José Manuel Palazuelos Ballivián, Cenilda Ventura e Fermino Bento de Oliveira
Na localidade do Setor Três Soitas, da terra indígena Guarita, situada na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, a família de Fermino Bento de Oliveira, agricultor indígena kaingang, promove o resgate das sementes antigas. Tudo partiu de um sonho de Cenilda, sua esposa. Ela refletiu sobre a importância de manter e proteger a diversidade de sementes para garantir o alimento da família e ter a possibilidade de compartilhá-las com os parentes e vizinhos de sua aldeia.
O POVO KAINGANG
Historicamente, antes da denominação kaingang , esse povo recebeu outros nomes: guayanás, coroados, bugres e botocudos. Kaingang passou a ser utilizado a partir de 1882, introduzido pelo coronel Telêmaco Borba, que dominou e expulsou os índios de suas terras. Segundo Borba, o significado da palavra kaingang é: caa = mato + ingang = morador. Isso porque o povo kaingang era basicamente nômade, tendo como meio de vida as atividades de caça, pesca e coleta. A agricultura era originalmente uma atividade incipiente e complementar; não exercia o papel fundamental verificado nos dias de hoje. Porém, na medida em que os territórios de caça e coleta foram sendo destruídos, expropriados ou reduzidos, essas atividades tradicionais foram inviabilizadas. Hoje, por uma questão de adaptação às necessidades e desafios atuais, os kaingang vivem principalmente da agricultura e do artesanato que produzem com matéria-prima natural proveniente das matas e capoeiras.
Atualmente, esse povo é um dos mais numerosos do Brasil, existindo comunidades nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e, principalmente, no Rio Grande do Sul. A maior população dos kaingang está na Terra Indígena Guarita – Kanhgág ag ga tù Guarita –, com cerca de seis mil pessoas e extensão territorial de 23.406 hectares (demarcada em 1917), abrangendo os municípios de Tenente Portela, Erval Seco e Redentora.
Os sistemas produtivos dos kaingang se baseiam sobretudo no cultivo de milho, feijão, moranga, mandioca e batata-doce, bem como na criação de animais de pequeno porte. Os cultivos de milho e feijão são os de maior importância comercial. Entretanto, os kaingang vêm encontrando crescentes dificuldades para subsistir em função da pressão exercida pelas monoculturas da soja, trigo e milho comercial – que, aliás, historicamente, estiveram bastante presentes no território indígena por meio do arrendamento realizado por não-índios. Esse contexto acabou sufocando e desvalorizando a pequena produção e substituindo uma produção destinada ao autoconsumo e à geração de renda complementar, por outra, totalmente voltada para o agronegócio.
Esse fenômeno vem obrigando muitas famílias indígenas a estabelecer parcerias com produtores que têm melhores condições para preparar e lavrar a terra, aplicar fertilizantes e adquirir sementes em maiores quantidades. Por esse motivo, a utilização de sementes comerciais de milho híbrido vem sendo cada vez mais comum, colocando em perigo a diversidade de variedades nativas/crioulas que até hoje são cultivadas pelas famílias kaingang. Além disso, existem algumas experiências em que o próprio go- verno, por meio de projetos de desenvolvimento, foi forçado (pela burocracia, dificuldade das licitações, etc.) a introduzir nas aldeias indígenas sementes híbridas e patenteadas por grandes empresas multinacionais.
A ORIGEM DA CASA DAS SEMENTES ANTIGAS
Frente à necessidade de garantir que as sementes estejam nas mãos dos agricultores kaingang e não das empresas comerciais, surgiu a idéia de se criar um lugar mais adequado para a sua conservação, seleção e armazenagem. O formato da casa das sementes antigas – chamada de In Ti Fù Si) na língua materna – foi idealizado no sonho de Cenilda. Essa pequena casinha foi construída pelo trabalho colaborativo entre familiares e vizinhos mais próximos de sua comunidade. Ainda que seja uma iniciativa de gestão familiar, os benefícios atingem outras famílias da comunidade que se envolvem em sistemas de troca-troca’ou de empréstimo de sementes.
De acordo com Fermino, a casa das sementes é muito importante para a vida, pois representa segurança para o resgate de material que pode ser reproduzido por eles mesmos. Além disso, ela ajuda a preservar as espécies antigas que estavam quase desaparecendo, bem como fortalece a cultura e os hábitos tradicionais, refreando o consumo dos alimentos refinados da indústria, que estão cada vez mais presentes na dieta da comunidade.
A família destaca características agronômicas e culinárias próprias para cada uma das variedades dos milhos–palha roxa, sabugo fino, catetinho, pipoca e branco dentado –, assim como para os vários feijões escolhidos. O milho é muito apreciado pelo povo indígena, sendo utilizado de diversas maneiras: para fazer o pise (comida típica kaingang à base de farinha de milho torrada nas cinzas), a kajyka (canjica), o bolo nas cinzas (pão típico, às vezes com massa fermentada), gãru (pipoca) e o entô (milho cozido na brasa).
SEMENTE CRIOULA X SEMENTE HÍBRIDA
De acordo com a experiência vivenciada pela família, o milho híbrido alcança bons resultados nos dois primeiros anos de plantio, mas para isso é preciso ser adubado com muita uréia. A partir do terceiro ano, esse milho não produz bem nem mesmo com a adubação química. Nessas condições, eles verificaram que as espigas produzem mais sabugos do que grãos. Já com a variedade crioula, os adubos comprados no mercado não são necessários, já que o rendimento do milho é o mesmo todos os anos, nunca perdendo a sua validade.
Segundo Cenilda e Fermino, a diferença também está no sabor do milho quando consumido verde (Gãr tành). O milho crioulo possui um gosto mais agradável do que o híbrido, sendo que a variedade catetinho também pode ser comida torrada na banha.
ALGUMAS GARANTIAS DE CONSERVAÇÃO
A época de plantio começa em agosto, evitando os meses de novembro e dezembro, que são mais secos e quentes. As mudanças da lua também são consideradas, sendo que, pela experiência prática, o semeio na fase de lua crescente é o que apresenta melhor resultado. Outra característica da tradição indígena é a aplicação da consorciação entre o milho, a moranga, a abóbora e/ou o feijão. Existe ainda o aspecto de não plantar tudo de uma vez só e sim escalonar em diferentes épocas. Dessa forma, se uma lavoura for afetada por excesso ou falta de chuva, a família tem a possibilidade de colher das lavouras plantadas em outras datas.
A distribuição ou partilha de certa quantia das suas sementes entre os familiares, amigos e vizinhos interessados em plantá-las vem sendo uma estratégia eficaz praticada pela família para não perder as suas variedades em função de fatores adversos, como os extremos climáticos, os ataques de roedores e insetos, entre outros.
A esperança é que esse seja o começo da formação de uma rede que, baseada no apoio mútuo, venha a se constituir em uma estratégia local em favor da proteção e promoção das sementes crioulas/antigas.
Essa experiência iniciada por Fermino e Cenilda aos poucos vem contagiando outros agricultores kaingang que acreditam na proposta. É o caso dos indígenas Susana e Adair Boava, localiza- dos na aldeia vizinha –Setor Pedra Lisa –, que fazem parte de uma associação (AgroArtes) que desenvolve atividades de agricultura e artesanato. Depois de conhecer a iniciativa, o casal deu início à construção do que será a segunda casa das sementes antigas na Terra Indígena Guarita.
SUPERANDO ALGUNS OBSTÁCULOS
Um dos problemas enfrentados por várias das famílias da comunidade indígena tem sido o perigo do cruzamento e da contaminação através da polinização que pode ocorrer entre as diversas variedades de milho. Muitas delas apresentam-se misturadas ou castiçadas, o que compromete as suas características originais e a garantia de pureza. Ao receber algumas orientações técnicas, a família de Fermino tem aplicado dois princípios que evitam esse casamento : 1) se for plantar mais de uma variedade de milho na mesma época, deverá respeitar uma distância de pelo menos 350 a 400 metros entre um campo de produção e outro; 2) no caso de não dispor de espaço suficiente para respeitar essa distância, as variedades poderão ser plantas em campos próximos, desde que respeitando o tempo mínimo de 35 dias entre as datas de plantio de uma variedade e de outra.
Tradicionalmente, depois da colheita, para evitar o caruncho, as espigas são amarradas e penduradas para receber a fumaça do fogo. Porém, essa técnica tem se tornado pouco apropriada frente à crescente demanda pela intensificação da agricultura, levando a família a experimentar outras alternativas para o armazenamento seguro das sementes, como, por exemplo, o uso de bombonas ou barris, nos quais as sementes são misturadas com cinzas.
Apesar de estar praticamente ilhada, pois no entorno da Terra Indígena a produção de grãos é realizada por meio de pacotes tecnológicos e sementes híbridas ou mesmo transgênicas, essa família kaingang tem resistido ao assédio das monoculturas que vêm afetando negativamente a biodiversidade e, junto a outros fatores, acabam provocando uma homogeneização das culturas. Em Fermino e Cenilda cresce, aos poucos, a negação em plantar essas sementes melhoradas, desenvolvidas pelas empresas, uma vez que eles também se questionam: “Como plantar uma semente que não tem história e da qual não sabemos sua origem? ”.
José Manuel Palazuelos Ballivián
assessor em Agroecologia e sustentabilidade étnica
Conselho de Missão entre Índios – Parceria COMIN/CAPA
[email protected]
Cenilda Ventura e Fermino Bento de Oliveira
família de agricultores indígenas kaingang
Setor Três Soitas – Terra Indígena Guarita (RS)
[email protected]
Referências Bibliográficas
NÖRNBERG, M. S. da Silva; BECKER, C; WITT, M. D.; BALLIVIÁN, J. M. Palazuelos; SPELLMEIER, A; LUCKMANN, S. Parentes e amigos unidos pela reconstrução da vida: a natureza como fonte e parceira do povo. São Leopoldo/RS: Con-texto Gráfica e Editora, 2003. (Cartilha 23 p.).
PALAZUELOS BALLIVIÁN, J. M. P. (Org.) et al. Guia do Professor: cultura, ambiente e biodiversidade. Comin/Capa Parceria & Escolas da Terra Indígena Guarita, RS. Ed. Belo Horizonte: FALE / UFMG – SECAD / MEC, 2006. 88p. Disponível em: <http://www.comin.org.br/news/publicacoes/cadernos/COMIM_Guia_do_Professor.pdf >
SOMPRÉ, José Urubatan (Indígena Xerente). Políticas públicas e sustentabilidade: Projeto RS Rural na Terra Indígena Guarita – Setor Três Soitas. Ijuí: UNIJUÍ, 2007. 54 p. Monografia (Graduação em Agronomia) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.comin.org.br/news/publicacoes/monografias/tcc_urubatan_guarani_xerente.pdf>
VEIGA, Juracilda. Organização social e cosmovisão kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê meridional. 1994. Dissertação (Mestrado) – Unicamp, Campinas, SP.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N3 – In Ti Fu Si – Casa das sementes: uma experiência indígena kaingang