Jan Douwe van der Ploeg
O acesso a crédito é frequentemente considerado como condição indispensável para a superação da pobreza, já que permite aos agricultores a possibilidade de adotarem novas tecnologias para incrementar seus níveis de produtividade e de renda. Entretanto, muitos programas de crédito acabam por comprometer a autonomia dos agricultores, submetendo-os a relações de dependência e obrigando-os a assumir todos os riscos. Há certamente formas mais eficazes para ajudar os agricultores a construir sua própria base de recursos e ganhar independência.
A necessidade de recorrer ao crédito tem sido uma peça constante em diversas histórias tristes. No Peru, por exemplo, muitos pequenos produtores estão sempre beirando a fome, apesar de terem à disposição terras ociosas que, se bem manejadas, poderiam fornecer alimento e renda extra para a família. O que falta é dinheiro para a aquisição de sementes e fertilizantes, o aluguel de animais ou trator para preparar a terra, assim como para pagar pela água usada na irrigação. Não há meios, é o que dizem os agricultores peruanos.
Obter crédito realmente não parece ser a melhor saída para tal situação, embora tenha sido a combinação de crédito, mercados altamente voláteis e instabilidades climáticas a responsável pela ruína de vários agricultores em épocas passadas. Muitos tiveram que vender seus recursos para saldar empréstimos anteriores e agora se deparam com dívidas exorbitantes que não podem pagar. Para eles, o crédito se torna indisponível, uma vez que os bancos passam a considerá-los delinquentes.
Temos então um dos cenários mais recorrentes que acometem o desenvolvimento rural: o crédito coloca pessoas em apuros, mas são justamente essas pessoas que precisam dele para sair dessa situação. Só que não podem mais acessá-lo.
LIBERDADE E AUTONOMIA
A agricultura sempre requer uma base de recursos multifacetada. Além de terra, água, animais, sementes, fertilizantes, mão de obra, conhecimento, infraestruturas e equipamentos de trabalho, os agricultores precisam de capital de giro. Em geral, esse capital é constituído a partir de economias feitas durante ciclos produtivos anteriores. Cumpre ressaltar que, na verdade, a agricultura não consiste apenas na utilização desses recursos para produzir. A agricultura é muito mais um processo de reprodução e desenvolvimento dessa base de recursos. Ou seja, durante o processo de produção, os recursos são reproduzidos. Novilhas são geradas para serem tão produtivas quanto as vacas que irão substituir. A fertilidade do solo precisa ser mantida – de preferência, melhorada. Quando se cultivam batatas, as sementes devem ser selecionadas e reservadas para o próximo ciclo. Todos esses recursos carregam a promessa de render boas colheitas, assim como a esperança de que safras ainda melhores virão. Esse processo de reprodução não se aplica apenas aos recursos materiais, mas também aos recursos sociais: a mão de obra familiar (e/ou da comunidade), as redes sociais e o conhecimento acumulado. Mas a regra também se aplica ao capital de giro.
A base de recursos disponível para os agricultores é o resultado de ciclos anteriores. Tem sido gerada por meio do trabalho duro e da dedicação da família. Por ser fruto de seu próprio esforço, ela representa autonomia (ou independência, como os agricultores costumam dizer). Ela evita que seja necessário estabelecer relações de dependência com terceiros. Os meios necessários para produzir estão à mão. É o que o grande pesquisador da história agrária, Slicher van Bath, chama de liberdade do agricultor. Ele alega que se trata de uma dupla liberdade. Em primeiro lugar, porque significa estar livre de elos de dependência e da exploração a eles associada. Não é preciso arrendar terras de grandes proprietários nem pedir empréstimo a agiotas locais que cobram juros exorbitantes. Mas também se trata de ser livre para plantar segundo os interesses e perspectivas da própria família agricultora. Dessa forma, ninguém pode dizer como o agricultor deve operar. Os próprios agricultores decidem como vão planejar seus sistemas produtivos e desenvolver suas propriedades. A liberdade de e a liberdade para, portanto, são ingredientes indispensáveis para a prosperidade da agricultura.
A história da agricultura camponesa pode ser vista como uma luta por autonomia, uma luta que ocorre dentro de cada propriedade individualmente, mas que também envolve comunidades rurais e movimentos sociais do campo. Muitas cooperativas surgiram a partir desses movimentos, inclusive as cooperativas de poupança e crédito, tendo justamente o crédito como foco.
DEPENDÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA
A autonomia da base de recursos que foi historicamente construída vem sendo ameaçada em diversas partes do mundo. A pressão sobre a agricultura (de um lado, o aumento dos custos produtivos, do outro, a estagnação ou mesmo queda dos preços de venda), o viés urbano das políticas públicas e o incentivo à adoção de modelos tecnológicos que implicam a aquisição de insumos externos, são fatores que contribuem para a erosão da base de recursos autogestionada. No lugar da autonomia, existe agora uma densa e ampla rede de relações de dependência que incide tanto sobre o acesso aos insumos quanto sobre o escoamento da produção. Geralmente uma ponta dessa cadeia exerce pressão sobre a outra. A dependência em relação ao mercado de capitais é um exemplo típico desse quadro.
O crédito obtido nos bancos muitas vezes atrela as pequenas propriedades agrícolas aos grandes grupos agroindustriais. No Peru, por exemplo, as cooperativas agrícolas, bem como agricultores familiares, receberam empréstimos do Banco Agrário na forma de títulos de retirada, que poderiam ser usados apenas em grandes lojas comerciais, para ter acesso a sementes e agroquímicos prescritos. Não havia, portanto, possibilidade de usar o crédito de maneira alternativa para adquirir, por exemplo, gado e/ou árvores frutíferas. Esses empréstimos vinham com amarras que acabavam por determinar quais os cultivos que deveriam ser plantados, a forma como deveriam ser cultivados e, sobretudo, a quem deveriam ser vendidos. Assim, o mecanismo de crédito atava os agricultores à lógica e às demandas da agroindústria. Com a obtenção de tais créditos vinculados, portanto, a liberdade para é praticamente toda perdida.
Existem diferenças significativas entre propriedades rurais, regiões e países no que se refere ao equilíbrio entre autonomia e dependência. Em alguns países, os agricultores e suas organizações detêm uma autonomia bem maior sobre seus recursos. Já em muitos outros, as condições de mercado são precárias e as políticas agrárias e rurais são desfavoráveis, ocasionando o empobrecimento de agricultores e a depauperação de sua base de recursos. Apesar disso, alguns agricultores têm conseguido manter – ou reconstituir – uma base de recursos sólida, geralmente ao minimizar a aquisição de insumos externos e evitar contrair altas dívidas financeiras. A relevância dessa estratégia de produzir economicamente se torna mais evidente em tempos de crise, uma vez que essas unidades produtivas relativamente autônomas têm mais chances de sobreviver a momentos difíceis.
MECANISMOS ALTERNATIVOS
Mas o que fazer quando, por alguma razão, famílias agricultoras entram em apuros? Analisemos primeiro os diferentes mecanismos que podem ser empregados. No plano individual, há uma ampla gama de soluções potenciais. Os meios mais comuns são: o crédito informal (geralmente entre agricultores, em que um contribui com terra e mão de obra, enquanto o outro entra com o capital exigido), os fundos comunitários (como os tontines, presentes em diversos países africanos) e as redes sociais (de ajuda mútua). A cooperação e a distribuição equitativa dos riscos são importantes características dessas estratégias. É o que também as diferencia radicalmente da forma desigual de distribuir os riscos quando se trata de obter crédito formal. Em segundo lugar, há mecanismos como a diversificação de atividades e fontes de renda (essa pluriatividade é muito importante na agricultura chinesa) e migrações temporárias (muito comuns em boa parte da América Latina e do Leste Europeu, mas também até recentemente em países europeus, como Portugal). Esses mecanismos permitem que os agricultores obtenham ganhos em outras ocupações que depois serão revertidos para suas atividades agrícolas. Dessa forma, eles vão construindo seu próprio capital de giro. Em terceiro lugar, surgiram outros mecanismos que consistem na criação de novas atividades econômicas atreladas à agricultura (tais como unidades internas de beneficiamento, comercialização direta, agroturismo, produção de energia, etc.) que podem gerar um significativo fluxo de capitais e reduzir a necessidade de recorrer ao crédito bancário. O problema, porém, é que em geral é preciso ter um capital de giro considerável para iniciar tais novas atividades. Mas às vezes é possível um desenvolvimento progressivo, passo a passo.
No plano regional, a atuação dos movimentos sociais nesse sentido pode ser bastante importante. O movimento agroecológico na América Latina, por exemplo, tem ajudado agricultores a mudarem suas práticas, consumindo muito menos insumos externos, o que pode levar a uma redução da dependência em relação aos mercados de capitais. Esses mesmos movimentos também podem incidir na mudança de políticas rurais e agrárias. O surgimento do microcrédito é outro exemplo especialmente relevante para as mulheres do campo e para os mais pobres.
Políticas nacionais de incentivo à agricultura familiar também podem contribuir significativamente para o fortalecimento da base de recursos autônoma dos agricultores. Em geral essas políticas são bastante efetivas. As recentes experiências no Brasil são exemplares nesse sentido. Hoje, os programas públicos de aquisição de alimentos (que incluem a distribuição da merenda escolar) estão cada vez mais vinculados aos pequenos produtores locais. Pelo menos 30% dos alimentos comprados para atender escolas públicas devem ser adquiridos da agricultura familiar, o que representa um grande estímulo para os agricultores. O acesso a esse mercado criado recentemente significa que eles podem melhorar sua qualidade de vida e construir economias que mais adiante ajudarão a aprimorar suas unidades produtivas. Assim, o fornecimento da merenda escolar, em vez de ficar a cargo de supermercados ou de grandes empresas, foi incorporado a um programa altamente atrativo e eficaz para fortalecer a base de recursos das famílias agricultoras.
A AGENDA
Uma base de recursos autônoma e autogestionada é essencial para o crescimento da agricultura e para a emancipação da agricultura camponesa. Entretanto, a criação (ou restabelecimento) dessa base de recursos autônoma vem sendo comprometida pelos atuais mecanismos de crédito. É evidente que o crédito pode ser de grande valia, mas apenas sob certas condições. Em primeiro lugar, ele deve estar inserido em um programa mais amplo que tenha como orientação fortalecer a base de recursos das unidades de produção familiar. Em segundo lugar, ele deve ser desvinculado, de forma a permitir que os agricultores façam uso dele da maneira que acharem mais apropriada. Em terceiro lugar, os riscos implicados devem ser igualmente assumidos. O estudo de experiências bem-sucedidas também pode revelar outros critérios. Assim, da mesma forma que os agricultores desenvolvem modos de produção que carregam a promessa de progresso, novos mecanismos de crédito devem ser criados para ajudá-los em sua empreitada.
Jan Douwe van der Ploeg
professor de Sociologia Rural na Universidade de Wageningen, Holanda
[email protected]
www.jandouwevanderploeg.com
Baixe o artigo completo:
Revista V7N2 – Entre a dependência e a autonomia: o papel do financiamento para a agricultura familiar