José Camelo da Rocha e José Waldir de Sousa Costa
As famílias agricultoras do semi-árido brasileiro praticam maneiras sábias de organização e solidariedade que alimentam relações de interação e de responsabilidade mútua. Raramente expressas para além dos envolvidos, essas práticas são espontâneas e partilhadas entre grupos de interesses ou de indivíduos, em que cada um faz sua parte.
São experiências voltadas para o reforço das unidades de produção familiar, para o compartilhamento de alimentos, sementes, água e outros bens, para o apoio individual e psicológico ou para a promoção de melhorias das condições de vida da coletividade. Ora as famílias doam, de suas poucas terras, áreas para formação de “fundo de pasto” para uso coletivo, ora melhoram as vias de acesso à água, construindo ou limpando em mutirão reservatórios comunitários, ou ainda se juntam e botam abaixo as cercas colocadas por fazendeiros nos reservatórios públicos. São formas de organização social e de enfrentamento coletivo dos problemas do dia-a-dia, que trabalham com a noção de que é necessária a convivência com as adversidades climáticas da região. Essas práticas contrapõem-se ao padrão dominante de relações iníquas, baseadas na concentração da propriedade, na apropriação privada dos recursos e na sujeição aos detentores do poder político e econômico. O sentimento solidário presente nessas comunidades é, portanto, condição essencial para o próprio convívio com o ambiente.
Muitas dessas práticas persistem ao longo dos anos e até se moldam às exigências da tecnologia, como os mutirões para debulha mecanizada de cereais, dando continuidade ao velho costume de, em conjunto, “fazer o milho e o feijão”– que antes era um trabalho manual usando pedras e varas. A essas estratégias soma-se a aprendizagem histórica da poupança, baseada, na maioria das vezes, na engorda e criação animal e no plantio de culturas de renda.
Observa-se então que o forte sentimento de vizinhança e de partilha é parte da cultura e das tradições enraizadas na vida comunitária, que se materializam em intensos fluxos de produtos, serviços e de poupança, configurando uma verdadeira “economia de reciprocidade”. É essa economia que está sendo resgatada e fortalecida nas dinâmicas da Articulação do Semi-Árido Paraibano (ASA-PB), por meio da disseminação de formas mais estruturadas de crédito mútuo voltadas para o desenvolvimento da agricultura familiar agroecológica. Essas ações vêm ainda reforçar a organização social e o espírito de solidariedade inerente às famílias agricultoras.
Os chamados Fundos Rotativos Solidários (FRS), enquanto mecanismos de mobilização e valorização social da poupança comunitária, assumem a forma de gestão compartilhada de recursos coletivos. São constituídos a partir da contribuição das famílias ou estimulados por um capital externo, que pode proceder de diversas fontes. Têm sido, na verdade, um exercício fundamental na busca da sustentabilidade dos sistemas familiares, na perspectiva da convivência com a região semi-árida e na transição agroecológica. O termo “solidário” confere um novo sentido de sociedade, com estilo e valores concebidos e apropriados localmente, mas abertos à interação com outros grupos e ideais e contrapondo-se às relações políticas e econômicas excludentes.
Na Paraíba, em cada comunidade, município ou região, encontra-se uma grande riqueza de iniciativas e de capacidade inovadora na gestão e na organização dos FRS.
UM EXEMPLO DE FUNDO ROTATIVO SOLIDÁRIO
A falta de água potável era um problema comum para as mais de 150 famílias da comunidade de Gameleira, no município de Massaranduba. A construção de cisternas de placas destinadas à captação de água das chuvas para uso doméstico foi recebida como uma solução imediata, eficiente e ao alcance da iniciativa das famílias. Num primeiro momento, chegaram recursos externos para apoiar a construção de dez cisternas. Mas como atender a todas as famílias com tão pouco recurso? Foi inspirado em outras tantas comunidades organizadas pela ASA-PB que o povo de Gameleira criou um primeiro grupo de Fundo Rotativo Solidário, com a participação inicial de 30 das 91 famílias que necessitavam do benefício.
Nessa época, decidiram em conjunto que todas as famílias daquele grupo pagariam mensalmente R$ 20,00 e foi dessa forma que a comunidade conseguia arrecadar o montante mensal de R$ 600,00 – que correspondia, então, ao valor integral de uma cisterna. Passaram também a sortear mensalmente uma nova cisterna entre o grupo. Ao final de 20 meses, com os recursos captados localmente, foram construídas 20 unidades, contemplando todos os participantes desse primeiro grupo. O sucesso da experiência logo mobilizou outras famílias da comunidade e mais dois grupos foram formados a partir do repasse feito pelo FRS inicial. Ou seja, o recurso das dez primeiras foi capaz de gerar dois novos grupos. Mais tarde, Gameleira recebeu para a construção de outras 25 cisternas, apoio financeiro do Programa de Formação e Mobilização Social para Convivência com o Semi-Árido (ou P1MC), da ASA-Brasil, financiado pelo Governo Federal por meio do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS).
Com a compreensão de que os projetos sociais devem cumprir um papel de fortalecimento das organizações locais, das dinâmicas geradoras de desenvolvimento comunitário, econômico e social, as famílias que receberam as cisternas por meio dos recursos externos não se diferenciaram das demais e continuaram contribuindo para o FRS. Foi assim que, em pouco tempo, conseguiram atender a todas as famílias e mais: 11 delas já conquistaram sua segunda cisterna.
Em quatro anos, a comunidade que recebeu recursos para 35, chegou a construir mais 67 cisternas com arrecadação local, totalizando 102 unidades. Ou seja, o recurso inicial quase triplicou. Há que se considerar ainda o aumento da oferta de água potável em 1.632 m. Ao deixar de comprar carro-pipa para fazer o abastecimento local, o povo de Gameleira também deixou de gastar aproximadamente R$ 14.000,00/ano. Esses recursos, em vez de serem apropriados por empresas urbanas fornecedoras de água, puderam ser mantidos em circulação na comunidade para atendimento de outras necessidades.
Atualmente, o FRS permanece em Gameleira estimulando outras iniciativas e reforçando os processos de organização e de multiplicação dos laços de solidariedade. Com a água perto de casa, as famílias despertaram para um novo modo de se relacionar com a natureza para melhoria do sistema produtivo. A diversificação da produção, principalmente ao redor de casa, com plantas frutíferas, medicinais, forrageiras e aprimoramento dos sistemas de pequena criação, vem contribuindo sobremaneira para a segurança alimentar das famílias. Observa-se, ainda, que o Fundo Rotativo vem valorizando e financiando outras iniciativas na comunidade, como a melhoria da infra-estrutura hídrica para produção, a construção de residências e igrejas, o apoio funeral etc.
Aos resultados econômicos, acrescentam-se a elevação da auto-estima, a conquista da cidadania, a produção de conhecimentos que são incorporados pelas famílias no processo de discussão, a proposição de idéias e a gestão compartilhada dos recursos. A exemplo da experiência do Fundo Rotativo de Gameleira, muitos grupos comunitários, hoje espalhados por diversos municípios da Paraíba, não se satisfazem só com a conquista da água potável, mas passam a vislumbrar a construção de uma nova relação em sociedade.
A GESTÃO COMPARTILHADA
As formas de organização e gestão dos FRS´s são diversas e alimentadas pelas dinâmicas comunitária, municipal ou regional. Nesse processo, as trocas de experiências têm constituído espaço fecundo para o sucesso da disseminação de informações entre os grupos. Uma comunidade aprende com a outra como superar suas dificuldades, como inovar suas práticas, como melhorar sua gestão compartilhada.
Na forma de gestão mais usual, as famílias se reúnem, avaliam os trabalhos da comunidade, fazem a prestação de contas e dão a sua contribuição. Geralmente, o valor de retorno ao Fundo é definido de acordo com as condições de cada família e aquelas com melhor condição financeira contribuem com parcelas maiores. Na reunião, ainda é feito o sorteio da próxima família a ser contemplada.
O momento seguinte é a compra do material de construção necessário que, normalmente, fica a cargo dos responsáveis pela coordenação do grupo. Quando algumas famílias não conseguem contribuir num determinado mês, e os recursos não são suficientes para comprar os materiais, são elas que negociam com a loja a complementação do pagamento no mês seguinte. Com essa prática, evita-se a desvalorização da moeda. Mas, quando isso acontece, as famílias também aumentam o número de parcelas para corrigir a perda e acompanhar o preço do material. Para melhor organização dos dados, o registro contábil é feito em planilhas com os nomes dos participantes, que podem seguir o fluxo de perto com seu carnê de contribuição.
O PROCESSO DE IRRADIAÇÃO: ARTICULAÇÃO EM REDE
A partir do processo de formação e mobilização alimentado pelas experiências locais, as famílias e suas organizações são motivadas à valorização e ao olhar crítico de sua realidade. Dessa forma, a sistematização de suas próprias experiências, seja do ponto de vista técnico, econômico, organizativo ou político, constitui um instrumento importante para pensar estratégias de irradiação. Elas trazem referências novas para a reflexão e a ação das famílias, resgatando valores e construindo novas percepções sobre a capacidade das comunidades de se constituir como agentes econômicos autônomos e autogestionários.
É dessa forma que as experiências com os FRS´s têm sido incorporadas aos diversos espaços de atuação da ASA-PB e da ASA-Brasil. Pode-se dizer que a primeira experiência realizada com FRS, em 1993, envolvendo dez famílias da comunidade de Caiçara, no município de Soledade, foi um impulso que alimentou o processo de irradiação para as 18 mil famílias hoje envolvidas e distribuídas em mais de 1.800 comunidades de 140 municípios em todo o estado. Os FRS´s têm crescido em número de grupos, em diversidade de ações e nas formas e modalidades de gestão, como define José Maciel da Comunidade de Caiçara: “Este é o jeito da gente crescer em comunidade”.
Atualmente, a ASA-PB vem estimulando e mobilizando recursos públicos de programas governamentais para o fortalecimento das ações solidárias, a exemplo do Programa Cooperar e do Programa de Formação e Mobilização Social para Convivência com o Semi-árido – P1MC.
Os Fundos são mais do que mecanismos de financiamento de atividades. Eles têm se mostrado um forte instrumento da economia comunitária a serviço do desenvolvimento autocentrado. Como um sistema de crédito mútuo, a experiência pode ser apreendida como motivação e subsídio para formulação de políticas públicas de financiamento mais adequadas à agricultura familiar.
Inseparável de sua dimensão de exercício comunitário de gestão e de poder político, que se exprime em uma nova forma de relacionamento pessoal e coletivo, o FRS é “a chave que abre a porta de um novo horizonte”, como exprime o agricultor Cícero, do município de Picuí. E é para ampliar esse horizonte que os agricultores, agricultoras, suas lideranças e organizações e técnicos das diversas entidades de assessoria vão contribuindo, cada um do seu jeito e em seu lugar, para a construção de políticas alicerçadas em práticas locais sustentáveis e democráticas para a convivência com o semi-árido.
José Camelo da Rocha:
administrador e assessor técnico da AS-PTA.
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José Waldir de Sousa Costa:
estudante de geografia e coordenador do Programa Cidadania, Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável do Programa de Aplicação de Tecnologia Apropriada às Comunidades (Patac).
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Revista V2N3 – Fundo Rotativo Solidário: instrumento de promoção da agricultura familiar e do desenvolvimento sustentável no semi-árido