Claudia Job Schmitt
Os artigos que compõem esta edição da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia têm como foco práticas e experiências que buscam aproximar, de diferentes maneiras, a produção e o consumo de alimentos. Essas iniciativas ativam redes cujo desenho e modo de funcionamento não se encaixam nos formatos de produção, distribuição e comercialização de alimentos que se tornaram dominantes nas últimas décadas em várias partes do mundo. Em vez da comida de nenhum lugar, cultivada por produtores desconhecidos, embalada e transportada através de longas distâncias por grandes corporações, ganham visibilidade outras práticas, antigas, novas ou renovadas, sinalizadoras de um jeito diferente de produzir, distribuir, escolher, valorizar e consumir o alimento.
São muitas as possibilidades: venda de porta em porta, direto ao consumidor; comercialização de produtos ecológicos ou regionais nas feiras pelos próprios agricultores; pequenas agroindústrias familiares; hortas comunitárias; cooperativas de consumo; redes informais de troca e comercialização de produtos entre vizinhos; abastecimento de pequenos entre- postos e restaurantes em nível local; distribuição de produtos da agricultura familiar para as escolas e programas sociais por meio de mercados institucionais – para citar aqui somente alguns exemplos. Essas iniciativas de produção e comercialização, muitas vezes negligenciadas e vistas como soluções de pequena escala, ganharam visibilidade em diferentes países a partir dos anos 1990, apesar do contexto fortemente marca- do pela liberalização dos mercados e por processos de desterritorialização das economias locais.
Esse movimento de questionamento da qualidade dos alimentos comercializados pelas grandes redes atacadistas e varejistas, cultivados por meio de processos de produção agrícola que foram disseminados em escala global com o advento da Revolução Verde, não ocorreu apenas nos países do Norte, mas também em muitos países do Sul. As reações a esse modelo mobilizaram, de forma muitas vezes não planejada, indivíduos, organizações, valores e lugares, trazendo a público expressões distintas de denúncia e contestação dos processos de industrialização da agricultura, da globalização dos mercados e de suas consequências para agricultores, consumidores e o ambiente. A denúncia dos riscos associados aos agrotóxicos e aos alimentos transgênicos, o crescimento das redes de comércio justo e de agricultura orgânica, a indignação dos consumidores frente à disseminação de doenças através dos alimentos , o fortalecimento da Agroecologia como abordagem sociotécnica, entre outras manifestações, fazem parte de um conjunto heterogêneo de ações e reações que, ao colocarem em questão as formas dominantes de produção e consumo, contribuíram para a politização das relações entre produtores e consumidores, conferindo também novos significados aos chamados mercados locais.
No entanto, seria equivocado identificar todas essas iniciativas que nadam contra a corrente, buscando aproximar agricultores e consumidores, como invenções recentes. Em diferentes lugares, a capacidade de resistência dos mercados locais e das práticas de produção para o autoconsumo não está necessariamente ligada a um repertório político de contestação ao processo de modernização da agricultura, mas sim a laços fortemente enraizados na cultura, nos gostos e no modo de vida das populações urbanas e rurais. Tais laços figuram, inclusive, como componente-chave em um conjunto mais amplo de estratégias de reprodução econômica e social de famílias rurais, urbanas e periurbanas.
Portanto, a resiliência dos circuitos locais e regionais de abastecimento em várias partes do mundo é, sem dúvida, um fenômeno que merece um olhar mais atento. Diversos estudos têm chamado a atenção para o fato de que uma parcela muito significativa dos alimentos consumidos no mundo (85%) é produzida em âmbito nacional ou na mesma região ecológica (ETC Group, 2009; Ploeg, 2008). A título de exemplo, vale mencionar que apenas 6% da produção mundial de arroz é comercializada para além das fronteiras dos países produtores. No caso do trigo, cultura que exibe o maior percentual de exportação entre os cereais, somente 17% da produção mundial é vendida no mercado externo, sendo que os restantes 83% são consumidos nos países produtores (Ploeg, 2008). Segundo estimativas feitas pelo ETC Group (2009), 50% dos alimentos produzidos no mundo são cultivados por camponeses, 12,5%, por caçadores e coletores e 7,5%, por agricultores urbanos. A comi- da produzida e distribuída através dos circuitos agroindustriais de produção e comercialização corresponde, segundo esses cálculos, somente a cerca de 30% da alimentação mundial.
Em nosso país, uma parcela considerável dos alimentos destinados ao mercado interno provém da produção familiar, ainda que produtos cultivados por agricultores familiares, como o frango, a soja e o café, sejam também para exportação. Essa capacidade interna de produção tem se apresentado como um elemento importante para o abasteci- mento do país, reduzindo as pressões pela importação de produtos básicos. Os dados do Censo Agropecuário de 2006 estimam que a agricultura familiar seja responsável por 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café e 63% do valor produzido em horticultura (Consea, 2010). Parte dessa produção é utilizada no próprio estabelecimento agrícola ou circula através de circuitos locais e regionais de abastecimento.
O que se pode perceber, a partir desses dados, é que a imagem de um mundo globalizado, controlado pelas grandes corporações e onde os alimentos se tornaram objeto de especulação nos mercados de futuros é apenas uma das faces de uma realidade heterogênea e multifacetada. As configurações que emergem como resultado das transformações desencadeadas pela liberalização dos mercados de produtos agrícolas e pela implementação dos novos marcos regulatórios que passaram a governar o setor agroalimentar em nível mundial, sobretudo a partir dos anos 1990, assumem formas complexas e contraditórias. As tendências de concentração e integração das grandes empresas do setor agroalimentar, como pela criação de novos instrumentos legais, não se materializam do mesmo modo em todos os lugares, embora não deixem de constituir uma força poderosa.
No final da década de 1990, a Cargill já controlava 40% das exportações de milho, um terço das exportações de soja e pelo menos 20% das exportações de trigo (Morgan et al., 2009). Um grupo composto por apenas dez grandes empresas transnacionais controla, hoje, dois terços da produção mundial de sementes. Estas grandes empresas absorveram inúmeras companhias nacionais de sementes e empresas públicas dedicadas ao melhoramento de plantas que se encontravam em operação (ETC Group, 2008). O peso das grandes redes varejistas em seu esforço por atingir novos segmentos de mercado e atender às preferências do consumidor é outro dado importante nesse novo ciclo. O Walmart abriu a sua primeira loja fora dos Estados Unidos em 1991. Dados veiculados pela própria empresa informam que hoje sua rede varejista é composta por 9.600 unidades operando em 28 países do mundo. Já o Carrefour, que passou a atuar internacionalmente em 1989, conta com 9.500 lojas em 32 países.
Mas a elevação da produtividade, os ganhos de escala, a homogeneização das dietas e dos processos produtivos e a desregulamentação dos mercados não podem ser vistos como a única racionalidade operante no âmbito do sistema agroalimentar. As transformações em curso abarcam modos de organização distintos e, muitas vezes, conflituosos, traduzindo-se em dinâmicas econômicas, sociais, culturais e espaciais que não podem ser explicadas, simplesmente, por meio de dicotomias, tais como global versus local, convencional versus alternativo, mercado de massa versus mercado de nicho, liberalização versus regulamentação.
A percepção do sistema agroalimentar como um campo de relações contraditório, no qual coexistem diferentes tendências, é um pressuposto importante para a compreensão dos processos emergentes de localização e recontextualização da produção, do processamento e do consumo de alimentos, cujos desafios e potencialidades precisamos identificar.
Sob esse aspecto, duas questões merecem atenção. Cabe explorar, primeiramente, com um pouco mais de detalhe, que elementos estão em jogo quando se fala em restabelecer os vínculos da produção e do consumo de alimentos com seu entorno socioambiental, relocalizando ou reterritorializando o sistema agroalimentar. Parecenos importante também refletir acerca das relações existentes entre essas iniciativas impulsionadas tanto por processos de desregulamentação dos mercados de pequena escala, de abrangência local ou territorial, e as grandes transformações que hoje afetam o sistema agroalimentar e cujos desdobramentos serão vitais na conformação das redes de produção e consumo nas próximas décadas.
Quando nos referimos a diferentes processos de localização do sistema agroalimentar, um primeiro elemento a destacar é o fato de que as agriculturas existentes no mundo, em sua diversidade, são resultado de uma trajetória histórica de coprodução, envolvendo os grupos humanos e a natureza viva (Ploeg, 2008). Os modos de organização da agricultura e da produção de alimentos que se tornaram dominantes no período histórico posterior à II Guerra Mundial e que transformaram a atividade agrícola em uma empresa altamente de- pendente de fontes de energia e insumos externos tiveram, como um de seus principais efeitos, a fragilização dos vínculos da atividade agrícola com sua base ecológica, social e cultural.
A agricultura dependente dos combustíveis fósseis, dos agroquímicos e das variedades de alto rendimento alterou profundamente o metabolismo social, separando, cada vez mais, os espaços de produção e de consumo, instituindo um perigoso desequilíbrio entre a produtividade dos agroecossistemas e as demandas dos seres humanos e dos animais (particularmente a criação animal com fins comerciais) pelo consumo da biomassa.
Nos sistemas alimentares dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), instituição que reúne os principais países desenvolvidos, para a produção de cada quilocaloria (kcal) de alimento são investidas 4 kcal provenientes de outras fontes energéticas (Pimentel, 2009). Uma lata de refrigerante capaz de fornecer cerca de 1 caloria de energia necessita de 2.200 calorias para ser produzida – 70% das quais são utilizadas na produção da lata de alumínio (Pimbert, 2008).
Pode-se dizer então que nosso sistema de produção e distribuição de alimentos não é mais um produtor líquido de energia, mas sim um consumidor. Essa informação nos parece extremamente relevante em um momento em que os biocombustíveis vêm sendo apresentados como alternativa à utilização dos combustíveis fósseis. Estimativas feitas por diferentes agências, inclusive pela própria Agência Internacional de Energia (2008), compartilham a avaliação de que a produção mundial de petróleo cru chegará ao seu máximo histórico em 2020 e declinará a partir dessa data, confrontada por uma demanda de consumo sempre crescente. A transição para uma matriz energética que não seja baseada em combustíveis fósseis tenderá a ter como fonte importante de sustentação a biomassa e implicará, necessariamente, profundas mudanças nas formas de ocupação do espaço agrário e na apropriação e utilização dos recursos naturais (terra, água e biodiversidade), seja para a produção de energia, seja para a produção de alimentos. Essas mudanças parecem caminhar na direção de uma maior concentração do poder e da capacidade de investimento nas mãos das grandes empresas transnacionais.
Um estudo do Banco Mundial, publicado em 2010, chama a atenção para a corrida pela apropriação de terras, intensificada em nível global especialmente a partir de 2008. Esse processo levou à aquisição de 45 milhões de hectares de terras agricultáveis ou cultivadas por bancos de investimento, fundos de pensão, empresas vinculadas ao agronegócio, entre outros agentes econômicos somente entre outubro de 2008 e agosto de 2009. Esse novo fenômeno, que tem sido identificado pela expressão em inglês land grabbing , está sendo impulsionado pela expansão da produção de apenas oito commodities: milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e “florestas” plantadas (Sauer e Leite, 2010). Existe, portanto, uma grande probabilidade de que boa parte dessas terras seja destinada à produção de energia ou de alimentos em grande escala (Grain, 2011). A apropriação e a concentração dos recursos produtivos, juntamente com a privatização da agrobiodiversidade e dos conhecimentos através dos mecanismos de propriedade intelectual, são elementos fundamentais a serem questionados quando se trata de redesenhar os caminhos percorridos pelos alimentos até a mesa do consumidor.
As interrelações verificadas entre esses diferentes processos e seus potenciais impactos sobre a sustentabilidade do atual sistema agroalimentar contribuem para reforçar a ideia de que a relocalização, como princípio norteador, não se resume, simplesmente, a uma reestruturação dos circuitos de mercado. O que está em jogo, na verdade, é o papel dos mercados como um instrumento de orientação, ou melhor, na reorientação dos fluxos de energia e materiais que dão sustentação às atividades econômicas, reorientação esta que implica, também, formas mais equitativas de apropriação e distribuição da riqueza gerada pelo setor agroalimentar.
A transição para novos formatos de produção, processa- mento e consumo de alimentos, socialmente justos e ambientalmente sustentáveis, coloca em questão, portanto, as estruturas de poder que hoje governam o sistema agroalimentar, apontando para a necessidade de um novo equilíbrio entre agentes econômicos privados, Estados Nacionais, organismos multilaterais e territórios. A noção de soberania alimentar, enunciada, de forma bastante sintética, como o direito dos povos de decidir sobre seus próprios sistemas alimentares e agrícolas, protegendo e regulando a produção e o comércio agrícola internos de forma a alcançar objetivos de desenvolvi- mento sustentável, aparece como uma referência importante nesse debate (Via Campesina, 1996; Pimbert, 2008).
A estruturação dos mercados locais, como um componente na construção de estratégias sustentáveis de desenvolvimento rural, não se traduz necessariamente em um localismo defensivo, ou seja, uma defesa irrefletida dos produtos e dos circuitos locais sem considerar as complexas relações que se estabelecem entre o local e o global. O que está em questão é a construção social de mercados, arranjos institucionais e instrumentos de política pública capazes de viabilizar novas formas de produção, consumo e de apropriação do espaço rural que possam garantir a renovação, ao longo das gerações, dos processos ecológicos que sustentam essas atividades.
Sob essa perspectiva é que é preciso explorar as ligações entre os sistemas diversificados da agricultura camponesa e familiar e a preservação, in situ, da biodiversidade agrícola e alimentar, fundamental para a manutenção e o fortalecimento da capacidade de produzir alimentos em um cenário marcado por mudanças climáticas de alcance global. Os efeitos das mudanças climáticas sobre a produção de alimentos têm sido objeto de diferentes estimativas. Estudos apontam, por exemplo, para a possibilidade de uma redução de até 50% na produtividade das culturas em alguns países da África (Baylei, 2011). Declínios como esse são previstos em diversos países e deverão se traduzir em uma elevação dos preços dos alimentos. Diante desse cenário, o cultivo da diversidade alimentar e a valorização dos conhecimentos necessários para que esses diferentes produtos e sabores cheguem à mesa do consumidor, assegurando uma dieta saudável, equilibrada e culturalmente adequada, são ferramentas importantes em uma estratégia de adaptação às novas condições ambientais e à redução do estoque de terras agricultáveis, que poderá atingir muitas regiões.
Existem, portanto, conexões a serem estabelecidas entre as experiências de abrangência local e territorial analisadas nos diferentes artigos desta revista e ações voltadas à construção de estratégias abrangentes e multiescalares de transformação econômica, sociotécnica e cultural do atual sistema agroalimentar. Mas vários obstáculos precisarão ser enfrentados. A instabilidade dos preços e a posição de fragilidade dos agricultores em sua relação com os agentes de intermediação reduzem a margem de manobra existente na construção de novos desenhos de mercado. A importação de mercadorias baratas tem contribuído para desestruturar, em diferentes partes do mundo, a produção para o autoconsumo e os mercados locais. A imposição de padrões de qualidade e mecanismos de regulação que não se adaptam às condições de produção dos agricultores inibe iniciativas que buscam agregar valor à produção. Além disso, as facilidades de acesso ao alimento nos grandes supermercados afastam muitos consumidores das feiras e de outros espaços alternativos de comercialização.
Mas despontam no horizonte sinais importantes de transformação. Nos países desenvolvidos, como os Estados Unidos, fortemente dominados pela presença dos grandes supermercados, as vendas diretas de alimentos ao consumidor ampliaram- se na última década, passando de US$ 551 milhões em 1997 para U$ 1,2 bilhões em 2007, segundo o Censo Agrícola. Dados do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA, sigla em inglês) mostram que o número de feiras sem intermediários existentes no país passou de 1.755 em 1994 para 5.274 em 2009 (USDA, 2010). Pesquisa realizada em seis diferentes países da Europa e publicada em 2002 revelou que uma parcela significativa dos agricultores entrevistados (51%) estavam engajados em esforços de diversificação de suas unidades produtivas, desenvolvendo atividades voltadas à comercialização de novos produtos e serviços. A venda direta e o processamento de produtos no próprio estabelecimento agrícola, ao lado de outras estratégias, foram identificados como componentes importantes nesse movimento de transformação dos sistemas produtivos (Ploeg et al., 2002). No Brasil, 112 mil agricultores familiares (média anual) forneceram, entre 2003 e 2009, alimentos para escolas e programas sociais através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), fortalecendo os vínculos entre a produção familiar e o mercado institucional (Governo Federal/Grupo Gestor do PAA, 2010).
Os artigos que compõem este número da revista trazem consigo a riqueza das práticas e dos conhecimentos que vem sendo produzida no dia-a-dia pelas pessoas e organizações que buscam reduzir a distância entre a produção e o consumo de alimentos. Apontam, ao mesmo tempo, para questões substantivas relacionadas à continuidade e à ampliação das ações ora em curso.
O trabalho que inaugura a publicação, intitulado Sistemas agroalimentares: humanizar é possível, relata o cotidiano dos diferentes atores que integram a rede de agricultores, técnicos e consumidores estruturada no Litoral Norte do Rio Grande do Sul e no Sul de Santa Catarina. Elias, Isaías, Rosimeri, Gabriel e tantas outras pessoas estão construindo laços entre quem produz, quem compra e a preservação da Mata Atlântica, valorizando a palmeira juçara e todos os produtos e serviços que a floresta em pé pode nos fornecer. A existência de uma rede de organizações tanto de produtores como de consumidores é um componente fundamental nesse processo.
O artigo escrito por Eduardo Ribeiro e demais autores, intitulado O engenho na mesa: indústria doméstica e soberania alimentar no Jequitinhonha mineiro, dedica-se a desvendar os segredos de uma arte: a agregação de valor por meio da agroindústria rural familiar. As práticas desenvolvidas pelos agricultores, referenciadas no texto, estruturam-se a partir de uma estreita ligação entre a produção para o mercado e a produção para o autoconsumo, estando ancoradas, também, no profundo conhecimento material desses produtores-especialistas sobre produtos, processos produtivos e o gosto dos consumidores. Os autores chamam a atenção para as dificuldades enfrentadas no campo da comercialização, alertando também para o fato de que o aumento da escala desse tipo de produção, objetivo enunciado por muitos programas de melhoramento tecnológico da agroindústria familiar, pode comprometer os critérios de qualidade socialmente construídos desses produtos.
São apresentadas, na sequência, as estratégias desenvolvidas pelos agricultores familiares de São Lourenço do Sul e Pelotas (RS) que combinam a venda em feiras ecológicas com a participação em outros circuitos de comercialização, a exemplo do mercado institucional. No trabalho Heterogeneidades camufladas, resistências emergentes: práticas inovadoras em favor da relocalização do sistema agroalimentar no sul do Rio Grande do Sul, Monique Medeiros e Flávia Charão Marques discutem o papel dos mercados e das organizações dos agricultores como dispositivos coletivos, na transição para uma agricultura de base ecológica.
A pesquisa realizada por Maikel Serrano, Fernando Funes-Monzote e Nelson Rodriguez sobre os sistemas produtivos do município de La Palma, na região norte ocidental de Cuba, permite refletir sobre processos de transição agroecológica de abrangência territorial. Os autores chamam a atenção para as relações existentes entre a diversidade dos sistemas produtivos e sua capacidade de disponibilizar energia e nutrientes para a alimentação humana. A comparação entre as pequenas propriedades em processo de transição agroecológica e as unidades produtivas tradicionais e convencionais da região oferece elementos importantes no que tange à construção de políticas e projetos de intervenção a partir de um enfoque agroecológico.
A formulação e a aplicação de novas referências, capazes de orientar a construção de políticas voltadas ao fortaleci- mento de sistemas locais de abastecimento, encontram-se fortemente presentes no artigo elaborado por Tatiana Walter e John Wilkinson. O extenso trabalho de pesquisa conduzido no litoral do Baixo Sul da Bahia aportou elementos importantes na análise das complexas relações econômicas, sociais e ecológicas que estruturam a cadeia produtiva da pesca artesanal na região. Uma abordagem sistêmica, baseada na noção de Sistema Agroalimentar Localizado (Sial), foi incorporada pelo projeto Centro Integrado da Pesca Artesanal (Cipar) visando o planejamento participativo das estruturas e ações destina- das à cadeia produtiva, através de um processo que buscou reforçar o protagonismo dos pescadores e de suas famílias.
Encerra esta edição o artigo Contribuições do Programa de Aquisição de Alimentos à segurança alimentar e nutricional e à criação de mercados para a agricultura familiar. Nele, Catia Grisa e demais autores revisam a literatura recente sobre o PAA, buscando identificar suas contribuições para a transformação da matriz produtiva da agricultura familiar em diferentes contextos locais. Discute os avanços alcançados com a incorporação de uma abordagem orientada por princípios de Segurança Alimentar e Nutricional ao desenho e à implementação de políticas públicas, bem como alguns limites enfrentados pelo programa em seu processo de execução.
A construção de sinergias positivas entre experiências locais, como as apresentadas aqui, e arranjos político institucionais mais amplos, capazes de criar um ambiente favorável ao florescimento dessas iniciativas, ainda constitui um desafio. Mas ligações importantes já estão sendo estabelecidas por camponeses, agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, quilombolas, técnicos, educadores e consumidores que hoje se encontram no burburinho das feiras e nos mais diferentes espaços de discussão política, articulação e capacitação.
Claudia Job Schmitt
professora do CPDA/UFRRJ
[email protected]
Referências Bibliográficas:
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Baixe o artigo completo:
Revista V8N3 – Encurtando o caminho entre a produção e o consumo de alimentos