Catia Grisa, Claudia Job Schmitt, Lauro Francisco Mattei, Renato Sergio Maluf e Sergio Pereira Leite
A criação do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) em 2003 resultou da confluência de dois debates importantes da década de 1990 no Brasil. O primeiro teve como questões centrais o combate à fome e a garantia da segurança alimentar e nutricional da população brasileira. Essa discussão intensificou-se a partir do final da década de 1980, ganhou impulso nos anos 1990 e encontrou maior espaço no Governo Lula, envolvendo um amplo leque de atores sociais. O segundo debate foi dirigido ao reconhecimento da agricultura familiar como categoria social pelas políticas governamentais. Esse setor, que até então não havia sido considerado pelo Estado como objeto de políticas públicas específicas, começou a receber maior atenção quando da criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) em 1996, processo que teve como saldo importante a própria construção da definição oficial do conceito de agriculturafamiliar, que desde então passou a ser incorporada como referência no planejamento da ação governamental. Registra-se a partir desse momento, mas principalmente depois de 2003, um esforço importante de implantação de diferentes instrumentos específicos de política pública direcionados a essa categoria de produtores, a exemplo do Seguro da Agricultura Familiar, da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater) e do próprio PAA. Esses avanços foram, em grande medida, resultado da capacidade de mobilização, intervenção política e negociação de diversas organizações sociais representativas dos produtores familiares.
O diálogo estabelecido, a partir dos anos 1990, entre diferentes expressões de crítica ao modelo de agricultura e desenvolvimento rural hegemônico no Brasil e uma concepção abrangente de segurança alimentar e nutricional, que não se restringia, unicamente, ao acesso ao alimento, possibilitou que questões relacionadas à necessidade de transformação da matriz produtiva da agricultura familiar fossem incorporadas ao processo de formulação do PAA.
Este artigo apresenta as contribuições do PAA para a promoção da segurança alimentar e nutricional e a transformação da matriz produtiva e das condições de acesso aos mercados da agricultura familiar. Tomou-se como referência trabalhos de pesquisa desenvolvidos em diferentes regiões do país, tendo como foco o processo de implementação do PAA, seus efeitos, impactos e desafios. Buscou-se também sistematizar algumas limitações apontadas por diferentes autores acerca do programa.
FORMULAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DO PAA
Partindo de uma concepção intersetorial de segurança alimentar e nutricional, o PAA contempla tanto as demandas de acesso aos alimentos das populações em situação de in- segurança alimentar como as necessidades dos agricultores familiares de conseguir mercados para seus produtos. O PAA, portanto, adquire os produtos dos agricultores familiares visando: (i) o suporte da rede pública de equipamentos de alimentação e nutrição e da rede de instituições socioassistenciais; (ii) a estruturação de circuitos locais de abastecimento; (iii) a formação de estoques para prestar assistência alimentar a populações específicas, populações atingidas por catástrofes e populações escolares em situação de insegurança alimentar. Como alude Schmitt (2005), trata-se de um programa que integra a política de segurança alimentar e nutricional à política agrícola.
O PAA foi criado como uma das ações estruturantes do Programa Fome Zero, tendo sido acompanhado ao longo de sua formulação e implementação pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e por diferentes organizações da sociedade civil. Sua operacionalização envolve diferentes mecanismos de aquisição de produtos da agricultura familiar pelo Governo Federal (Quadro 1), sendo alguns deles executados pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e outros implementados por meio de convênios estabelecidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) com governos estaduais e municipais. Em termos de seu formato institucional, o programa conta com o acompanhamento de um grupo gestor, de caráter interministerial, coordenado pelo MDS.
Em pouco mais de sete anos de operacionalização do PAA (2003-2010), o governo federal investiu um total R$ 3,5 bilhões (Brasil, 2010), montante relativamente pequeno frente ao Pronaf – para o qual foram disponibilizados R$ 16 bilhões somente na safra 2011/2012. De qualquer forma, esses recursos permitiram que, em média, cerca de 112 mil agricultores familiares fossem beneficiados por ano pelo PAA (Brasil, 2010). Considerando a existência, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006, de aproximadamente 4,3 milhões de estabelecimentos familiares no Brasil, o PAA beneficiaria 2,6% desse total, um número modesto pela importância que essa política desempenha.
Todavia, ainda que com relativamente poucos recursos e beneficiando um número limitado de agricultores familiares, o programa tem dado contribuições importantes para a agricultura familiar e a segurança alimentar e nutricional.
ALTERAÇÃO NA MATRIZ PRODUTIVA DA AGRICULTURA FAMILIAR
O PAA, especialmente a modalidade Compra com Do- ação Simultânea (CPR-Doação), tem incitado mudanças importantes na matriz produtiva das unidades familiares, notadamente no que concerne à diversificação produtiva. O programa tem sido responsável por restaurar a policultura, predicado de um modo de vida camponês. Isso porque, em muitas regiões do Brasil, a modernização da agricultura conduziu os agricultores a ingressarem na especialização produtiva, na monocultura e na produção de commodities, não raro destinadas ao mercado externo, o que, por sua vez, expôs esses agricultores a contextos de acentuada vulnerabilidade social. Nessas situações, o PAA tem se destacado por incentivar a diversificação, na medida em que conecta a oferta da produção familiar a uma demanda diversificada. Segundo algumas avaliações que tiveram como objeto de investigação a implementação do programa em diferentes ambientes rurais, muitos agricultores passaram a diversificar e valorizar produtos locais que, até então, eram depreciados ou não tinham seu valor comercial reconhecido. Frutas, verduras, produtos de origem animal e agroindustrializados são exemplos de ali- mentos adquiridos pelo PAA.
Além da diversificação, o PAA incentiva a produção em bases agroecológicas ou orgânicas, ou seja, apoia sistemas de produção que prezam pela preservação do meio ambiente, pela valorização da biodiversidade, pelo aproveitamento dos recursos locais, pela utilização de sementes crioulas e pelo respeito à diversidade cultural e aos saberes locais. Com efeito, o programa paga um preço 30% superior para os produtos cultivados em sistemas produtivos ecologicamente manejados. Os casos do PAA em São Lourenço do Sul e Pelotas (RS) são emblemáticos nesse sentido, pois todos os itens adquiridos pelo programa são produzidos com métodos ecológicos (Surita, 2004). Todavia, expandir essa prática e assegurar instrumentos flexíveis de avaliação da conformidade da qualidade orgânica para tais produtos e que sejam adaptados à realidade das diferentes regiões do país constituem-se ainda desafios importantes para o programa em nível nacional.
O PAA também estimula a produção e o consumo de alimentos regionais. Isso se traduz em resgate e preservação de muitos costumes, hábitos e culturas que vinham sendo esquecidos ao longo das gerações. No Norte de Minas, por exemplo, o PAA tem contribuído para a geração de renda por meio do aproveitamento das frutas nativas do Cerrado. Em Tenente Portela (RS), o PAA auxiliou a revitalizar os moinhos coloniais, uma marca da agricultura familiar regional que vinha arrefecendo (Pandolfo, 2008). Em todo o país, diferentes práticas e alimentos regionais estão sendo revigorados com o suporte do programa, como a canjica, o mesocarpo de babaçu, as cucas, o azeite de coco, a farinha de baru, o cupuaçu, o umbu, o maxixe, o jambu, etc.
ALTERAÇÃO NO CONSUMO DA AGRICULTURA FAMILIAR E DAS FAMÍLIAS BENEFICIADAS COM OS ALIMENTOS
Ao promover uma produção diversificada, o PAA tem contribuído, ao mesmo tempo, para o aumento, a diversificação e a melhoria da qualidade da alimentação das famílias produtoras (Delgado et al., 2005). Produtos antes pouco valorizados ou desconhecidos passam agora a fazer parte do cardápio diário delas, como destacam Zimmermann e Ferreira (2008, p. 48):
“O PAA tem sido responsável também por incluir produtos na dieta das famílias dos agricultores de Mirandiba, principalmente frutas e verduras que elas pouco consumiam antes (…) Antes do projeto muitos agricultores não tinham árvores frutíferas em suas unidades produtivas e/ou não davam valor às frutas nativas.”
Quanto às pessoas/famílias beneficiadas com os alimentos, as mudanças principais têm sido observadas no padrão alimentar das crianças em idade escolar. Com a alimentação escolar proveniente da agricultura familiar regional, as crianças recebem alimentos frescos, variados e de melhor qualidade, confluindo para uma melhor aceitabilidade e consumo por parte dos alunos. Estudos têm se reportado também a efeitos positivos em termos de frequência, rendimento escolar e saúde das crianças. Por exemplo, em um estudo realizado na Bahia, Ortega, Jesus e Só (2006) observaram que com o PAA Leite a assiduidade das crianças na escola aumentou em 51% e houve um acréscimo de 48% no rendimento escolar, enquanto os índices ruim e regular diminuíram 59% e 53%, respectivamente.
É também relevante aludir ao fato de que o PAA tem contribuído para reconectar a produção ao consumo local (Triches; Froehlich, 2008), respeitando a sazonalidade, a proximidade, os atributos de qualidade, o saber-fazer local, as relações sociais, etc. Contrapõe-se, assim, ao modelo de produção assentado em grandes corporações, que valoriza a distância, a padronização, a durabilidade, a impessoalidade e subordina o tempo e o lugar à acumulação de capital. No PAA, sobretudo na modalidade CPR-Doação, produtores e consumidores encontram-se articulados e compreendem a importância que um tem para o outro.
PREÇOS, CRIAÇÃO DE NOVOS MERCADOS E ALTERNATIVAS DE RENDA
O PAA sinaliza um novo estágio no que se refere às políticas de fortalecimento da agricultura familiar, sobretudo porque abre um canal de comercialização para essa categoria social, garantindo a aquisição de seus produtos pelo Estado por meio de mecanismos diferenciados. A garantia de comercialização traz um novo alento a essas famílias, que podem lançar mão de suas especificidades, de seus valores e suas práticas locais para articular-se com diversos públicos consumidores.
O PAA significa novas possibilidades de ingressar no mercado e, ao mesmo tempo – sobretudo para as famílias do Sul e Centro-Oeste do Brasil –, oportunidades para distanciar-se dos mercados de commodities agrícolas que se mostram inadequados às especificidades dessa categoria social, principalmente no que se refere à escala de produção e ao padrão tecnológico.
Ademais, a garantia de comercialização significa o fortalecimento da autonomia dos agricultores em relação aos atravessadores. Em pesquisa realizada por Rocha, Cerqueira e Coelho (2007) em Irecê (BA), por exemplo, todos os agricultores entrevistados afirmaram que, antes do PAA, o escoa- mento da produção dependia inteiramente dos atravessadores. O grau de dependência em relação aos intermediários e o quanto isso interfere na autonomia dos produtores ficam evidentes no desabafo de outro agricultor do Sul do país: O programa é o sonho que a gente sonhava: não vender ao atravessador (Cordeiro, 2007).
Além da garantia de mercado, as normas do PAA permitem que as aquisições sejam feitas com base em preços de referência, que devem levar em conta as diferenças regionais e a realidade da agricultura familiar. Trata-se de uma inovação, considerando que a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) sempre utilizou mecanismos de aquisição de caráter universal. Ao submeter grupos distintos às mesmas exigências na hora da comercialização, a PGPM reduzia o acesso dos agricultores familiares aos seus instrumentos. Com efeito, o PAA rompe com essa tradição ao dirigir suas ações para um segmento específico da agricultura brasileira – os agricultores familiares –, respeitando as diferenças regionais nos preços de referência.
O programa também tem colaborado para a recuperação dos preços regionais recebidos pelos agricultores, havendo casos em que o simples anúncio da compra pública foi suficiente para elevar a cotação de um produto (Delgado et al., 2005). Em algumas situações, o mercado local absorve a produção antes mesmo das compras públicas serem efetuadas, dispensando-as.
O PAA tem incitado igualmente o fortalecimento ou a criação de novos mercados, revelando o potencial do programa na geração de efeitos sinérgicos. Foi o que aconteceu com a Feira Livre do Produtor em Tenente Portela (RS), existente desde os anos de 1980. Segundo Pandolfo (2008), após o início do PAA, os feirantes notaram um aumento na procura de suas barracas na feira, isso porque, como a maioria deles também comercializa através do programa seus produtos, estes se tornaram mais conhecidos, valorizados e demandados pelas pessoas atendidas pelas doações do programa. A criação desses novos mercados é estratégica diante da preocupação de que os agricultores familiares não se tornem dependentes do PAA. O objetivo é fazer deste apenas um ponta-pé inicial para a inserção anos mercados.
A garantia de comercialização e seus efeitos sobre os preços e a criação de novos mercados são fatores que podem repercutir em uma elevação da renda obtida pelos agricultores. Em pesquisa no Nordeste, Sparovek et al. (2007) notaram que os agricultores beneficiários possuíam receitas de comercialização da produção quase três vezes superiores às dos não beneficiários, diferença esta atribuída ao PAA – embora essa conclusão mereça mais estudos em outros contextos e regiões do Brasil.
CAPITAL SOCIAL E FORTALECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
O PAA apresenta arranjos institucionais que confluem à promoção de um capital social que permite a interação entre atores de diversas esferas (Estado, sociedade civil e merca- do) que atuam em distintas escalas (local, municipal, regional, nacional). Afinal, muitas modalidades do programa exigem a organização social dos agricultores para sua execução, mobilizando um vasto conjunto de atores. Cada uma dessas esferas e escalas tem sua própria lógica e influencia de modo particular a distribuição, o controle e a transformação dos recursos necessários à reprodução das famílias rurais. Portanto, acessar e interagir com essas diferentes esferas e escalas é de extrema relevância para a agricultura familiar.
Observa-se que o acesso de associações/cooperativas ao PAA e o envolvi- mento destas com outras instituições têm contribuído para o seu próprio fortalecimento. As associações/cooperativas passam a ter maior conhecimento sobre gestão administrativa e mercados, assim como constroem um capital social que lhes concede maior reconhecimento social, político e econômico, permitindo o acesso a outros recursos fundamentais.
O PAA também tem incitado o surgimento de novas organizações, seja para viabilizar o acesso ao programa, seja para, a partir desse engajamento, alcançar no- vos mercados e/ou mobilizar recursos políticos e econômicos. Em Pernambuco, por exemplo, a Cooperativa das Associações dos Agricultores Familiares de Mirandiba (Cooafam) foi criada em 2007 pelas associações que efetuam as entregas dos ali- mentos. Já na Bahia, os produtores passaram a formar associações visando montar seus próprios laticínios (Ortega; Jesus; Só, 2006).
Estudos têm revelado que, quanto maior o envolvimento de associações, cooperativas, organizações não governamentais, entre outros atores sociais, e quanto mais elevado o grau de consolidação dessas instituições, mais efetivos são os resultados do PAA (Muller et al., 2007; Botelho et al., 2007). Algumas análises também sinalizam a necessidade de uma participação mais ativa do poder público municipal, sobretudo na modalidade Compra com Doação Simultânea, particularmente no que se refere à estruturação de uma logística adequada para a implementação do programa. Relações sinérgicas entre organizações e administrações locais podem contribuir para ampliar os resultados do PAA.
ALGUMAS LIMITAÇÕES DO PAA
Conhecimento em relação ao programa
Uma das principais limitações diz respeito à falta de clareza dos beneficiários (agricultores familiares e pessoas/famílias em situação de insegurança alimentar) em relação ao programa, seus objetivos, modalidades e procedimentos. É comum o PAA ser identificado como Fome Zero ou Projeto Conab e, em alguns casos, os agricultores familiares comercializam seus produtos para associações ou cooperativas, sem saber que estas acessam o programa. Em pesquisa realizada por Gomes e Bastos (2007, p. 19), os agricultores desconheciam os objetivos do PAA, confundindo- o muitas vezes com um simples crédito de custeio financiado pela Conab. Alguns beneficiários, por sua vez, ignoravam o programa e a origem dos alimentos (agricultura familiar). Já entre os mediadores, além do desconhecimento de muitos, prevalece um desconcerto geral quanto aos seus papéis, fruto da predominância da cultura do produtivismo, na qual a segurança alimentar e os pequenos agricultores têm pouco espaço.
As avaliações indicam também desconhecimento em relação às instâncias de controle social. Em pesquisa no Paraná, Doretto e Michellon (2007) notaram que mais da metade dos agricultores entrevistados ignorava a existência do Conselho Municipal incumbido de acompanhar o programa e a quase totalidade deles desconhecia suas atribuições. Por sua vez, Cordeiro (2007) atentou para o fato de que, quando o Conselho foi referido pelos participantes, estes muitas vezes apontaram a sua ineficiência. Res- salta-se a importância das instâncias de controle social, pois estas podem apurar as distorções do PAA ao nível local, a qualidade e a quantidade dos produtos comercializados e as eventuais formas de apropriação indevida da política pública. O aprofundamento do debate sobre os mecanismos de controle social, tanto no que se refere aos processos quanto às instâncias envolvidas, coloca- se, ainda, como um desafio importante na execução do programa.
Público beneficiário
Embora o PAA tenha como público os segmentos da agricultura familiar, com prioridade para povos e comunidades tradicionais, indígenas, pescadores, acampados e assentados da Reforma Agrária, agriculto- res familiares pobres e suas organizações, o programa tem enfrentado dificuldades para contemplar esses segmentos específicos mais vulneráveis socialmente (Brasil, 2010, p.8). Em 2009, 68% dos beneficiários do PAA enquadravam-se no Grupo AF do Pronaf (antigos C, D e E), enquanto assentados, pescadores artesanais, agroextrativistas, quilombolas, indígenas e trabalhadores sem terra respondiam por apenas 10,27% do acesso ao programa (Brasil, 2010).
Deve-se ponderar também que o PAA exige elevada contrapartida em termos de organização social e que nem todas as organizações de agricultores são capazes de responder imediatamente a essa necessidade. O programa se expressa nos locais em forma de rede, interligando unidades familiares de produção e estas com associações e cooperativas, poder público, entidades sociais e famílias beneficiadas e todos com instâncias estaduais e com a estrutura nacional do programa. Esse arranjo requer um conjunto não desprezível de recursos humanos e materiais das organizações proponentes, conjunto este que não está presente em todas as organizações sociais, agravando-se possivelmente à medida que o nível de pobreza dos associados se acentua. Por conseguinte, onde o PAA teria maior relevância e retorno social é exatamente onde apresenta as maiores dificuldades de operacionalização.
Aspectos operacionais e logísticos do PAA
A documentação exigida para acessar o programa, notadamente a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), é outra limitação. A exigência de um comprovante da posse da terra a ser explorada para obter a DAP e, em alguns casos, a cobrança indevida para sua emissão restringem a participação de muitos agricultores. Quanto às instituições proponentes, estas não raro enfrentam dificuldades estruturais que as colocam em situação de débito, o que impede a obtenção de certidões negativas. Já para as instituições beneficiárias, a informalidade de muitas (ausência de cadastro de pessoa jurídica) inviabiliza a participação no PAA.
Uma vez tendo conseguido ingressar no programa, as organizações sociais e os agricultores se deparam com o problema do atraso na liberação dos recursos. Segundo Cordeiro (2007), essa dificuldade foi citada em todas as oficinas realizadas nas várias regiões do Brasil. Conforme a autora:
“Os participantes argumentaram que os atrasos criam dificuldades políticas para as associações e cooperativas junto aos associados, dificultam o abastecimento da lista de produtos aprovada no projeto, criam dificuldades financeiras para os produtores e desestimulam a participação.”
Esse é um problema observado desde o começo do PAA, muitas vezes frustrando agricultores e mediadores e gerando, eventualmente, um descrédito em relação a essa política pública e às ações do Estado.
Um problema adicional é a dificuldade para transportar os produtos do local de produção até o local de consumo. Grandes distâncias, condições precárias das estradas (no Norte do Brasil, o transporte fluvial assume grande importância), carência de veículos e custo elevado são fatores que limitam a participação e a execução do programa. Para contornar essa situação, a logística de implementação da política tem sido muito variada. Em alguns casos, os agricultores trazem os alimentos até um dado ponto e a instituição responsável ou a Prefeitura (nos casos em que há parcerias) encarrega-se de repassar os alimentos às entidades beneficiadas. Em outros, os agricultores realizam as entregas ou, ainda, a instituição responsável coleta os produtos nos estabelecimentos familiares distribuindo-os às entidades sociais. Mas em todos os casos, o transporte tem sido um desafio às organizações proponentes.
A falta de assistência técnica é outro fator limitante. Os agricultores sentem dificuldades para se organizar, planejar a produção e atender aos padrões de qualidade exigidos pelo PAA, o que, possivelmente, seria facilitado se a assistência técnica estivesse vinculada ao programa. Constata-se, também, que outras políticas públicas, a exemplo do Pronaf e do Seguro da Agricultura Familiar (Seaf), poderiam estar interligadas ao PAA. Como afirma Mattei (2007), faz-se necessário uma melhor articulação entre políticas de apoio à produção e à comercialização.
Por fim, é relevante citar outras deficiências, tais como estruturas inadequadas de armazenamento e conservação dos alimentos até o momento do consumo e a carência de serviços de inspeção sanitária com metodologias de ação adaptadas à realidade dos produtores, limitando a inclusão de produtos de origem animal. No caso da pesca, muitas vezes a participação no PAA é impossibilitada pela ausência de energia e equipamentos de refrigeração. O mesmo problema se manifesta nas entidades e escolas favorecidas com as doações que, carecendo de energia elétrica e refrigeração para conservar os alimentos, ficam excluídas do programa.
Catia Grisa
doutoranda no CPDA/UFRRJ
[email protected]
Claudia Job Schmitt
professora do CPDA/UFRRJ
[email protected]
Lauro Francisco Mattei
professor do CSE/UFSC
[email protected]
Renato Sergio Maluf
professor do CPDA/UFRRJ
[email protected]
Sergio Pereira Leite
professor do CPDA/UFRRJ
[email protected]
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Revista V8N3 – Contribuições do Programa de Aquisição de Alimentos à segurança alimentar e nutricional e à criação de mercados para a agricultura familiar