugar, é notável a enorme diversidade biológica dos quintais, que só é possível graças ao refinado trabalho de manejo realizado pelas mulheres. Em uma contagem feita a partir dos registros nas CAs, enumeramos 142 espécies, abrangendo hortaliças, plantas medicinais, flores, árvores frutíferas e pequenos animais. Se incluirmos os alimentos processados e artesanatos, o número de produtos sobe para 212.
Ainda em relação ao manejo, é possível observar o emprego de um conjunto de práticas agroecológicas, como cobertura morta, adubação orgânica, caldas caseiras, homeopatia aplicada à família e também à agricultura, uso responsável das fontes de energia e rotação de culturas.
A produção para o autoconsumo também merece destaque, uma vez que a maior parte da alimentação das famílias provém dos quintais, sendo que, em média, 70% de todos os produtos consumidos mensalmente são cultivados pelas mulheres. Por sua vez, a renda obtida pela venda dos gêneros alimentícios produzidos nos quintais chega a superar o valor da produção destinada ao autoconsumo, girando em torno de dois salários mínimos por mês. Para algumas famílias, essa é a principal fonte de renda. Em certos casos, verificou-se que a contribuição econômica das mulheres ultrapassou a renda gerada pela venda do café, principal cultura comercial da região. Do ponto de vista econômico, portanto, a CA possibilitou visibilizar a importância das mulheres na produção para o autoconsumo, na promoção da saúde e na geração de renda das famílias.
Observamos, contudo, que o acesso aos insumos, como esterco, húmus, sementes e mudas, é uma das dificuldades enfrentadas por quase todas as mulheres para manter os seus quintais produzindo. Devido ao manejo convencional do gado na região, a maioria das mulheres não tem uma fonte segura de esterco ou húmus, sendo obrigada a comprar ou, simplesmente, deixar de usar. Muitas agricultoras também não conseguem produzir sementes e mudas na propriedade, sendo necessário adquirir materiais convencionais nos mercados. Além disso, as secas prolongadas na região têm afetado negativamente os quintais, reduzindo a sua produtividade. Por outro lado, têm estimulado as discussões em torno do uso de tecnologias adequadas à realidade das famílias para o manejo dos recursos hídricos.
Outro aspecto constatado nas reflexões realizadas com as mulheres é a diminuição no cultivo de hortaliças não convencionais e uma tendência à padronização dos tipos de plantas cultivadas, especial- mente entre as famílias que comercializam para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) ou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), interferindo na diversidade de alimentos produzidos nos quintais.
Por fim, o acesso aos mercados institucionais ainda é restrito para as mulheres, apesar de a comercialização ser muito presente. No entanto, de modo geral, as mulheres ainda não dominam a relação com o mercado, o que se expressa na baixa diversidade dos canais de comercialização acessados (feiras, pontos de venda, mercados institucionais). Além disso, há dificuldades para a agregação de valor aos produtos, que tem sido objeto de ação da assessoria do CTA, contribuindo para reduzir as perdas da produção de quintais.
CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS FUTURAS
A CA é o resultado do esforço intelectual e político de mulheres no sentido de construir novas ferramentas de análise da realidade social, configurando-se como uma estratégia voltada para dar visibilidade e valorizar o trabalho realizado pelas mulheres em agroecossistemas, promovendo o empoderamento das agricultoras e o fortalecimento de suas bandeiras. Nesse sentido, é um instrumento metodológico que contribui para fortalecer o elo entre a luta das mulheres e a construção da Agroecologia.
Além disso, é importante registrar os ganhos políticos que essa ação tem possibilitado na Zona da Mata de Minas Gerais. Observarmos um fortalecimento e uma maior autonomia das mulheres que passaram a utilizar o instrumento, como relatado pela agricultora Maria da Conceição Caetano, de Acaiaca (MG):
“A caderneta vem para nos mostrar aquilo que a mulher acha que não faz. Quando a gente anota tudo o que produz e vê tudo o que deixa de comprar no mercado, a gente vê que não sabia que trabalhava. Eu chegava a falar: eu estou tão cansada e não fiz nada.”
Com a quantificação e a qualificação dos dados obtidos, espera-se subsidiar debates sobre políticas públicas voltadas especificamente às mulheres rurais, a exemplo de serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), crédito rural e mercados institucionais.
Antônio Augusto Lopes Neto
Auxiliadora Feital
Isabel De Luanda Lopes
Angélica Almeida
Liliam Telles
Integrantes da equipe técnica do Programa Mulheres e Agroecologia do CTA-ZM
[email protected]; [email protected]
Referências Bibliográficas:
CARDOSO, Elisabeth Maria; SCHOTTZ, Vanessa. Mulheres construindo a Agroecologia no Brasil. Revista Agriculturas, v. 6, n. 4, dez. 2009.
CARRASCO, Cristina. Estatísticas sob suspeita: proposta de novos indicadores com base nas experiências das mulheres. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista (SOF), 2012.
FARIAS, Nalu; NOBRE, Mirian (Org.): Economia Feminista. São Paulo: SOF, 2002.
FERREIRA, Ana Paula; SCHOTTZ, Vanessa. Intercâmbio e sistematização de experiências protagonizadas por mulheres. Mulheres e Agroecologia: sistematizações de experiências de mulheres agricultoras, v.1, 2010.
PACHECO, Maria Emilia. Os caminhos das mudanças na construção da Agroecologia pelas Mulheres Agricultoras. Revista Agriculturas, v. 6, n. 4, dez. 2009
Baixe o artigo completo:
Revista V12N4 – Caderneta agroecológica empoderando mulheres, fortalecendo a agroecologia