Quando convidado para contribuir nesta edição da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, me senti à vontade, pois o tema me é bastante familiar. Saúde pela Natureza é o nome de um grupo de pessoas que acompanho há alguns anos e que se reúne semanalmente no bairro de Campo Grande, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, para praticar aquilo que muitas de nossas bisavós já faziam: preparar remédios caseiros a partir das ervas medicinais, ensinar suas receitas e repassar seus conhecimentos sobre os cuidados com a saúde da família e da comunidade.
Esta edição revela que essas práticas de promoção da saúde permanecem enraizadas nas tradições culturais do nosso povo. Seja no campo ou nas cidades, essas tradições se baseiam em saberes construídos na relação direta com a natureza e seus recursos. Por outro lado, os artigos também chamam a atenção para o fato de que o avanço dos hábitos de vida modernos vem provocando o abandono dessas práticas populares e a perda de conhecimentos a elas associados.
Mesmo para os tratamentos banais do dia-a-dia, os remédios caseiros deixam de ser utilizados para dar lugar aos medicamentos vendidos pelas indústrias farmacêuticas. O consumo de refrigerantes e de sucos envasados acrescidos de conservantes e outros aditivos industriais se sobrepõe ao consumo dos sucos de frutas frescas, muitas vezes disponíveis nos quintais. Verduras produzidas com o emprego de agrotóxicos e outros contaminantes são adquiridas nos mercados quando poderiam ser em grande parte cultivadas de forma saudável pelas próprias famílias. Além dos efeitos negativos sobre a saúde dos consumidores, os agroquímicos causam danos particularmente graves a trabalhadores e trabalhadoras rurais que os aplicam.
A crescente assimilação desses novos padrões de produção e consumo nas sociedades contemporâneas ocorre num ambiente cultural cuja noção de modernidade está fortemente associada à mecanização, à padronização, à esterilização e à cientificização inerentes aos processos industriais. O avanço da modernização representa, nesse sentido, um maior distanciamento entre a sociedade e a natureza e, com isso, a desvalorização dos conhecimentos populares sobre o uso de recursos naturais.
Ao demonstrarem a íntima relação entre agricultura e saúde, as experiências em agroecologia aqui publicadas apontam caminhos para a construção de uma sociedade mais saudável. Como ciência aberta ao diálogo com os saberes populares, a agroecologia revaloriza as tradições situando-as em um campo de estudo a ser aprimorado de forma participativa por cientistas, técnicos(as) e agricultores(as).
O artigo produzido pela ONG World Neighbors (Vizinhos Mundiais), uma organização internacional que atua por meio de parcerias locais nos países em desenvolvimento, apresenta três exemplos significativos de diálogos de saberes. A primeira experiência se passa em Mindanao, uma das ilhas das Filipinas; a segunda no Timor Oeste, Indonésia; e a última, nos
Andes do Equador. Seus autores ressaltam a importância de associar o tema da promoção da saúde aos programas de desenvolvimento rural. Além disso, dão algumas pistas metodológicas de como organizar a reflexão com grupos de agricultores e agricultoras sobre questões como planejamento da produção, valorização de espécies locais, alimentação saudável e segurança
alimentar das famílias. Entre outros aspectos, chamam a atenção de como é fundamental que esses programas sejam executados a partir de enfoques sensíveis às relações sociais de gênero e de geração.
Também da Indonésia trouxemos um artigo que destaca as tradições alimentares locais como expressão de estratégias para o alcance da segurança e da soberania alimentar. Seu autor observa a importância de se compreender a lógica dos sistemas locais de produção e de consumo alimentar, pois eles podem inspirar soluções simples e culturalmente apropriadas aos problemas de desnutrição e fome comuns a populações rurais no Terceiro Mundo. Em contraposição aos impactos negativos causados pela disseminação das monoculturas de arroz no país, a comunidade de Giyombong, localizada em Java Central, manteve as suas estratégias de produção diversificada que asseguram quantidade e diversidade de alimentos para a manutenção da saúde dos seus membros. Partindo da observação dessa realidade, a ONG Gita Pertiwi desenvolveu um programa voltado para a revalorização de variedades locais de feijão no povoado de Tegiri, com o objetivo de diversificar a produção e o consumo alimentar local.
Dois artigos brasileiros enfocam redes de grupos populares que se mobilizam para manter as tradições de preparo de remédios caseiros no intuito de ajudar populações menos favorecidas a cuidarem da saúde. Ambas as redes também buscam construir políticas públicas adequadas à realidade das comunidades e populações tradicionais. O artigo da Articulação Pacari, rede da região dos Cerrados, trata da mobilização para a elaboração de uma publicação de referência, a Farmacopéia Popular do Cerrado, e da auto-regulação da medicina popular, através da construção das boas práticas de preparo dos remédios. O texto da Rede Fitovida, do estado do Rio de Janeiro, diz respeito à mobilização dos grupos comunitários para o reconhecimento das suas práticas enquanto patrimônio imaterial do povo brasileiro.
Vindo da região norte, o artigo da Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes (Apacc) aborda o uso das plantas medicinais sob a ótica do resgate de conhecimentos tradicionais, no sentido de garantir maior autonomia à população ribeirinha dos municípios paraenses de Limoeiro do Ajuru, Cametá e Oeiras do Pará.
O artigo sobre agricultura urbana na capital de Kerala, estado localizado no sul da Índia, mostra que a relação entre agricultura e saúde também vem sendo vivenciada nas cidades. No momento em que foram detectados altos níveis de contaminação por agrotóxicos nos alimentos consumidos pela população da capital, desenhou-se o programa público Agricultura na Cidade, que incentivou o aproveitamento dos pequenos espaços dos terraços das casas para o cultivo e produção de alimentos saudáveis. Atualmente, cerca de duas mil famílias praticam a agricultura nos terraços, aproveitando os recursos locais e fazendo da cidade um ambiente melhor para se habitar. Assim, além de colher alimentos saudáveis, estão melhorando a saúde física, através do esforço exigido pela prática diária de cuidados com a agricultura.
Finalmente, para enfocar a problemática dos agrotóxicos, organizamos uma entrevista com um grupo de profissionais que militam pela restrição desses produtos na agricultura brasileira e com um agricultor que já sofreu na pele as conseqüências de seu uso. A entrevista explora ainda o atual panorama do debate da questão no país e traça um rápido retrospecto sobre os movimentos contra os agrotóxicos que se iniciaram na década de 1970.
Boa leitura!
Marcio Mattos de Mendonça
engenheiro agrônomo, coordenador do Programa de Agricultura Urbana da AS-PTA
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Baixe o artigo completo:
Revista V4N4 – Conhecimentos tradicionais, saúde e agroecologia