Adilson Alves Costa, Caliandro Daniel da Silva, Ranyfábio C. Macêdo, Melchior Naelson B. da Silva e João Macedo Moreira
Uma das principais características dos sistemas produtivos da agricultura familiar no semiárido é que eles foram criativamente desenvolvidos para atender a variadas demandas das famílias sem que, para tanto, dependessem do emprego de moto-mecanização intensiva e insumos agroquímicos. Os sistemas de cultivo tradicional do algodão não fugiam a essa regra. Além de proverem renda monetária às famílias, atendiam suas necessidades alimentares e geravam subprodutos utilizados como insumos em outros subsistemas de produção nas propriedades.
Durante muito tempo a economia do algodão foi uma das principais atividades geradoras de renda no semiárido brasileiro, chegando a ocupar, direta e indiretamente, quase metade da população economicamente ativa do campo e uma área de 3,1 milhões de hectares.
A tradição de consorciar o algodão com as leguminosas feijão-de-corda (Vigna unguiculata) e feijão-de-arranque (Phaseolus vulgaris) permitia o aporte de nitrogênio ao sistema. Os agricultores também podiam intercalar o milho, o jerimum, o cará, a macaxeira, entre outras espécies alimentares. Depois da colheita do algodão, suas ramas (folhas verdes) eram utilizadas como alimento para os animais. Das sementes era extraído o azeite empregado nos candeeiros. Após a extração do azeite, sobrava a torta do algodão, alimento de qualidade fornecido às vacas de leite. Além desses subprodutos, o sistema prestava um importante serviço ambiental na medida em que as fileiras de algodão arbóreo, que chegavam a atingir cinco a sete metros de altura, funcionavam como uma cortina quebra-ventos, o que nas condições climáticas da região é um grande aliado na economia da água do sistema.
No entanto, a partir da década de 1980, a atividade entrou numa trajetória de decadência em função de uma conjugação de fatores de ordem ambiental e econômica, em especial a política de liberalização dos mercados agrícolas adotada pelo governo brasileiro, favorecendo a importação de grandes volumes de pluma de algodão em detrimento dos produtores da região.
Do ponto de vista ambiental, criou-se um verdadeiro “caos ecológico” com as transformações técnicas introduzidas nos sistemas de produção, sobretudo com a substituição do algodão arbóreo (mocó e seridó) por variedades herbáceas. Por não encontrarem na região as condições ambientais adequadas para expressar seus potenciais produtivos, essas variedades vieram acompanhadas de um pacote tecnológico intensivo em insumos externos e tratos culturais. Além de gerar aumentos substanciais nos custos de produção e na demanda de trabalho, esse pacote induziu o plantio do algodão em sistema de monocultivo, contrariando a tradição regional de intercalação de espécies alimentícias nos algodoais. A combinação desses fatores criou as condições propícias para a proliferação desenfreada de populações de insetos-praga no algodão, em particular o bicudo.
Apesar da derrocada da cotonicultura no semiárido, um número significativo de famílias agricultoras permaneceu cultivando o algodão como alternativa econômica compatível com a realidade local. Compreender essa capacidade e vocação da agricultura familiar de manejar os cultivos mesmo em contextos econômicos e ambientalmente desfavoráveis é condição primordial para desenvolver novas bases técnicas que possibilitem a convivência da atividade com os insetos-praga e que viabilizem o soerguimento das potencialidades econômicas do cultivo do algodão no semiárido. Foi com base nesse princípio que um conjunto de organizações deu início à experiência apresentada neste artigo voltada ao desenvolvimento de sistemas agroecológicos de produção de algodão na região do Curimataú do estado da Paraíba.
IDENTIFICANDO EXPERIÊNCIAS INOVADORAS
A região do Curimataú é a porção mais seca da área de abrangência do Pólo Sindical da Borborema, uma articulação de organizações da agricultura familiar presente em 16 municípios do agreste da Paraíba. Apesar da crise da cotonicultura na região, várias famílias agricultoras continuaram cultivando o algodão em pequenas áreas em suas propriedades e conseguiram conviver com os insetos-praga mesmo sem lançar mão do emprego de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos.
Nos anos de 2004 e 2005, alguns pesquisadores da Embrapa Algodão e técnicos das ONGs Arribaçã e AS-PTA identificaram e divulgaram a iniciativa de alguns desses agricultores. Elas estimularam outras famílias a darem início a experiências similares em suas propriedades.
Para entender as estratégias adotadas pelos agricultores identificados, sobretudo os mecanismos ecológicos que permitiam a convivência com os insetos-praga, utilizou-se a metodologia de Diagnóstico Rápido Participativo de Agroecossistemas (DRPA) descrita por Mattos e Trier (1996). Realizaram-se entrevistas semiestruturadas, visitas de acompanhamento técnico, oficinas temáticas e, principalmente, estabeleceu-se a vivência dos pesquisadores e dos técnicos no cotidiano dos agricultores do Curimataú.
PRÁTICAS DE CONVIVÊNCIA COM O BICUDO
Entre as principais estratégias técnicas identificadas para a convivência com o bicudo destacam- se o arranjo espacial do cultivo (espaçamento e densidade) e a época do plantio.
O espaçamento de 1,10 x 0,40 metros foi identificado como um dos mais adotados nos sistemas da região, divergindo daqueles recomendados pela Embrapa Algodão (1,0 x 0,20 m). Pesquisas posteriores apontaram que os espaçamentos mais largos criam as condições para que ocorra maior mortalidade natural do bicudo, corroborando aquilo que os agricultores já observavam na prática. Além desse efeito de natureza ecológica, o arranjo espacial adotado pelos agricultores permite o menor consumo de sementes e favorece a consorciação com culturas alimentares (feijão e coentro), a colheita manual e a realização de tratos culturais, como capina, catação de botões florais, amontoa e aplicação de defensivos naturais (Wanderley Júnior, 2006).
Contrariando a recomendação oficial de plantio do algodão por ocasião do início das chuvas (que ocorre até meados de abril), os agricultores do Curimataú costumam fazê-lo somente entre a segunda quinzena de maio e a primeira quinzena de junho. Dessa forma, torna-se possível concentrar a fase de desenvolvimento do algodão (floração e frutificação) após os meses de junho e julho, época de menor temperatura no ano e de maior incidência do bicudo.
Segundo observação do agricultor Zé de Sinésio, as plantas de algodão produzem com pouquíssimo ataque do bicudo no período seco (agosto e setembro). Além disso, nessas condições, a atividade de colheita do algodão pode ser realizada no período em que a demanda de trabalho na propriedade é menor.
A rotação de culturas, a utilização como forragem dos restos culturais do algodão, a consorciação com coentro, feijão, sorgo e girassol e a catação de botões florais complementam o grupo de estratégias de convivência com o bicudo empregadas nos roçados de algodão das famílias agricultoras.
O CONTROLE DAS FORMIGAS CORTADEIRAS
Como a maioria das unidades de produção do Curimataú apresenta solos em acentuado grau de degradação, a incidência de formigas cortadeiras mostrou-se também um grande desafio para a produção do algodão. Uma vez articulados em um grupo de experimentadores, os agricultores ficaram estimulados a buscar e testar processos naturais de controle de formigas. Essas inovações tornaram-se conhecidas pelo grupo por meio da realização de visitas de intercâmbio a outras propriedades da região e até fora do estado da Paraíba.
Entre as práticas experimentadas e disseminadas destacam-se: a utilização de folhas nim (Azadirachta indica) sobre os formigueiros e nos caminhos das formigas; o emprego de folhas de maniçoba (Manihot glaziowii Mull.) como isca para despistar as formigas das culturas plantadas; a utilização da água do agave (Agave sisalana Perrine) resultante do processo de beneficiamento da planta; e a utilização da manipueira fresca (no máximo dois dias após o beneficiamento da mandioca).
Com base em suas experiências e na troca de conhecimentos que fizeram entre si, os agricultores do grupo compreenderam que o objetivo do manejo não é o de eliminar por completo as formigas, mas saber conviver com elas.
ALGUNS RESULTADOS ALCANÇADOS
A experiência do cultivo de algodão sem veneno começou a ser articulada a partir de um grupo de agricultores do Assentamento Queimadas, no município de Remígio (PB), e de uma família do município de Solânea. As motivações iniciais desse grupo pioneiro estavam relacionadas à preocupação com a saúde das famílias e com a necessidade de produzir com baixos custos. Atualmente, com a evolução das experiências, as famílias envolvidas preocupam-se também com a sustentabilidade ambiental e financeira do conjunto de seus lotes.
Além das organizações que deram início à experiência, essa atividade, denominada Projeto Escola Participativa do Algodão, conta atualmente com a participação de sindicatos de trabalhadores rurais, dos escritórios da Emater dos municípios de Remígio e de Casserengue, assim como de associações comunitárias. Estão diretamente envolvidas na experiência 50 famílias de agricultores de assentamentos e comunidades dos municípios de Remígio, Casserengue, Solânea e Juarez Távora (ver quadro).
Iniciativas similares a essa estão sendo desenvolvidas em outros estados do Nordeste. Em um seminário sobre algodão agroecológico do Nordeste, realizado no segundo semestre de 2006, em Lagoa Seca (PB), foi criada uma rede destinada a favorecer intercâmbios dos ensinamentos técnicos e de acesso a mercados que vêm sendo construídos pelos diferentes grupos envolvidos na produção agroecológica do algodão. Em 2007, o segundo seminário foi realizado em Tauá (CE).
PERCEPÇÕES
As estratégias preventivas para a convivência com o bicudo empregadas pelos agricultores no Curimataú são hoje referendadas em diversas publicações científicas. Elas oferecem importantes pistas a pesquisadores, técnicos e agricultores para que novas pesquisas e experimentações sejam realizadas. Entre outros aspectos relevantes, elas demonstram que não é necessário o uso de técnicas de alto risco ambiental e elevado custo, tais como a transgenia, para que os agricultores possam conviver com os insetos-praga.
Adilson Alves Costa
engenheiro agrônomo, Msc.e técnico da Arribaçã
[email protected]
Caliandro Daniel da Silva
técnico agrícola e técnico da Arribaçã
[email protected]
Ranyfábio C. de Macedo
engenheiro agrônomo e técnico da Arribaçã
[email protected]
Melchior Naelson Batista da Silva
engenheiro agrônomo, Dsc. e pesquisador da Embrapa Algodão
[email protected]
João Macedo Moreira
engenheiro agrônomo e técnico da AS-PTA
[email protected]
Referências Bibliográficas
MATTOS, L.C.; TRIER, R. Diagnóstico rápido e participativo de recursos hídricos: conceitos e metodologia. Recife: AS-PTA, 1996.
MORALES, H. Pest Management in tradicional tropical agroecosystems: lessons for pest prevention research and extension. Integrated Pest Management Reviews. v. 7, n. 3, p.145-163, 2002.
PINHEIRO, S. Cartilha da Seca. Fundação Junquira Candiru. 2003.
WANDERLEY JÚNIOR, J. S. A. Experiências para produção de algodão herbáceo em sistemas agroecológicos familiares no Curimataú paraibano. 2006. 23 p. Monografia (monografia para obtenção do título de engenheiro agrônomo) – Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal da Paraíba, Areia.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N1 – Convivência com as pragas do algodoeiro no Curimataú paraibano