Pablo Sidersky, Felipe Jalfim e Espedito Rufino
O período colonial deu início às políticas públicas para o meio rural brasileiro, com a marca da exclusão social e orientação para o apoio às lavouras senhoriais, sendo o melhor exemplo disso o cultivo da cana-de-açúcar. Em meados dos anos 1980, com o fim da ditadura militar e a partir do clamor popular, a pobreza no meio rural entrou no rol das pautas dos governos. Data dessa época a primeira geração de políticas que tinham como objetivo a diminuição da pobreza, como o Programa de Apoio à Pequena Produção (PAPP), uma iniciativa que contou com o financiamento do Governo Federal e do Banco Mundial. No entanto, apesar de o discurso desses programas fazer referência à necessidade de participação das populações-alvo, eles tiveram pouco êxito na empreitada de reduzir a pobreza no meio rural.
No final dos anos 1990, depois de ampla pressão dos movimentos sindicais e sociais do campo, foi institucionalizado o Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf), no qual se destaca a concessão de crédito. Depois de 2000, outras iniciativas importantes vieram se somar ao Pronaf. Apesar do advento desses novos programas, nas regiões mais pobres (como o Norte e o Nordeste), foi constatado que as famílias continuavam numa situação praticamente idêntica àquela do passado. Estudos realizados sobre o Pronaf indicaram que muitas dessas famílias não tinham acesso às políticas em questão. Em outros casos, o acesso acontecia, mas os resultados eram deficientes (MDA/FAO/UFSM, 2004).
Foi nesse contexto que o Projeto Dom Helder Camara (PDHC) se iniciou. O projeto nasce como uma das respostas governamentais à ampla e histórica mobilização dos movimentos sindicais e sociais, ONGs, Igrejas, especialmente da região semiárida nordestina, por ações permanentes para o desenvolvimento da agricultura familiar dessa região. Este texto apresenta a forma de atuar do Projeto Dom Helder, tomando como ilustração a sua interação e os seus efeitos sobre a trajetória dos agroecossistemas do assentamento Moacir Lucena, localizado no município do Apodi, semiárido do Rio Grande do Norte. Nas conclusões, resgatamos algumas lições, buscando identificar elementos centrais para a elaboração de políticas que tenham uma real contribuição para a superação da pobreza rural, pautados na perspectiva agroecológica.
OS AGROECOSSISTEMAS NO ASSENTAMENTO MOACIR LUCENA
Em termos gerais, o desenho dos agroecossistemas de gestão familiar do assentamento Moacir Lucena segue o formato tradicional da região, que comporta a combinação de culturas anuais (os roçados) com criação animal. Agregam-se a isso um pomar de caju de um hectare, além de um quintal onde se encontram algumas fruteiras e as criações características desse espaço (principalmente aves). Porém, com suas parcelas de 20 hectares, mais o pomar de caju e o roçado na área coletiva, esses sistemas demonstram ser pequenos para o semiárido. Como tantas outras famílias da região, os assentados de Moacir Lucena estão confrontados pela necessidade de intensificar a produção vegetal e animal. Assim, eles buscam diversas inovações para reforçar a produção global, sem perder de vista a sustentabilidade ambiental. Vejamos a seguir com mais detalhes como se dá essa busca por inovações.
As mudanças no roçado
A principal novidade dos roçados se refere a sua integração com a criação animal. Atualmente a maior parte do milho e todo o sorgo são plantados com o objetivo de fornecer ração para os animais, que é quase toda armazenada na forma de silagem e feno. Essa opção por plantar para produzir ração representa uma diferença importante em relação ao roçado tradicional. Embora a palha do milho sempre tenha sido usada como alimentação para os animais, esse nunca havia sido o objetivo central. Por outro lado, a prática de plantar para produzir ração mudou também a forma com que essas culturas são usa- das. Antes o restolho era pastejado diretamente pelos animais, e agora o milho e o sorgo são colhidos e armazenados, sendo fornecidos aos animais no cocho. Essa mudança no foco do roçado foi fruto de intercâmbios entre agricultores de Moacir Lucena e as Unidades Demonstrativas (UDs) de criação de caprinos implantadas em outros assentamentos do território do Apodi com o apoio do projeto Dom Helder (Quadro 1).
A volta do algodão
Nos anos 1980, o bicudo-do-algodoeiro pareceu dar o tiro de misericórdia numa cultura que foi durante muito tempo a principal fonte de renda dos sertões nordestinos. No final do século passado, o algodão estava praticamente extinto em toda a região. Na região do Apodi não foi diferente. Mas a situação em Moacir Lucena contradiz esse quadro, já que metade da área cultivada no assentamento (60 hectares) é ocupada pelo plantio do algodão.
Segundo explicação de um assentado: “Assim como é necessário aprender a conviver com o semiárido em lugar de lutar contra a seca, também é necessário aprender a conviver com o bicudo. ”O segredo que está permitindo essa convivência se baseia em duas estratégias: no plantio na mesma data por todos os agricultores que plantam algodão; e no plantio precoce, após as primeiras chuvas. Essas duas técnicas, em uso há três anos, têm conseguido estabelecer a convivência com o bicudo, garantindo uma colheita e uma renda muito bem-vinda.
O reforço da criação animal
A novidade na criação de animais em Moacir Lucena é o fato de que parte da produção de leite de cabra vem sendo comercializada in natura para uma empresa local. Além disso, o rebanho caprino disponibiliza carne e leite para o autoconsumo, assim como para venda na vizinhança e na feira local. Mas o assentamento planejou também a implantação de uma unidade de beneficiamento do leite para fabricação de queijo (tipo coalho e ricota) e doce de leite (Quadro 2). Agora as famílias já pensam em como melhorar essa unidade para conseguir a certificação de inspeção, pelo menos, municipal.
APRENDENDO A MANEJAR A CAATINGA DE FORMA DIFERENTE
Tradicionalmente, a caatinga não é manejada, no sentido mais estrito da palavra. Ela é pastoreada pelos animais em sua forma natural, é derrubada para abrir a área para o roçado, e depois a capoeira é usada como fonte de forragem para os animais. Uma das iniciativas inovadoras que aconteceram nesse assentamento foi a instalação de uma Unidade Demonstrativa de manejo de caatinga. Essa UD, implantada no lote de um assentado, já tem cerca de quatro anos de idade. Inicialmente, foram feitas as principais ações de manejo – o raleamento e o rebaixamento – em um hectare de caatinga. Além dessas ações, vale ressaltar que o agricultor em cuja parcela foi instalada a experiência tem muito cuidado com o uso da área. Ele só permite a entrada de animais a partir do terceiro ano. Por isso ele tem uma cerca que separa a área manejada mais antiga das mais recentes.
Pouco a pouco, o dono da parcela expandiu a área para cerca de quatro hectares. Ao manejo inicial ele acrescentou o enriquecimento, plantando espécies mais desejadas (cajarana, sabiá, aroeira, cunhã, etc). A forma de implantação foi evoluindo com o tempo: enquanto que a primeira área foi integralmente manejada, nas subsequentes o agricultor fez o manejo por faixas, deixando áreas de caatinga sem manejar entre as áreas manejadas.
O assentado que assumiu a UD, um verdadeiro entusiasta dessa forma de manejo da caatinga, aponta vários resultados interessantes. Em primeiro lugar, tem a recuperação da caatinga e, ao mesmo tempo, um significativo incremento na produção de forragem. O segundo resultado importante é o pasto apícola, que é aproveitado pela criação de abelhas que o agricultor mantém nessa área. Por último, ele destacou um terceiro produto que também vai ser uma fonte de renda: a madeira (pau branco e estacas de sabiá). Embora vários desses resultados sejam relevantes e tenham significado um acréscimo na produção e na renda familiar, o que mais chama a atenção dessa experiência é que ela não ficou restrita à propriedade da família do experimentador. Atualmente, das 20 parcelas familiares do assentamento, 18 têm uma área de caatinga manejada.
A apicultura
Essa atividade não era tradicional na região, mas se iniciou no assentamento com os primeiros projetos Pronaf A, por meio da introdução de 10 caixas de abelhas e uma casa do mel. Além de contar com assessoria técnica permanente, as famílias do assentamento participaram de uma capacitação e de visitas de intercâmbio sobre o assunto (promovidas no âmbito do Projeto Dom Helder), o que certamente teve um papel importante na consolidação dessa atividade no local. Atualmente, todas as famílias assentadas têm caixas de abelhas. As que têm menos possuem 20 caixas, mas algumas têm até 100 caixas. A apicultura tem permitido a obtenção de uma renda interessante, com um custo pequeno.
AS LIÇÕES SUGERIDAS PELO CASO APRESENTADO
Os resultados: a consolidação do assentamento
Na entrada do novo milênio, o Assentamento Moacir Lucena estava engatinhando, e as famílias sobreviviam com dificuldade. Hoje, as famílias assentadas expressam com clareza um sentimento de satisfação. De lá para cá, elas tiveram acesso a uma moradia e a infraestruturas de captação e armazenamento de água. A organização local se fortaleceu. Mas cabe assinalar também que, durante esse período, foram implantadas vinte unidades familiares bastante produtivas que, ao mesmo tempo, buscam conservar a base de recursos da qual dependem.
O que chama a atenção no assentamento é que a consolidação dos agroecossistemas de gestão familiar não está se dando prioritariamente pela introdução de novos componentes, mas sim pela evolução de um agroecossistema que poderíamos chamar de tradicional. Observa-se que a criação de caprinos é o carro chefe da agricultura tradicional na região, mas em Moacir Lucena houve um conjunto de inovações nessa atividade que a potencializaram, tais como: o melhoramento genético do rebanho; mudanças na produção de ração, com a introdução da silagem e o feno; aprimoramento do manejo da caatinga, que permite aumentar a produção de forragem e, ao mesmo tempo, conservar a própria caatinga. Esta última inovação favoreceu ainda a difusão de uma atividade produtiva nova integrada à caatinga: a apicultura. Finalmente, com a implantação da unidade de beneficiamento do leite, a comunidade busca agregar mais valor ao seu principal produto.
Embora ainda existam desafios a serem superados, não há dúvida de que esses agroecossistemas tradicionais estão num processo de evolução bastante forte, no sentido de fazer crescer produção e renda. Ao mesmo tempo, essas mudanças buscam não somente manter, mas também aprimorar a base de recursos naturais. O Assentamento Moacir Lucena pode ser visto, portanto, como exemplo, em se tratando da construção de meios de vida mais sustentáveis para um conjunto de famílias do semiárido brasileiro. E é justamente por isso que interessa identificar quais foram os fatores que explicam essa trajetória positiva.
Os fatores que ajudaram
Não há dúvida de que a história desse assentamento é, em primeiro lugar, a história de um grupo de famílias corajosas e decididas. Elas são originárias do lugar, sendo “praticamente uma família só”, nas palavras de um assentado. O processo de ocupação da fazenda permitiu o surgimento de uma organização local que per- dura e que potencializa a iniciativa das famílias.
No início da vida produtiva do assentamento, também foi fundamental o aporte de outras iniciativas, como os recursos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, em menor medida, do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), que permitiram montar a infraestrutura social (moradia, água, etc). O crédito do Pronaf A também teve um papel importante na estruturação dos sistemas produtivos (cercas, rebanho, pomar de caju, apiário, etc.). Cabe mencionar ainda os projetos Fisp, financiados pelo Projeto Dom Helder, que foram responsáveis pela ampliação dos rebanhos, pela instalação de uma unidade de beneficiamento de leite e por investimentos no campo do lazer comunitário (quadra de esportes).
Entretanto, outros assentamentos recebem recursos de diversas fontes, seja para investimento em mora- dia ou em atividades produtivas, mas não tiveram uma trajetória bem-sucedida. Em Moacir Lucena, além das características do grupo já mencionadas, existe uma Assessoria Técnica Permanente (ATP) dotada de um conjunto de instrumentos de aprendizagem e balizada por uma perspectiva agroecológica e por uma estratégia de desenvolvimento territorial, interagindo com as famílias.
As principais características do Projeto Dom Helder Camara
Partindo da constatação de que a pobreza tem várias dimensões e, portanto, que a solução da mesma não se dá apenas com um incremento da produção agro- pecuária, o PDHC busca superar o viés da Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) convencional. Para tanto, define o escopo do seu trabalho de forma abrangente: a assessoria técnica deve trabalhar não somente com o tema da produção, mas deve dar atenção também às várias dimensões da vida das famílias assentadas, tais como o fortalecimento das organizações, o acesso às políticas públicas, além da promoção de uma maior igualdade de gênero e protagonismo da juventude.
Além de propor uma assessoria de espectro amplo, o Projeto Dom Helder busca inovar no que se refere aos métodos de trabalho, ao favorecer uma abordagem participativa no planejamento das atividades, garantindo assim uma maior compreensão dos anseios das famílias. Esse enfoque metodológico é complementado pela utilização de ferramentas adequadas, tais como as Unidades Demonstrativas (PDHC, 2004), os projetos Fisp e os intercâmbios entre agricultores.
Cabe destacar que, em lugar de buscar promover a modernização dos agroecossistemas de gestão familiar com base principalmente na matriz técnica clássica da Revolução Verde, o Projeto Dom Helder se apóia na Agroecologia para sugerir inovações que sejam mais produtivas em termos econômicos e ao mesmo tempo mais sustentáveis do ponto de vista social e ambiental.
A estratégia de assessoria técnica prevê que ela esteja presente assiduamente nas comunidades e assentamentos. Mas como o Projeto Dom Helder não atua diretamente nas comunidades, ele contrata organizações chama- das de Parceiras de ATP para fazer isso. Em geral, tratam-se de ONGs ou cooperativas de técnicos, que se comprometem então a ter equipes que prestam assessoria técnica nos assentamentos e comunidades. Para reforçar o trabalho dessas entidades, o Projeto Dom Helder dispõe de técnicos(as) com perfil de especialistas com atuação territorial (por exemplo: especialista em cajucultura, gênero ou geração), os quais atuam em suas especificidades de conhecimentos de forma planejada e integrada com os(as) técnicos(as) de ATP de perfil mais eclético, de assessoria geral às famílias. Além disso, o Projeto Dom Helder estimula e apóia os movimentos sindical e social a formarem grupos de Mobilizadores Sociais, que atuam de forma integrada aos outros atores mencionados, porém, com uma contribuição específica na organização social das famílias e no controle social dos serviços de ATP que são prestados pelas entidades contratadas. A estratégia, portanto, consiste em atuar em um território com uma equipe de especialistas trabalhando em colaboração com as equipes locais de ATP e os Mobilizadores Sociais.
A atuação do PDHC em Moacir Lucena
A Parceira de ATP que trabalha em Moacir Lucena é a Cooperativa de Assessoria e Serviços Múltiplos ao Desenvolvimento Rural (Coopervida). O Projeto Dom Helder estabeleceu com ela um contrato que tem como referências o marco teórico-metodológico e a estratégia do projeto, que refletem a própria experiência acumulada da entidade. A parceria que tem se formado entre os técnicos e as famílias do assentamento no desenho de novos sistemas produtivos mais sustentáveis tem sido importante para a experimentação e a adaptação da proposta de manejo de caatinga. A assessoria também favoreceu a difusão da apicultura, a melhoria do rebanho, etc. O enfoque agroecológico orientou o desenho dos novos sistemas produtivos, ao promover um melhor aproveitamento e preservação dos recursos da caatinga. A Agroecologia também orienta tecnicamente a retomada do plantio do algodão em consórcio com espécies alimentares.
Essas experimentações, que tanto ajudaram a modelar os agroecossistemas e os espaços coletivos de produção, foram cruciais para a elaboração de projetos de crédito do Pronaf A, Pronaf Infraestrutura e, mais recentemente, dos projetos Fisp. Portanto, os projetos de crédito, que em muitos assentamentos são mais um problema, em Moacir Lucena desempenharam um papel importante na consolidação das unidades familiares e das ações coletivas do assentamento.
PARA TERMINAR
A experiência do Projeto Dom Helder tem demonstrado que a superação da pobreza rural no semiárido brasileiro passa por uma abordagem conceitual holística e sistêmica da agricultura familiar, rompendo com a tradicional abordagem compartimentalizada da realidade rural. Para tanto, é necessário que os programas e projetos, por um lado, sejam direcionados aos anseios, potencialidades e projetos de vida das famílias e suas comunidades e, por outro, considerem a multidimensionalidade da pobreza rural. Interagir com esses vários aspectos significa, portanto, avançar no conceito e na prática de uma assessoria técnica às famílias que de fato as faça desenvolver uma maior capacidade de encontrar soluções para os problemas que estão ao seu alcance direto. Esse enfoque também busca ampliar o fortalecimento organizacional nos diversos níveis (local, municipal, territorial, estadual e nacional) para a elaboração e acesso, cada vez maior e melhor, às políticas públicas voltadas para a agricultura familiar no Brasil.
Por fim, cumpre ressaltar que a aplicação do enfoque agroecológico em programas governamentais de superação da pobreza rural, com ênfase na valorização do saber popular, na troca de conhecimentos e nas metodologias participativas, é algo novo, ainda em construção. Exige a quebra de velhos paradigmas e muito investimento em formação de quadros com outra concepção de desenvolvimento e novas formas de compreender os processos que levam às transformações socioeconômicas, políticas e ambientais no meio rural. Exige ainda um repensar do tempo de vida necessário a um programa de superação da pobreza rural, que considere os tempos de resposta dos agroecossistemas, das famílias e comunidades envolvidas no programa.
Pablo Sidersky
economista, mestre em Sociologia Rural
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Felipe Jalfim
veterinário, mestre em Agroecologia
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Espedito Rufino
economista, doutor em Economia do Desenvolvimento
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Referências Bibliográficas:
MDA/FAO/UFSM. Perfil dos serviços de Ater no Brasil: análise crítica de relatórios. Brasília: MDA; FAO; UFSM, 2004. 102 p.
PDHC. Questões relacionadas à implantação de Unidades Demonstrativas no PDHC – Orientações para 2004. Recife: PDHC, 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N4 – Combate à pobreza rural e sustentabilidade no semiárido nordestino: a experiência do projeto Dom Helder Camara