Bianca Ferreira Lima e Waldiléia Rendeiro Amaral
Este artigo aborda a iniciativa de mulheres que obtêm sua renda e incrementam a de suas famílias com o extrativismo do camarão e do açaí. Elas integram a Associação das Mulheres Produtoras e Agro- extrativistas da Foz do Rio Mazagão Velho (Ampafoz), no estado do Amapá, sendo mais conhecidas como mulheres pescadoras do camarão. Mesmo enfrentando a discriminação e os padrões de convivência dominados pelo economicismo vigente na sociedade, elas têm contribuído para o desenvolvimento de práticas agroecológicas e de novos valores e identidades que conduzem à cidadania, à democracia e à sustentabilidade.
UM CONTEXTO SOCIOAMBIENTAL QUE AMEAÇA A BIODIVERSIDADE
Nas décadas passadas, a região da Foz do Rio Mazagão Velho se caracterizou pela grande concentração de serrarias, reflexo da extração exarcebada e desordenada de madeira. A atividade madeireira sem manejo requer extensas áreas e acarreta custos elevados. Muitas árvores, como andiroba (Carapa guianensis) e macacaúba (Plastymiscium ulei), foram derrubadas e, com o tempo, várias espécies da floresta foram sendo extintas na região. A alta intensidade e a grande frequência com que a extração da madeira é realizada superam a capacidade de regeneração da mata, de modo que os produtos da floresta diminuíram bastante. Estima-se que, para cada árvore retirada da floresta para a extração de madeira, outras 27 morrem ou são danificadas (Verissimo,1996). Os valores recebidos pelos agricultores pela venda da madeira até chegavam rápido, mas eram muito baixos e logo desapareciam. Basicamente dava para comprar os insumos para a próxima retirada e alguns itens básicos para a alimentação da família. Seu José Pereira, agricultor da região, lembra muito bem desse período:
“[…] Trabalhei com madeira durante 40 anos. Do meu terreno não vou dizer que acabei com tudo porque a gente sempre tenta deixar alguma coisa para os filhos, mas tirei quase toda a madeira de lá e não plantava nada. Depois que me juntei com essa minha mulher e que nós fomos para outro terreno a gente começou a botar açaí. Foram três anos que passamos muita dificuldade, mas depois que começou a dar a coisa melhorou e daí começamos a comprar as coisas e tudo que temos é tirado do açaí […]”
A demanda pelo palmito surgiu como nova oportunidade de renda para os agricultores, mas também como outro fator indutor do desmatamento. Essa atividade fez com que os produtores ampliassem a exploração do açaí (Euterpe oleracea Mart) avançando sobre outras áreas. Os cortes excessivos para a extração do palmito sem os devidos cuidados para permitir que novas plantas se estabelecessem ameaçou a reprodução da espécie nas comunidades ribeirinhas, levando à sua drástica redução nas propriedades. A acentuação dessa exploração chegou a obrigar as famílias a comprarem o açaí, um ingrediente básico na dieta local, para o consumo doméstico. Essa conjugação de processos descuidados de extração de madeira e de palmito induziu à exploração de extensões de terra cada vez maiores. Só recentemente, há cerca de cinco anos, a venda do fruto do açaí passou a figurar como atividade de renda importante para os agricultores da região.
“[…] Se uma família queria ir embora, a primeira coisa que fazia era tirar todo o palmito. Vendia o terreno sem nada: limpo! A pessoa tinha que começar do zero, tudo de novo […]” (Iane, sócia da Ampafoz)
A ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES
Foi nesse difícil contexto de insegurança alimentar e de baixas rendas provenientes da venda da madeira e do palmito que as mulheres passaram a se mobilizar para construir alternativas econômicas para elas e suas famílias, além de lutarem pelo reconhecimento de seu trabalho e pela conquista de sua autonomia.
Essa mobilização teve que enfrentar resistências culturais expressas sobretudo pelas atitudes dos maridos, já que no meio rural cabe às mulheres desempenhar funções consideradas como do âmbito privado, tais como o cuidado com a casa, a educação dos filhos e o trabalho na lavoura. Já os espaços de domínio público, como o relacionamento com as políticas, o comércio e a religião, são, de forma geral, reservados aos homens.
“[…] A mulher não participava de reuniões. Até mesmo nós, mulheres, achávamos que reunião era coisa de homem […]” (Adaciana, sócia da Ampafoz e professora)
Uma viagem de intercâmbio realizada por duas mulheres da região inspirou a iniciativa de trabalho cooperativo, pois permitiu que elas conhecessem uma associação e refletissem com suas companheiras sobre a importância da organização feminina para a produção e a comercialização.
A partir dessa experiência, mulheres de oito comunidades se juntaram em 2002 para criar sua própria associação. O objetivo era melhorar suas condições de trabalho com a pesca do camarão e assumir maior protagonismo na comercialização de seus produtos, criando assim alternativas de renda mais sustentáveis. Atualmente, a Ampafoz é composta por 62 mulheres que atuam na pesca do camarão, no manejo do açaí, além de exercerem papel destacado na defesa dos recursos naturais daquela região.
Segundo depoimentos de associadas, a formação da associação não foi nada fácil, já que enfrentaram muita resistência dos maridos.
“[…] Vivíamos isoladas sem apoio para adquirir nossos materiais de pesca e conseguir qualquer benefício do esta- do ou do próprio município. Agora com a associação, os programas estaduais e federais ficaram mais próximos porque temos força para lutar pelos nossos direitos, como saúde e educação. Quanto às questões ambientais, também muito já foi feito, como palestras educativas sobre a conservação de nossos rios e nossas florestas […]”. (Zuleide, fundadora da Ampafoz).
“[…] A gente descobriu que, através de uma associação organizada, nós conseguiríamos projetos para construir a sede da associação e outros projetos, como o dos matapis, projetos para materiais fixos, como os freezers, fogão, batedeira de açaí, máquina de triturar ração, computador, má- quina de beneficiar, utensílios de cozinha e outros bens […]” (Gorete, presidente da Ampafoz)
O TRABALHO DO DIA-A-DIA
O camarão de água doce sempre esteve presente na die- ta das famílias das comunidades da Foz do Mazagão Velho, graças ao trabalho realizado pelas mulheres. A pesca do camarão é hoje uma importante fonte de renda, mas seu significado extrapola esse sentido econômico, já que promove o reconhecimento do trabalho das mulheres. A criação da Ampafoz propiciou que as mulheres aderissem à colônia de pescadores, tornando-se pescadoras artesanais profissionais e garantindo seus direitos na época do defeso (novembro, dezembro e janeiro) e outros benefícios, tais como o salário-maternidade e a aposentadoria.
“[…] Para nós, mulheres, este foi um grande passo, porque depois que veio a associação ficamos esclarecidas e convidamos o presidente da colônia para uma palestra. Depois disso teve muita coisa, mas o que antes fazíamos sem reconhecimento, nem mesmo de nossos maridos, hoje se tornou uma profissão. Sabíamos que o recurso tava lá, mas não tinha como a gente acessar. Agora é diferente […]” (Gorete, sócia da Ampafoz)
Além de coragem, habilidade e disposição, a pesca do camarão requer alguns apetrechos que não são facilmente acessíveis nessa região. Um dos principais entraves da atividade é a confecção do matapi, uma vez que na área não há ocorrência das palmeiras Raphia vinifera e Raphia taedigera que fornecem a matéria-prima para a armadilha. Até a criação da Ampafoz, as pescadoras dependiam de seus maridos para conseguir os matapis, pois não dispunham de recursos financeiros para comprá-los. Além disso, após a pesca, o camarão era entregue aos maridos para que eles comercializassem na cidade.
“[…] Muitas vezes as mulheres daqui davam os camarões para os homens venderem na cidade. Eles chegavam sem camarão e até mesmo sem dinheiro, a gente não sabia nem por qual preço que era vendido […]” (Iane, sócia da Ampafoz)
Para superar essa dependência dos maridos, a Ampafoz contou com o apoio de parceiros e obteve um financiamento do Fundo Nacional do Meio Ambiente (vinculado ao Ministério do Meio Ambiente) para a construção da sede, a compra de matapis e a realização de oficinas e cursos sobre boas práticas agroextrativistas.
MANEJO DO CAMARÃO E DO AÇAÍ
A rotina das pescadoras é intensa durante a pacuema, período da vazante da maré, que dura 15 dias por mês. É nas luas minguantes que as mulheres olham para o rio da janela de suas palafitas e sabem que é hora de fincar as varas e amarrar os matapis para iniciar a jornada de pesca do camarão, assim como faziam suas antepassadas. O trabalho tem início com a coleta de folhas e fibras de espécies como o cupuçuarana, o cacau e o arumã para a confecção da poqueca (isca), que posteriormente é unida com o babaçu, já escaldado em água quente. Após o preparo da ração, a tarefa é iscar os matapis, ou seja, preparar a armadilha para os camarões. Logo em seguida, os matapis são amarrados num fio, um a um. A extensão do fio e, consequentemente, o número de matapis, varia de mulher para mulher dependendo do tamanho da área de manejo e da quantidade de armadilhas que possui. Os matapis são trocados de lugar após uma semana. De seis em seis horas são iscados para que os camarões sejam retira- dos e colocados em uma caixa confeccionada com madeira e sombrite denominada viveiro. A fabricação do viveiro é feita pelos homens e hoje muitas mulheres contam com o apoio do marido para confeccionar o apetrecho e puxá-lo da água, uma vez que o peso é grande. E é nessa etapa que o trabalho se torna familiar.
A atividade rende até 30 quilos de camarão por pacuema. Entretanto, nem sempre a produção é garantida por conta de alguns percalços, tais como o escape dos camarões por furos no viveiro feitos por peixes, principalmente a piranha; a morte dos camarões no viveiro quando a água do rio esquenta muito; ou ainda pelo furto da produção por pessoas de fora das comunidades.
A pesca sustentável do camarão é uma atividade que se encontra atualmente consolidada. Porém, permanece o enorme desafio de qualificar o acesso aos mercados.
A Ampafoz tem se mobilizado para inserir o camarão e o açaí na merenda escolar, fazendo valer a recente lei que assegura que pelo menos 30% da alimentação nas escolas sejam provenientes da agricultura familiar e atendendo à preferência dos estudantes por um produto saudável e de qualidade.
Por meio desse mercado, esperam uma remuneração justa para esses produtos tão apreciados, mas pouco valorizados nas cidades próximas (o quilo do camarão é vendido a R$ 5,00 nas cidades de Santana ou Macapá).
Embora a produção ainda não seja muito valorizada, os recursos obtidos têm sido essenciais para a vida das mulheres, já que elas têm sua autoestima reforçada. Saber que o seu dinheiro é proveniente de seu próprio trabalho revigora sua determinação para seguir lutando, como bem lembra uma pescadora: A gente já pode comprar o matapi com o dinheiro do próprio camarão.
O AÇAÍ NA MESA E NO MERCADO
Desde 2007, o festival do açaí vem sendo realizado na sede da Ampafoz, tornando-se um marco para a região. É durante os três dias de festejos que se pode provar todas as iguarias feitas à base do tão apreciado fruto da palmeira Euterpe oleracea, que hoje constitui a principal fonte de renda e de nutrição para as familías da região. Além disso, desde sua criação, a Ampafoz assumiu como missão a preservação dos recursos naturais. A partir da reflexão sobre os efeitos do desmatamento e da falta de alternativas alimentares, as famílias iniciaram o plantio de espécies frutíferas, tendo o açaí como carro-chefe. Muitas dificuldades foram enfrentadas no início, já que esse trabalho exigia investimentos, mas não rendia nenhum retorno imediato nem recebeu crédito durante os três primeiros anos. Havia ainda os comentários discriminatórios, tais como: Lá vão as mulheres se juntar para ficar falando mal dos maridos. Porém, as associadas, com o apoio de entidades parceiras, seguiram firmes na decisão de lutar e não desistir. Colhem hoje os frutos de seu trabalho.
VIVENDO E APRENDENDO A CONSTRUIR NOVAS RELAÇÕES
As mulheres da Ampafoz aos poucos estão consolidando suas conquistas nos planos econômico e cultural. Um exemplo disso é o envolvimento dos maridos nas atividades domésticas quando suas companheiras viajam para intercâmbios. Os filhos também ajudam na coleta de folhas para a isca do camarão. Por outro lado, a agenda de trabalho junto à associação vem sobrecarregando as mulheres, que passaram a assumir uma dupla jornada (trabalho de produção e de reprodução familiar). Apesar disso, nos sete anos de associativismo, as mulheres já adquiriram muitas lições e afirmam que, se depender da vontade delas, a história da Ampafoz seguirá propiciando a colheita de novos frutos.
Bianca Ferreira Lima
engenheira florestal e secretária-executiva do Grupo de Assessoria em Agroecologia na Amazônia (GTNA)
[email protected]; [email protected] m
Waldiléia Rendeiro Amaral
professora do Instituto Federal do Pará – Campus Castanhal e integrante do GTNA
[email protected]; [email protected]
Referências Bibliográficas
ESCALLIER, C.; MANESCHY, M.C. Mulheres na pesca artesanal no Pará: percepção e estatuto. Boletim Rede Amazônia, ano 3, n. 1, p. 77-83, 2004.
MANESCHY, M.C.; ALENCAR, E.; NASCIMENTO, I. Pescadoras em busca de cidadania. In: ALVARES, M. L. M; D´INCAO, M. A. (Org.). A mulher existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. Belém: Gepem, 1995. p. 81-96.
VERISSIMO, A. Impactos da atividade madeireira e perspectivas para o manejo sustentável numa velha fronteira da Amazônia: o caso de Paragominas. In: BARROS, A. C.;VERISSIMO, A. (Org.). A expansão da atividade madeireira na Amazônia: impactos e perspectivas para o desenvolvimento do setor florestal no Pará. Belém: Imazon, 1996.
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Revista V6N4 – Das janelas para o rio às práticas agroecológicas a experiência das mulheres agroextrativistas da Foz do Rio Mazagão Velho