André Luiz R. Gonçalves
O aquecimento global é sem dúvida uma questão crítica, que poderá trazer consequências irreversíveis para a vida na Terra. Compensar as emissões do carbono à atmosfera por meio da sua remoção e armazenamento na biomassa tem sido um dos mecanismos preconizados para mitigar as mudanças climáticas. O sequestro do carbono pelos sistemas de produção agrícola, principalmente por meio dos chamados sistemas agroflorestais (SAFs), apresenta-se como importante estratégia para o alcance desse objetivo. Este artigo apresenta o trabalho coordenado pela organização nãogovernamental (ONG) Centro Ecológico junto a centenas de famílias de pequenos agricultores no Rio Grande do Sul que, através da implantação de SAFs, vêm contribuindo para reduzir os efeitos do aquecimento global, em particular ao diminuir a vulnerabilidade dos sistemas agrícolas aos extremos climáticos que caracterizam esse fenômeno global. A experiência apresentada também demonstra que, além do alcance de maiores níveis de resiliência ecológica, as famílias que implantam os SAFs têm conseguido melhores resultados econômicos quando comparadas com seus pares convencionais. Dessa forma, a combinação desses efeitos positivos obtidos pela adoção do enfoque agroecológico demonstra que as medidas para a mitigação e a adaptação às mudanças climáticas não são necessariamente contraditórias com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social no meio rural.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
A região do litoral norte do Rio Grande do Sul está localizada no limite sul da Mata Atlântica, na divisa com o estado de Santa Catarina. A agricultura é tipicamente de base familiar, em propriedades com tamanho médio de 10 hectares, sendo o cultivo da banana a principal atividade econômica no meio rural.
Até alguns anos atrás, o clima costumava ser ameno, com temperaturas médias em torno dos 22 °C no verão e 12 °C no inverno. A distribuição de chuvas se mantinha regular, oscilando entre 1.300 mm e 1.500 mm por ano. Nos últimos anos, porém, os agricultores da região vêm relatando que o clima já não é mais o mesmo: os verões são mais rigorosos, os períodos de seca são mais prolongados e as chuvas já não seguem um regime regular. As consequências para a agricultura são inevitáveis, dificultando o planejamento de atividades tradicionais, tais como preparo do solo, o plantio, a adubação, o controle de pragas e doenças, os tratos culturais e a colheita.
Além dessas mudanças no cotidiano – que apesar de afetarem as atividades na agricultura podem, de certa forma, ser toleradas –, outro fator assusta a comunidade local. Na virada do dia 27 para 28 de março de 2004, a região foi assolada por um fenômeno climático até então inédito no sul do Oceano Atlântico. Um ciclone extratropical, com rajadas de ventos de até 180 quilômetros por hora, soprou durante toda a madrugada, causando destruição e desabrigando milhares de pessoas. O furacão Catarina, como ficou conhecido, deixou dez vítimas fatais no seu rastro, além de um prejuízo direto calculado em R$ 250 milhões.
Na área rural o furacão devastou grande parte dos bananais, tirando o sustento de centenas de famílias. Da noite para o dia, alguns municípios da região que têm na agricultura a base de sua economia entraram em estado de calamidade pública. Entretanto, em meio a tanto estrago, um fato chamou a atenção: alguns bananais manejados na forma de sistema agroflorestal, com árvores intercaladas entre as touceiras de bananeira, quase não sofreram com os fortes ventos. Diversas famílias que trabalham com esse tipo de manejo não tiveram seus sistemas de produção afetados pelo furacão.
SISTEMAS AGROFLORESTAIS – A RESILIÊNCIA ECOLÓGICA
O conceito de resiliência vem sendo cada vez mais em pregado para apontar um atributo desejável nos sistemas agrícolas, principalmente em um contexto de mudanças climáticas.
A capacidade de resistir aos choques externos sem ter com prometida sua integridade é uma característica que, face às incertezas do clima, deve ser cada vez mais observada nas áreas de produção agrícola. No caso em questão, os bananais manejados de forma agroflorestal foram capazes de se adaptar a uma nova situação, de extrema intensidade, sem com prometer seu potencial produtivo.
O trabalho de conversão das monoculturas de banana em sistemas agroflorestais, que hoje abrange mais de 150 famílias e aproximadamente 400 hectares, foi iniciado na região em 1991, quando a ONG Centro Ecológico, apoiada pela Pastoral Rural da Igreja Católica, promoveu um curso para jovens líderes rurais. A partir de então, muitos desses jovens começaram a adotar as práticas de manejo preconizadas pelo método agroflorestal. Essas práticas buscam reproduzir os padrões da natureza nos sistemas de produção de alimentos. Assim, os agricultores vêm sistematicamente transformando as áreas onde antes havia produção exclusiva de banana em cultivos multiestratificados e diversos.
O manejo é feito por meio do enriquecimento das áreas de banana com árvores, arbustos e mesmo cultivos anuais. A dinâmica da sucessão de espécies é um princípio imperativo, de modo que diferentes variedades de plantas são introduzidas, obedecendo a um cronograma da natureza. Periodicamente, as árvores são podadas para renovar o sistema e permitir a entrada de luz para as bananeiras. Essa prática ajuda a melhorar a qualidade do solo devido à incorporação de uma quantidade significativa de matéria orgânica.
Alguns estudos apontam que esses sistemas chegam a ter mais de 30 espécies de árvores típicas da Mata Atlântica, sendo algumas ameaçadas de extinção, como a canela sasafráz (Ocotea odorifera) e o palmiteiro ( Euterpe edulis), fonte do nutritivo e saboroso açaí de juçara.
Além da importância para a conservação da biodiversidade, esses sistemas têm um relevante papel como sequestadores de carbono atmosférico. De fato, a retenção de carbono na biomassa vegetal e no solo é muito mais significativa nessas áreas de produção do que nas monoculturas de banana. Em aproximadamente 10 anos de manejo, alguns bananais agroflorestais foram capazes de fixar cerca de 50 toneladas de carbono por hectare a mais do que os bananais em monocultura.
A resistência aos períodos de seca e calor é outra qualidade que demonstra a eficiência dos SAFs. A abundante biomassa vegetal ajuda a reter umidade no sistema e a criar um microclima mais ameno, reduzindo os efeitos da falta de água e do calor excessivo. Em suma, a implantação de sistemas de produção agrícola que mimetizam a natureza é de fundamental importância para a adaptação dos agricultores familiares a um contexto de crescente incerteza climática.
REDE ALTERNATIVA DE COMERCIALIZAÇÃO – A RESILIÊNCIA ECONÔMICA
O termo resiliência também pode ser empregado para descrever os sistemas econômicos que absorvem melhor os choques ou as constantes flutuações do mercado. As estratégias de comercialização e a forma como os agricultores se inserem no mercado são, nesse sentido, fatores determinantes para o sucesso do empreendimento agrícola. Em geral, as redes locais e regionais de comercialização, que aproximam produtores e consumidores, são mais adequadas à realidade dos agricultores familiares e ao chamado desenvolvimento sustentável.
Por essa razão, a construção de uma rede alternativa de comercialização esteve presente desde o início dos trabalhos com agricultura ecológica no litoral norte. Essa rede é formada por diversos pontos (núcleos) de produção, transformação e comercialização, constituindo uma teia solidária de circulação de mercadorias e serviços. Afinal, as relações que se estabelecem no âmbito dessa malha vão muito além do ato de comprar e vender, uma vez que a aproximação entre produtores e consumidores reforça laços de cooperação e amizade – o que dificilmente ocorre no mercado convencional. Assim, a rede constitui um verdadeiro espaço de fomento à Agroecologia.
No campo da produção, as Associações de Agricultores Ecologistas (AAEs) desempenham um importante papel na disseminação das práticas alternativas de manejo em suas respectivas comunidades por estarem espalhadas pela região e congregarem mais de 300 famílias de pequenos agricultores. Já as agroindústrias ajudam a transformar os produtos, agregandolhes valor e contribuindo para gerar um sistema mais resiliente, na medida em que os agricultores podem estocar a produção e escolher o melhor momento de vendêla. Entre as iniciativas de comercialização destacamse as feiras ecológicas, as cooperativas de consumo, os pontos de venda e, mais recentemente, a venda através de programas governamentais, como a merenda escolar do estado de Santa Catarina e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do Governo Federal.
Um sistema de comercialização dessa natureza tem efeitos importantes também do ponto de vista do clima. A grande diminuição na distância percorrida pelos produtos, desde o produtor até o consumidor final, implica reduções proporcionais na emissão de gases de efeito estufa. No mercado convencional esses caminhos são longos, chegando muitas vezes a alcançar milhares de quilômetros. No mercado local ecológico, esses caminhos são curtos – muitas vezes não chegam a 30 quilômetros –, o que contribui para atenuar o aquecimento global.
PRÓXIMOS PASSOS
A agricultura familiar, principalmente a de base ecológica, é, sem dúvida, um setor muito eficiente no uso responsável dos recursos naturais. Um pequeno agricultor, em qualquer canto do Brasil, libera para a atmosfera muito menos carbono do que qualquer habitante urbano. Entretanto, para que esse setor possa ser dinamizado e contribuir de forma significativa para a promoção do desenvolvimento sustentável, faz-se necessário o devido reconhecimento. A criação de um sistema de certificação dos serviços ambientais prestados por esses empreendimentos e a elaboração de políticas públicas de apoio e fomento são condições básicas para que milhões de pequenos agricultores desenvolvam sistemas de produção mais resilientes, ou seja, menos vulneráveis às mudanças climáticas e que ao mesmo tempo contribuam para a mitigação da emissão dos gases de efeito estufa.
André Luiz R. Gonçalves
coordenador técnico do Centro Ecológico
[email protected]
Baixe o artigo completo:
Revista V6N1 – Cultivando um clima bom no litoral norte do Rio Grande do Sul