Burguivol Alves de Souza e Giovanne Henrique Sátiro Xenofonte
Localizado no extremo oeste de Pernambuco, o Sertão do Araripe é uma das áreas mais secas do estado, apresentando períodos de estiagem que se estendem por seis a oito meses do ano. A cada dois anos, verificam-se estiagens durante os períodos chuvosos (invernos) e, a cada década, as secas adquirem maior intensidade, fazendo com que o período seco de um ano se prolongue e se encontre com o do ano seguinte.
Com a ausência de mecanismos de gestão de riscos climáticos, os agroecossistemas geridos pela agricultura familiar na região tornam-se extremamente vulneráveis aos efeitos das secas periódicas e de duração imprevisível. Nessas condições, a economia das famílias agricultoras alterna ciclos de acumulação e de perda definidos pelas inconstâncias climáticas do bioma. Longe de ser uma condição determinada exclusivamente pela natureza, esse desempenho errático das economias camponesas na região se deve fundamentalmente à combinação de duas características marcantes dos agroecossistemas de base familiar: a pouca disponibilidade de terra, resultado de séculos de concentração fundiária; e a baixa capacidade de investimento das famílias agricultoras, por conta do elevado nível de pobreza.
A associação dessas duas características cria obstáculos para o desenvolvimento de estratégias produtivas mais sus- tentáveis, já que limita o acesso das famílias agricultoras aos recursos ambientais e dificulta a implantação de infraestruturas voltadas para a estocagem de recursos produtivos (água, forragens, sementes, etc.) necessários para a estabilização da oferta nos períodos de seca.
Esse contexto estrutural e historicamente definido por relações de clientelismo mantidas por grandes proprietários de terra vem sendo escamoteado pela visão determinista e fatalista acerca da influência do meio natural, legitimando assim a chamada indústria da seca, responsável pelos investimentos públicos em grandes obras de infraestrutura hidráulica em benefício exatamente dos latifúndios.
Romper com o enfoque do com- bate à seca e criar uma cultura de convivência com o semiárido é, talvez, a maior contribuição da Agro- ecologia ao desenvolvimento da região. A experiência da Carteira de Microcrédito Agroecológico e Solidário da ONG Caatinga aponta caminhos promissores para a mobilização de recursos materiais e conhecimentos para a reestruturação dos agroecossistemas familiares com base nos princípios da convivência com o semiárido.
Em 2007, essa iniciativa foi finalista do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, despertando a atenção de instituições gestoras de crédito oficial.
A ORIGEM DA INICIATIVA DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR
Os primeiros financiamentos destinados pelo Caatinga a famílias agricultoras foram realizados em 1987 com o aporte de recursos da Oxfam Novib. A ideia era multiplicar experiências de manejo agroecológico por meio da implantação de diversas tecnologias que já vinham sendo testadas com sucesso por famílias da região, tais como o barreiro trincheira, a barragem subterrânea, a cisterna de placas e o fomento a atividades econômicas, como criação de pequenos animais (galinhas, porcos e cabras) e apicultura.
Essas iniciativas foram realizadas por meio de um sistema de fundo rotativo, no qual os recursos repassados às famílias deveriam retornar na forma de produtos – no caso de crédito a atividades produtivas – ou em dinheiro – quando se tratasse de obras de infraestrutura. A devolução dos recursos ao fundo permitia que outras famílias agricultoras fossem financiadas. Por meio desse mecanismo e do aporte contínuo de agências de cooperação e outras instituições – Oxfam Novib, Visão Mundial, União Europeia e Banco do Nordeste do Brasil (BNB) –, os recursos do fundo foram aos poucos se multiplicando. Atualmente, o sistema é conhecido entre as famílias agricultoras pelo nome de Crédito Agroecológico e Solidário e compõe a Carteira de Micro- crédito do Caatinga.
Além da evolução da experiência de gestão do sistema, o Caatinga teve a oportunidade de realizar intercâmbios com organizações que realizavam iniciativas similares. Como resultado dos aprendizados que colheu durante esses intercâmbios, o Caatinga deixou de se relacionar direta e individual- mente com a família agricultora beneficiária e passou a fazê-lo por intermédio da associação que representava o conjunto das famílias. Esse procedimento permitiu o fortalecimento de uma base interinstitucional responsável pela solidez e legitimidade do sistema na região.
O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA
Atualmente, a carteira é gerida por um Conselho Deliberativo composto por dois representantes de cada uma das 39 associações rurais dos municípios de Ouricuri, Bodocó, Santa Cruz e Santa Filomena, sendo um titular e um suplente, e quatro representantes do Caatinga. Entre outras atribuições, o conselho define a política geral e as estratégias de atuação da Carteira de Microcrédito, aprova critérios para a definição das condições de financiamento ao beneficiário final (taxas de juros, prazos e carências), delibera sobre a entrada de novas organizações e escolhe os membros do Comitê Gestor do Crédito, composto por nove representantes das 39 associações e três representantes do Caatinga. O comitê é uma instância de gestão que tem como competência analisar e deliberar sobre os projetos apresentados pelas associações e cooperativas credenciadas, mediante parecer dos agentes de crédito, e acompanhar a execução dos projetos de financiamento, capacitação do cliente (ver Figura).
A Carteira de Crédito Agroecológico trabalha atualmente com três linhas de financiamento:
a) Projetos de Infraestrutura – com taxa de 1,0% ao mês, os valores liberados vão até R$ 1.500,00, no primeiro empréstimo, e até R$ 3.000,00, do segundo em diante. Essa linha tem por objetivo melhorar a infraestrutura produtiva dos sistemas familiares e tem financiado itens como aprisco, barragens subterrâneas, barreiros lonados, caixas elevadas, cercas elétricas, entre outros.
b) Projetos Produtivos – essa linha tem por finalidade financiar atividades produtivas, como criação de caprinos, aquisição de colmeias e equipamentos apícolas, cultivos agroecológicos e campos de forragens. Financia projetos com os mesmos valores da linha anterior e adota taxa de juros de 1,5% ao mês.
c) Projetos Especiais – estão contemplados nessa linha os financiamentos a atividades de natureza específica e que não se enquadram nas duas linhas anteriores, inclusive a constituição de capital de giro. As taxas e os valores financiados são os mesmos da linha de Projetos Produtivos.
Para que uma associação se integre à Carteira de Microcrédito, deve comprovar pelo menos seis meses de fundação e estar em dia com suas obrigações legais e estatutárias. Caso sua solicitação de ingresso seja aceita pelo Conselho Deliberativo, a associação recebe uma visita de representantes do Comitê Gestor e de um Agente de Crédito para que o mecanismo de funcionamento e as normas da carteira sejam apresentados.
O sistema funciona a partir da declaração de interesse em um financiamento por parte de um agricultor ou agricultora que esteja no mínimo há seis meses associado e em dia com sua associação. A associação analisa a proposta que, se for aprovada nessa primeira instância, é encaminhada para a Carteira de Microcrédito.
A fase seguinte corresponde a uma visita à família proponente por parte de um agente de crédito da carteira ou de um jovem Agente Promotor de Agroecologia da comunidade. Nessa oportunidade, a proposta de financiamento é avaliada juntamente com a família por meio da elaboração de um estudo de viabilidade técnica-econômica do projeto, tendo como base uma análise do conjunto do agroecossistema e do impacto da contribuição do crédito para a transição agroecológica. Para auxiliar a realização dessa análise sistêmica, o agente se vale de algumas ferramentas/práticas participativas, tais como o desenho do mapa do sistema e dos fluxos entre os subsistemas e entre o agroecossistema e o meio externo.
O caráter sistêmico dessa avaliação marca uma diferença determinante da carteira de microcrédito com relação aos mecanismos convencionais de crédito, uma vez que estes últimos analisam a viabilidade do projeto, tomando como referência unicamente a capacidade de geração de renda do subsistema específico diretamente financiado.
Em seguida, a proposta é encaminhada com o parecer técnico para análise do Comitê Gestor do Crédito. Caso seja aprovada, os recursos são liberados e a família agricultora recebe nova visita com o intuito de apoiar a implantação do projeto. Os projetos são acompanhados por meio de visitas realizadas por técnicos(as) da carteira de microcrédito e por representantes do Comitê Gestor da associação à qual a família está vinculada.
ALGUNS RESULTADOS
O volume de recursos movimentado pelo sistema já ultrapassa os R$ 700 mil. Desse montante, 90% permanecem nas mãos das famílias. À medida que os recursos são devolvidos à carteira, novos projetos são financiados. Em 2009, 31% dos financiamentos foram orientados para projetos produtivos (criação de ovinos e bovinos) e 48% para melhoramento da infraestrutura, principalmente relacionadas ao estoque de água (cisternas) e forragens para os animais (silos). Do total das libe- rações, 48% foram acessadas por mulheres agricultoras.
O Crédito Agroecológico e Solidário é hoje um importante e consolidado referencial metodológico de financiamento da transição agroecológica, com evidentes exemplos de melhoria na qualidade de vida das famílias agricultoras e na sustentabilidade dos agroecossistemas. A experiência com a gestão desse mecanismo de crédito tem ensinado que o fortalecimento da agricultura familiar sertaneja depende do investimento em tecnologias e práticas adaptadas às condições locais, obedecendo um cronograma de desembolsos financeiros. De fato, as unidades familiares que mais avançaram na transição agroecológica necessitaram acessar a carteira mais de uma vez, segundo uma lógica de investimentos predefinida (ver Quadro).
APRENDIZADOS E DESAFIOS
Os financiamentos viabilizados pela carteira de microcrédito vêm permitindo às famílias aprimorarem e aumentarem a escala de aplicação de práticas que já adotavam anteriormente, assim como têm favorecido a introdução de tecnologias antes desconhecidas. Nesse sentido, o crédito vem apoiando a dinamização de processos de inovação local baseados na experimentação assumida pelos próprios agricultores.
Outro avanço proporcionado pela implantação do sistema na região foi o aprimoramento das capacidades de gestão dos recursos financeiros por parte das famílias beneficiárias e de suas organizações locais. Embora as taxas de juros adotadas sejam consideradas altas quando comparadas com aquelas cobradas pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Famílias (Pronaf), o volume de recursos da carteira de microcrédito vem aumentado e o índice de inadimplência tem se mantido baixo.
As famílias afirmam que preferem acessar os recursos do microcrédito pela relação de confiança que se estabelece entre as pessoas e pelo mecanismo de transação que, por ser desburocratizado, é capaz de se ajustar às realidades e características únicas de cada agroecossistema e projeto familiar. Essa é uma das razões pelas quais as famílias agricultoras se sentem ao mesmo tempo beneficiárias do financiamento e responsáveis pela carteira de crédito.
Um dos desafios identificados para a qualificação do sistema diz respeito à necessidade de apoio a práticas e ações que estimulem a organização de grupos e que valorizem as iniciativas coletivas, fomentando a solidariedade. Outra questão a ser considerada no futuro é a possibilidade de vincular essas experiências de financiamento das unidades familiares a um projeto mais amplo, abrangendo o desenvolvimento rural no âmbito do território. Isso implica extrapolar o debate sobre as políticas para além do crédito agrícola, incorporando o desafio de construir mecanismos de inserção da agricultura familiar nos mercados a partir dos princípios da economia solidária.
Com base nesses princípios e nos aprendizados da experiência vivenciada até o presente pelo Caatinga na gestão de sua carteira de crédito solidário, concluímos que o financiamento da transição agroecológica deve estar associado às seguintes condições:
a) Uma gestão participativa, envolvendo beneficiários(as), instituições de assessoria técnica e educação rural e instituições financeiras.
b) Uma assessoria técnica adequada e sistemática.
c) Um processo contínuo de formação e informação.
d) O acesso seguro à terra por meio da regularização fundiária.
e) Políticas de comercialização e abastecimento.
Assim, o microcrédito, em conjunto com outras políticas públicas, tem se apresentado como importante instrumento para o desenvolvimento socioeconômico da região, uma vez que proporciona a inserção de famílias excluídas que podem, dessa forma, incrementar suas atividades produtivas.
Giovanne Henrique Sátiro Xenofonte
coordenador do Programa de Desenvolvimento Institucional e Inovação
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Burguivol Alves de Souza
agrônomo educador
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Baixe o artigo completo:
Revista V7N2 – Crédito solidário: apoiando a transição agroecológica no Sertão do Araripe (PE)