Sílvio Gomes de Almeida e Gabriel Bianconi Fernandes
As intensas chuvas ocasionadas pelo El Niño em 1995/96 comprometeram drasticamente as colheitas da família Licheski, agravando a já crítica situação de desorganização da economia familiar. Essa conjuntura marcou o início de um período de reorientação de suas atividades agrícolas, até então baseadas no cultivo convencional e especializado de milho-feijão consorciado e de batata, em áreas próprias e arrendadas. Não fosse a venda de erva-mate, presente nas matas da região em que vivem no centro-sul do Paraná, e a venda de oito vacas, a família teria sido obrigada a abandonar a agricultura.
A busca incessante pelo aumento da renda a partir de escalas crescentes de produção, tanto pela utilização de agroquímicos, como pela expansão da área cultivada, foi a estratégia adotada pela família desde sua instalação como novo casal de agricultores, em 1983. Esse padrão produtivo tornou a renda dos Licheski fortemente dependente das oscilações do mercado de alguns poucos produtos. “Havia êxito numa safra, empate na outra, perda na seguinte”, conta José Licheski. Nessas circunstâncias, não havia possibilidade de constituir poupança. A renda gerada num ano era consumida no ciclo produtivo seguinte, enquanto se acumulavam dívidas com presta- mistas e comerciantes locais.
Diante da crise, a família decidiu cultivar apenas a área que conseguia trabalhar com seus próprios meios, abandonou progressivamente o uso de motomecanização e agroquímicos e iniciou a transição para a agroecologia. Contribuiu para esse processo o conhecimento herdado da família sobre a produção de sementes, o manejo de adubos verdes e a tradição da produção de batata orgânica para consumo próprio.
DA ESPECIALIZAÇÃO À DIVERSIFICAÇÃO
Em 2001, menos de cinco anos após esse momento difícil, uma avaliação comparativa dos impactos econômicos gerados pelas inovações agroecológicas introduzidas até então no sistema familiar evidenciou que a propriedade estava bastante mudada. Em volta da casa, a família cultivava mais de 60 espécies, entre frutas, hortaliças e plantas medicinais, mantendo também um pequeno criatório diversificado. Os cultivos anuais de batata, milho, feijão, trigo, arroz e mandioca são sempre intercalados, no espaço e no tempo, com adubos verdes de inverno e verão. O erval nativo foi mantido em um sistema agroflorestal do qual se utilizam mais de 35 espécies, dentre frutos silvestres, lenha e plantas medicinais.
Essa composição diversificada da propriedade viabilizou estratégias variadas de manejo da fertilidade do agroecossistema e elevado aproveitamento interno de recursos, o que se traduziu em baixa dependência de insumos externos e alto nível de autonomia técnica. A horta é adubada com cinza do fogão, biofertilizantes e esterco das aves que, por sua vez, recebem sobras da horta e do consumo alimentar da família, além de milho e batatas que não atingiram padrão desejável. Já as áreas de grãos recebem biofertilizantes e uma mistura de esterco, cinza, fosfato de rocha e calcário. O esterco é comprado de vizinhos ou trocado por outros produtos, dada a ausência de bovinos e suínos na propriedade.
ECONOMIA DA DIVERSIDADE
A diversidade cultivada e os recursos florestais, além de constituírem um elemento central na gestão do sistema, também geram rendas diversificadas. As produções de batata, da horta, da mandioca e da agrofloresta representam 68% da renda agrícola da família. Esse valor não reduz a importância das outras atividades, que geram pequenas receitas escalonadas ao longo do ano e que, além disso, são fontes de rendas não-monetárias, ao produzirem insumos e resíduos usados nas demais atividades e fornecerem alimentos que enriquecem em quantidade e qualidade a dieta familiar.
As diferentes formas de valorizar economicamente um mesmo produto, seja para consumo animal ou humano, seja para utilização como insumo ou para venda, ajudam a estabilizar todo o sistema. A comercialização de sementes, por exemplo, é uma fonte significativa da renda agrícola. Elas são vendidas ou trocadas no mercado local, onde há grande demanda.
O relacionamento com o mercado urbano local é outra forma de valorizar a diversidade na economia familiar e de se apropriar de uma maior parcela do valor produzido. A maioria dos produtos é vendida diretamente aos consumidores através de múltiplos canais – restaurantes, coletividades e famílias, que formam uma clientela mantida, sobretudo, em função de relações de confiança na qualidade do que é comercializado. A comunidade onde vivem os Licheski e seu entorno constituem também um espaço de realização da produção, por meio da venda ou da troca de gêneros, como a erva-mate, sementes e outros produtos do quintal.
Os outros agricultores familiares da região, no entanto, ainda que participando do mercado local, vendem a maior parte da produção a preços pouco vantajosos nos circuitos dominados por intermediários e atacadistas.
Com um sistema de manejo integrado e capaz de subsidiar suas próprias atividades, os custos monetários (desembolso em dinheiro) das produções correspondiam a apenas 14,5% do excedente monetário da renda agrícola da família, enquanto o conjunto das necessidades domésticas (inclusive alimentares) compradas no mercado limitava-se a somente 2,5% desse excedente. Constituíram-se, assim, as condições para a formação de uma poupança em dinheiro correspondente a 80% da receita gerada pela família. Esses recursos puderam ser destinados às despesas de manutenção doméstica, ao lazer, ao custeio dos poucos insumos comprados e até a pequenos investimentos.
BAIXOS CUSTOS E ALTO VALOR AGREGADO
Os rendimentos dos principais cultivos regionais obtidos pela família no manejo agroecológico revelaram-se amplamente superiores aos verificados nos sistemas convencionais, salvo no caso da batata. Os rendimentos apresentam variações entre um mínimo de +16% para a mandioca e um máximo de +171% para o feijão convencional. Quanto à batata, a significativa diferença para menos está relacionada à ausência de variedades adaptadas ao manejo orgânico para as condições locais.
Combinados a rendimentos elevados, os custos unitários de produção extremamente baixos conferem alta rentabilidade econômica ao sistema agroecológico. Os gastos intermediários, ou custos monetários de produção, absorveram apenas 5,5% do produto bruto do estabelecimento, revelando grande capacidade do sistema em aproveitar os recursos internos e minimizar gastos com insumos e serviços. Essa estratégia de gestão se traduziu numa agregação pelo trabalho familiar de nada menos do que 1.640% ao valor dos insumos adquiridos fora da propriedade.
No caso do milho, a cada real aplicado, a família obteve novos R$38,12, contra R$1,27 no sistema convencional com tração animal, e apenas R$0,57 no motomecanizado. Mesmo no cultivo da batata, embora com produtividade menor, o sistema agroecológico alcançou maior rentabilidade em função dos baixos custos, agregando entre 8 e 28 vezes mais valor por unidade de área do que os sistemas convencional e de tração animal, respectivamente.
Expressando essa elevada capacidade de gerar novas riquezas, os Licheski conseguiram apropriar-se de 92% do valor agregado total da atividade produtiva a título de renda agrícola familiar. Com esse resultado, a ocupação econômica do núcleo familiar pôde ser mantida estável, com uma renda agrícola per capita (2000/01) em torno de 20% superior ao custo de oportunidade da força de trabalho na região (1 salário mínimo).
ECONOMIA DE SINERGIA
A sustentabilidade do sistema agroecológico tem seu fundamento em uma sólida “economia de sinergia”, ou de integração entre fatores internos e externos. Internamente, há um grande aproveitamento dos produtos e da biomassa, resultando em uma considerável economia de insumos. Externamente, intensas relações de cooperação entre vizinhos e parentes permitiram economias importantes na contratação de serviços e mão-de-obra, assim como na aquisição e manutenção de equipamentos. Mesmo estimando monetariamente apenas uma parte dessa “economia de sinergia”, observa-se que, se tivesse que adquirir esses produtos e serviços, a família teria gasto cerca de 80% do faturamento líquido (produto das vendas menos os custos monetários) da safra 2000/01.
NOVOS VALORES
A incorporação das inovações agroecológicas ao sistema produtivo estimulou a emergência de novos valores que se manifestam nas relações familiares e comunitárias.
A maior integração técnica e econômica das atividades produtivas tem implicado em esforço renovado e reconhecido de partilha das decisões na propriedade pelo núcleo familiar, que se expressa no planejamento dos cultivos, na alocação de recursos financeiros e também na valorização dos conhecimentos e da capacidade de inovação da mulher e dos filhos.
No âmbito comunitário, a família Licheski tem sido veículo de disseminação de conhecimentos novos no campo do manejo dos sistemas agrícolas. Por outro lado, tem promovido práticas sociais mais integradoras, estimulando tanto a preservação dos recursos ambientais coletivos como as práticas dinamizadoras da economia local. Exemplo disso é o favorecimento e incentivo à circulação das rendas familiares dentro da própria comunidade, através de processos locais de compra e venda, troca e empréstimos de bens e serviços, incluindo trabalho, sementes, produtos animais, dentre outros.
DESAFIOS
Na continuidade do processo de transição para a agroecologia, a família tem planos de expansão e intensificação das atividades, estendendo-as a uma nova área adquirida por herança familiar. Com essa decisão, alguns pontos críticos e desafios foram identificados em discussão com a família durante a avaliação, como o aumento da demanda por trabalho, a reintrodução de bovinos e suínos e a necessidade de novos equipamentos e crédito compatíveis com o manejo do sistema.
Sílvio Gomes de Almeida:
economista, diretor-executivo da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA)
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Gabriel Bianconi Fernandes:
agrônomo, assessor-técnico da AS-PTA.
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Referências:
ALMEIDA, S.G. & FERNANDES, G.B. Monitoreo económico de la transición agroecológica, estúdio de caso de una propiedad familiar del sur de Brasil. Leisa, revista de agroecologia. Lima: Asociación ETC Andes, 2003. p.58-63.
Baixe o artigo completo:
Revista V2N3 – Gestão econômica da transição agroecológica – ensinamentos de um caso na região centro-sul do Paraná