Este número da Revista Agriculturas: experiências em Agroecologia é dedicado à juventude rural. Antes de qualquer apresentação de experiências ou análise da questão, será necessário esclarecer três questões: o que entendemos por rural; como definimos juventude e em que medida os jovens rurais se distinguem da juventude como um todo.
A definição de rural que pretendemos adotar é a que leva em conta os 30 milhões de indivíduos que habitam as áreas rurais, segundo dados do Censo de 2010. Assim sendo, compreendemos o mundo rural enquanto um lugar de vida, isto é, um lugar onde se vive (particularidades do modo de vida e referência identitária) e de onde se vê e se experimenta o mundo (a cidadania do homem rural e sua inserção na sociedade nacional).
No Brasil, a grande maioria dos habitantes do campo é formada por indivíduos ou grupos que mantêm, sob formas distintas, um vínculo patrimonial com a terra, da qual extraem sua subsistência no presente e garantem sua reprodução no futuro. Trata-se, mais especificamente, de famílias de agriculto- res e extrativistas e de comunidades tradicionais de variadas origens. Esses espaços rurais e essas populações se caracterizam pela sua grande diversidade econômica, social e cultural, o que exige a compreensão de cada contexto particular. Ao mesmo tempo, o mundo rural não é um mundo isolado, que possa ser entendido como uma realidade autônoma. Ao contrário, uma das dimensões importantes a considerar é, precisamente, os processos de sua integração à dinâmica da economia e da sociedade nacionais, na medida mesma em que ele é o resultado da forma como esta sociedade está organizada, das suas contradições e dos projetos de desenvolvimento que estão em curso.
Vale registrar, desde já, que estas reflexões estarão voltadas mais diretamente para os jovens rurais que pertencem a famílias de agricultores, embora a vivência dos que pertencem a comunidades tradicionais de origem étnica ou cultural incorpora outros elementos que não podem ser desconsiderados. Nesse sentido, para compreender a situação atual da juventude rural, bem como suas perspectivas futuras, é preciso levar em conta que esse segmento está inserido numa estrutura social, dominada pela concentração da terra e por uma concepção de desenvolvimento, definida pela modernização conservadora da agricultura. Nesse contexto, o campo de possibilidades de outras formas de agricultura, especialmente a agricultura familiar e de outras concepções de desenvolvi- mento rural, sofre profundas restrições.
Quanto à definição de juventude, cumpre apontar que essa pode ser percebida sob formas bastante distintas. Assim, a título de exemplo: as estatísticas oficiais brasileiras consideram o critério da faixa etária, separando os jovens de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos. Já o movimento sindical aceita em seus departamentos jovens, agricultores e trabalhadores, com até 32 anos. Por sua vez, pesquisas feitas em áreas rurais revelam que, para os habitantes do campo, o tempo de vida não é o único critério para definir se uma pessoa é jovem. Ser solteiro, não ter filhos, viver ainda com os pais podem ser, em muitos casos, referências mais importantes que a simples idade cronológica.
O que parece prevalecer é o fato de que a juventude corresponde ao período de transição entre a infância e a idade adulta, quando o indivíduo não assume ainda plenamente responsabilidades profissionais e de constituição de uma família. No entanto, essa ênfase na formação para a vida futura não implica em desconhecer o tempo presente, no qual os jovens constroem relações que lhe são próprias e vivem experiências singulares.
Quanto à diferenciação entre jovens rurais e urbanos, é importante dizer que os que têm no meio rural seu lugar de vida são, antes de tudo, jovens e, como todos os demais, de- vem dedicar-se à preparação para o futuro. Porém, suas condições concretas de vida são, sob muitos aspectos, diferentes daquelas conhecidas pelos jovens urbanos, justamente em razão de seu pertencimento a um ambiente social específico – o meio rural – e, muitas vezes, a uma unidade familiar agrícola, com características também específicas.
Para refletir sobre a vida presente e as perspectivas de futuro dos jovens rurais, vamos privilegiar aqui três temas centrais: o trabalho, a escolarização e os projetos de vida.
Ser trabalhador particulariza a condição juvenil de quem vive no campo e pertence a uma família de agricultores. Embora os laços familiares sejam fundamentais para qualquer jovem, quando se trata da família rural é preciso considerar suas especificidades. Afinal, ela não é só uma comunidade afetiva, referência central para a formação do futuro adulto em qual- quer situação, mas igualmente uma comunidade de trabalho e de produção.
Os filhos dos agricultores são desde cedo chamados a participar do esforço comum da família para garantir sua sobrevivência e a constituição de um patrimônio familiar. Nesse contexto, os jovens rurais têm uma dupla relação com o trabalho: por um lado, o tempo a ele dedicado deve ser concilia- do com o tempo necessário à escolarização; por outro, a própria formação do jovem se realiza pelo trabalho, o que justifica moralmente a sua reprodução. Trata-se, aqui, naturalmente, do trabalho feito no interior do estabelecimento familiar, sob a tutela dos pais, condição essencial para que esse envolvimento se traduza numa efetiva socialização do futuro trabalhador. Não é demais insistir que todo trabalho realizado por crianças e adolescentes para terceiros é ilegal e criminoso.
Esse compromisso de trabalho se realiza de uma forma constante e sua intensidade, que cresce com a idade dos filhos, depende, em quantidade e qualidade, do número e formas de combinação de culturas e criações, bem como do padrão tecnológico adotado em cada estabelecimento. Embora inicialmente estejam submetidos à direção e à tutela dos pais, não é raro que os filhos adquiram progressivamente uma certa influência sobre a tomada de decisões na esfera produtiva. Os distintos agentes de intervenção social – as políticas públicas, as organizações não governamentais e os movimentos sociais – investem nessa capacidade inovadora dos jovens, transmitindo-lhes, através de processos formadores diversos, uma outra concepção de como produzir na agricultura e de como desenvolver o mundo rural.
O trabalho dos jovens não se exerce apenas no interior do estabelecimento familiar. Ainda residindo no mesmo domicílio dos pais, muitos deles têm outras ocupações, seja em estabelecimentos agrícolas de terceiros ou em um setor produtivo distinto. A combinação do exercício de atividades internas e externas ao estabelecimento familiar configura o que se denomina a pluriatividade – que, naturalmente, pode envolver não apenas os jovens, mas todos os membros da família.
Alguns estudiosos entendem que trabalhar fora expressa uma perda progressiva da importância da agricultura para as famílias rurais, tendo em vista que, em muitos casos, o grau de ocupação e a renda conseguida com as atividades externas são superiores ao que é obtido no estabelecimento familiar. É bem verdade que o trabalho externo dos membros da família ocorre, frequentemente, em situações de insuficiência de renda, consequência, sobretudo, do acesso precário à terra e a outros recursos produtivos e que ameaça a continuidade dessa forma de agricultura. No entanto, pesquisas de campo revelam outras dimensões da pluriatividade. Trata-se do encaminhamento de uma situação que é normal e corriqueira no seio das famílias agrícolas: os jovens, a partir de uma certa idade, tentam encontrar um outro emprego, na agricultura ou fora dela, já pensando em seu futuro profissional. Nesses casos, a pluriatividade pode apontar para o processo de individualização dos jovens em busca de sua própria autonomia, seja visando constituir em breve uma outra família ou se tornar relativamente independente do ponto de vista financeiro (ter seu próprio dinheiro, poder ajudar mais a família etc). Além disso, a pluriatividade é, frequentemente, uma opção definida no interior da própria família, como uma estratégia de reprodução. Constitui-se, assim, um sistema de atividades relativamente complexo que, longe de significar uma crise da unidade familiar, supõe a centralidade do seu projeto coletivo.
No que se refere à educação, observa-se uma mudança significativa na percepção das famílias rurais a respeito da importância da escolarização de seus filhos. Pode-se afirmar que o acesso a uma educação escolar de qualidade é, hoje, antes de tudo, uma demanda destas famílias. A escola é, de fato, percebi- da como a principal via de acesso ao que consideram um futuro melhor, tanto para os filhos que partem em busca de ocupações urbanas, quanto para os que permanecerão como agricultores.
A diferença entre o nível de escolarização dos jovens atuais e o da geração dos seus pais, confirma as conquistas da sociedade brasileira no que se refere ao acesso à escola. No entanto, há ainda muito a conquistar quando a questão é a qualidade do ensino ministrado e o enfrentamento de problemas tão graves como o abandono precoce dos estudos. Especialmente no meio rural, as estruturas escolares são sabidamente precárias, ao que se deve acrescentar as dificuldades de acesso à escola, em razão das, em geral, péssimas condições do transporte escolar.
Entre os jovens rurais, a evasão é agravada pelo seu duplo envolvimento com o trabalho e com os estudos. De fato, as famílias aceitam liberar crianças e adolescentes do trabalho familiar. Porém, a partir dos 16 anos, esperam dos filhos uma contribuição maior, seja nas atividades internas ou na geração de renda monetária, por meio de trabalhos externos. A realização dos dois projetos – estudar e trabalhar – nem sempre encontra um ponto de equilíbrio satisfatório. O resultado aparece no reduzido acesso ao ensino médio e no abandono precoce dos estudos, na melhor das hipóteses, após a conclusão do ensino fundamental. Só muito recentemente, com uma certa disseminação de faculdades em cidades do interior, registra-se uma procura mais significativa de jovens rurais pelo ensino superior.
Ainda a respeito da qualidade, a natureza do ensino oferecido aos jovens rurais tem sido objeto de um intenso debate na sociedade brasileira. Há um certo consenso quando se trata de criticar a transmissão de um conhecimento que desconhece e desqualifica a cultura rural na qual os jovens es- tão inseridos, cuja consequência é o aprofundamento de sentimentos de inferioridade e de isolamento e a afirmação de assimetrias sociais injustificáveis. Contudo, esta postura não pode se traduzir pela reivindicação de uma educação particularizada, voltada apenas para as atividades agrícolas, desconhecendo que as famílias rurais educam filhos também para as cidades e que, sobretudo, têm direito à cultura universal.
Uma unidade familiar de produção tende, pela sua própria natureza, a provocar a saída de um certo número de filhos que não podem ser mantidos no interior do estabelecimento. Em condições normais, uma família com cinco filhos, por exemplo, terá, na geração seguinte, um sucessor no estabelecimento, devendo encontrar para os demais filhos outras formas de encaminhamento profissional. Nesse sentido, a saída dos filhos para outras profissões e para as cidades não expressa necessariamente uma crise da agricultura familiar. Esta ocorre muitas vezes quando, ao contrário, a família não consegue encontrar uma alternativa aceitável para os filhos que têm que partir. Mais preocupante ainda é o que vem acontecendo crescentemente, sobretudo em algumas regiões do país: nenhum filho se interessa ou tem condições de assumir o estabelecimento familiar que, dessa forma, deixará de existir enquanto tal na geração subsequente.
Cabe, naturalmente, aos próprios jovens decidir sobre o seu futuro. Esta decisão, no entanto, é diretamente influencia- da por um conjunto de fatores, dentre os quais destacam-se: as próprias condições de cada família (número de filhos, dimensão do estabelecimento, sistemas produtivos, etc); a importância atribuída às tradições referentes à transmissão do patrimônio familiar, que diferencia o que cabe a cada filho, em função, especialmente, do gênero e da ordem de nascimento; a oferta de ocupações no município onde a família reside, o que pode favorecer a permanência do jovem ou levá-lo a migrar para regiões mais distantes.
No Brasil, o fato de que os processos de urbanização e industrialização não se difundiram de forma homogênea no conjunto da sociedade tem consequências diretas e imediatas sobre os projetos de vida dos jovens rurais. Nas regiões onde predominam pequenas cidades, pouco diversificadas economicamente, as possibilidades de formação são reduzidas e as oportunidades de conseguir, no local, um emprego qualificado são mais restritas, de tal modo que a busca de uma afirmação profissional impõe, frequentemente, a migração. Assim, o momento que, para a maioria dos jovens urbanos, significa apenas um processo de escolha profissional, para os jovens rurais, pode ser carregado de uma tensão muito maior, na medida em que implique a tomada de decisão entre sair ou permanecer próximo a sua família e em seu local de origem.
As numerosas e diversificadas experiências, bem como as pesquisas que vêm se multiplicando nas últimas décadas, estão impregnadas de uma tríplice convicção: o reconhecimento do jovem rural em sua individualidade, como sujeito de direitos, que corresponde a sua situação específica; a afirmação da importância dessa parcela da po- pulação do campo para a própria vitalidade das comunidades rurais, no momento presente; a percepção de que são os jovens, hoje em processo de formação, que construirão o mundo rural de amanhã.
Depende desses jovens a reprodução das assimetrias e dos conflitos gerados pela imposição do modelo produtivista de desenvolvimento do campo ou a construção de um outro modelo de desenvolvimento rural sustentável, que faça do mundo rural um efetivo espaço de vida.
O presente número da Revista Agriculturas selecionou algumas dessas experiências e pesquisas. Respondendo aos termos da chamada de contribuições, todos os artigos tratam das grandes dificuldades que os jovens rurais enfrentam diante do dilema de encontrar alternativas locais de vida e de trabalho, bem como das iniciativas que as diversas instituições desenvolvem para promover o desenvolvimento rural com os jovens e a partir de suas necessidades e de- mandas. A riqueza dessas contribuições decorre não só da diversidade regional das experiências e das propostas institucionais referidas, mas, sobretudo, da contribuição que essas instituições e jovens oferecem para a construção do mundo rural do futuro.
O artigo de Ghislaine Duque e Maria da Glória Batista de Araújo, Protagonismo da juventude no semiárido: a experiência do Coletivo Regional do Cariri, Seridó e Curimataú (PB), reflete sobre o difícil dilema enfrentado pelos jovens: permanecer no campo ou migrar. Reconhecendo o potencial da juventude camponesa, o Coletivo Regional do Cariri, Seridó e Curimataú paraibano vem desenvolvendo ações com o objetivo de ampliar e reforçar a participação destes jovens nas iniciativas locais de convivência com o semiárido que visam a construção de um território agroecológico em sua área de abrangência.
No artigo Juventude rural e os desafios dos povos e comunidades tradicionais do Sertão Norte mineiro, o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM) apresenta sua experiência de formação de jovens. Segundo seus autores, Samuel Leite Caetano, Aline Silva de Souza, Marilene Alves de Souza e Helen Santa Rosa, trata-se de um programa de formação de jovens lideranças que, ao aplicar a pedagogia da alternância, visa desenvolver práticas produtivas agroecológicas. Dividido em módulos, esse programa incorpora reflexões sobre as práticas dos agricultores e as demandas e as necessidades dos diversos núcleos territoriais participantes.
Experiência semelhante é relatada pela Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), no artigo Juventude protagonizando a transição agroecológica no estado do Rio de Janeiro. Nesse caso, também, a proposta é de um programa de formação de jovens agricultores e agricultoras, baseado na pedagogia da alternância e organizado em torno dos eixos temáticos Reforma Agrária, Juventude, Agroecologia, Cultura e Sociedade.
Os camponeses nativos dos Andes do Peru, apesar da riqueza da agrobiodiversidade de sua região, também enfrentam condições precárias de vida e a tendência à migração para os grandes centros urbanos, que afetam particularmente as perspectivas de inserção dos jovens rurais. O artigo Agro- biodiversidade abre novas perspectivas para a juventude camponesa dos Andes, de Sarah-Lan Mathez-Stiefel, Cecilia Gianella Malca e Stephan Rist informa sobre as iniciativas adotadas pelo programa regional BioAndes, no sentido da criação de alternativas locais, baseadas, precisamente, num enfoque biocultural, que associa as potencialidades da biodiversidade aos processos de fortalecimento cultural das comunidades envolvidas.
A Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar (Fetraf) apresenta aqui sua percepção sobre a situação e as perspectivas dos jovens rurais. O artigo A juventude na agenda da Fetraf, assinado por Eliane Oliveira, Daniela Celuppi e Diego Sigmar Kohwald, enfatiza a necessidade de organização política dos jovens e de formulação de uma pauta de reivindicações que amplie as políticas públicas, de modo a garantir o acesso à terra e a criar condições favoráveis para o processo de sucessão nas propriedades da agricultura familiar.
Este número traz também dois artigos que são fruto de pesquisas acadêmicas, realizadas inicialmente como teses de doutorado. O artigo de Maria de Assunção Lima de Paulo, intitulado Jovens de famílias camponesas: suas realidades e seus sonhos, trata da particular situação de jovens agricultores que residem no pequeno município de Orobó, no estado de Pernambuco. Em sua análise, a autora privilegia a condição de trabalhador desses jovens, revelando como as tensões que decorrem da precariedade dos pequenos municípios restringem o campo de possibilidades profissionais, obrigando-os frequentemente à migração.
O segundo artigo, Os desafios da sucessão geracional na agricultura familiar, é o de Valmir Luiz Stropasolas. Nele, o autor se dedica à reflexão sobre as razões e as implicações que se observam, na atualidade, a respeito da passagem da propriedade e da direção dos estabelecimentos familiares de uma geração a sua descendência, no Sul do Brasil, mais especificamente no estado de Santa Catarina. Ele constata uma crescente tensão entre os projetos pessoais dos próprios jovens, sobretudo das filhas dos agricultores e as condições do exercício da atividade agrícola, nos quadros da agricultura familiar. O autor reflete, mais particularmente, sobre o enfraquecimento dos processos de transmissão do saber tradicional e propõe que as ações voltadas para o desenvolvimento rural estimulem a construção de espaços capazes de oferecer alternativas locais aos jovens rurais.
Desejamos a todos uma estimulante e proveitosa leitura desta edição!
Maria de Nazareth Baudel Wanderley
professora doutora aposentada da Unicamp;
professora colaboradora do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE); bolsista do CNPq
Baixe o artigo completo:
Revista V8N1 – Editora convidada