Paulo Petersen, Luciano Marçal da Silveira e Adriana Galvão Freire
Intensificar a agricultura” – essa ideia foi e permanece sendo repetida pelos que advogam em favor do padrão produtivo da agricultura industrializada. Para eles, esse é o único meio de responder ao crítico desafio de alimentar uma crescente população mundial que até meados deste século se estabilizará em torno dos 9 bilhões de pessoas. Uma agricultura intensiva é definida como aquela capaz de alcançar elevados níveis de produtividade física, ou seja, maiores volumes de produção por unidade de área cultivada. De fato, a intensificação proporcionada pela agricultura industrial, promovida pelo receituário da chamada Revolução Verde, obteve aumentos significativos nos níveis produtivos, mas trouxe consigo um conjunto de contrapartidas ambientais negativas em razão da simplificação ecológica dos agroecossistemas provocada pela generalização das monoculturas dependentes de agroquímicos e de motomecanização.
Um dos efeitos negativos mais alarmantes da disseminação desse modelo científico-tecnológico foi a acentuação dos processos de degradação das terras agrícolas. Estima- -se que anualmente são degradados 12 milhões de hectares no mundo, um ritmo de consumo de recursos naturais que compromete quaisquer possibilidades de equacionamento do dilema alimentar com o qual se depara a humanidade. Nas regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas do planeta, onde estão localizadas 44% das áreas de produção alimentar e onde vivem 800 milhões de pessoas, o problema se agrava com o fenômeno da desertificação, um estágio de degradação dos solos dificilmente reversível.
Diante desse quadro desafiante, torna-se evidente o caráter de urgência da implantação de medidas políticas globais que compatibilizem a intensificação da agricultura com o estancamento e a reversão dos processos de degradação dos solos agrícolas. Com base na experiência acumulada pela AS-PTA em 20 anos de atuação em região sujeita à desertificação no semiárido brasileiro , este texto procura demonstrar como o enfoque agroecológico permite essa compatibilização, não só ao favorecer a criação de alternativas tecnológicas inovadoras para o uso e manejo sustentável dos solos agrícolas, mas também ao estimular o aperfeiçoamento de instituições locais voltadas a regular a gestão social dos recursos naturais de forma que eles interatuem positivamente com as atividades econômicas.
UM AGRESTE FÉRTIL
Diferente da maior parte do semiárido brasileiro, o agres- te paraibano caracteriza-se pela densa presença da agricultura camponesa e se consolidou historicamente como a principal região fornecedora de alimentos básicos para a sociedade paraibana. Situado entre o litoral ocupado pela monocultura canavieira e o sertão pecuarista, o agreste foi marcado por ciclos de campesinização e de descampesinização (SILVEIRA et al., 2010). Essa alternância acompanhou fundamentalmente os interesses também cíclicos de elites ruralistas que ocuparam ou abandonaram porções do território conforme a ascensão ou declínio da produção em escala de gêneros agrícolas para os grandes mercados. Repetiu-se ali um padrão de ocupação territorial típico do espaço agrário no Brasil, no qual a agricultura camponesa se expande nas áreas pouco atrativas ao capital agroindustrial e financeiro e tem seus direitos ameaçados sempre que seus territórios despertam interesse.
As numerosas iniciativas do Estado no apoio a atividades econômicas executadas sob a forma de gestão empresarial e em regime de monocultura exerceram papel determinante no intenso e sistemático processo de desarborização da paisagem rural da região: agave, nas décadas de 1950 e 60; algodão herbáceo (em substituição ao arbóreo) na década de 1970; pastagens artificiais a partir da década de 1980 etc. Os efeitos mais deletérios da substituição da cobertura vegetal se fizeram notar nas áreas de topografia mais movimentada e de solos mais rasos, exatamente aquelas mais suscetíveis aos processos erosivos. Grande parte do enorme passivo ambiental resultante desses processos de desmatamento foi posteriormente assumida por comunidades rurais assentadas a partir de suas lutas pela reforma agrária na região.
Nos interstícios das grandes propriedades desenvolveu- -se grande variedade de agroecossistemas de base camponesa que corresponde à também diversificada composição ambiental moldada pelo gradiente decrescente na pluviometria de leste para oeste em função do arrefecimento das chuvas vindas do oceano pela presença da Serra da Borborema. Em um quadro de permanente disputa pela posse do solo agrícola com os grandes proprietários e diante de processos contínuos de fragmentação das unidades familiares por conta da partilha por herança, o espaço disponível para assegurar a reprodução social e econômica da agricultura familiar foi se reduzindo de geração a geração. Nessas condições, as famílias agricultoras se viram diante da necessidade de intensificar o uso do solo com a redução paulatina, até o completo abando- no, da prática de pousio, roça e queima tradicionalmente em- pregada para a recomposição da fertilidade do ecossistema. No entanto, essa tentativa de intensificação não veio acompanhada de inovações nos métodos de manejo ambiental, que permaneceram essencialmente extensivos, pois dependentes dos ritmos naturais de regeneração ecológica.
Mas cabe aqui indagar a razão desse suposto “congela- mento histórico” nas práticas de manejo por parte das famílias camponesas na região. Cabe mesmo questionar se esse congelamento de fato existiu. Ao estudar respostas de diferentes populações agrícolas no mundo ao aumento demográfico, Boserup (1981) demonstrou que as mudanças na base tecnológica muito frequentemente foram estimuladas com a diminuição dos recursos ambientais disponíveis para sustentar a coletividade, sobretudo a terra cultivável. Em outras palavras: aumentos na densidade populacional que levassem à escassez de terra funcionavam como gatilhos para desencadear dinâmicas de inovação tecnológica em direção à intensificação agrícola. Uma das principais conclusões do trabalho de Boserup é que não existe um “teto agrário” ou uma “capacidade de suporte natural” para uma determinada região. Os níveis de produtividade possíveis dependem não só do capital ecológico, mas também do capital social e humano capaz de aprimorar continuamente os sistemas técnicos a partir do investimento em experimentação e inovação local.
Retomando a indagação anterior: não teriam as restrições fundiárias da agricultura familiar da Borborema acionado o gatilho da inovação local que permitiria uma intensificação do uso da terra em bases mais sustentáveis? Em outro texto procuramos demonstrar que sim, que os agricultores da região foram
“desafiados a exercitar sua criatividade visando aperfeiçoar e inovar suas formas de manejo agrícola (…) a partir da convivência e da intimidade com ´os códigos não escritos da natureza´, experimentando múltiplas variantes de uso e manejo dos recursos locais” (PETERSEN, P. et al., 2002 p. 23).
No entanto, esse movimento endógeno de experimentação camponesa passou largamente despercebido durante muito tempo, deixando por isso de ser valorizado pelas políticas públicas como fonte de práticas e saberes úteis à intensificação agrícola na região. A invisibilidade das inovações localmente desenvolvidas e/ ou adaptadas pelos(as) agricultores(as) explica-se, sobretudo, pelas concepções de desenvolvimento rural amplamente assumidas no Brasil a partir da década de 1960, quando o paradigma da modernização passou a prevalecer na teoria, na prática e na política das instituições oficiais da área. Ao postular que o desenvolvimento agrícola resulta da incorporação de tecnologias exógenas capazes de intensificar a agricultura e superar o seu atraso vis-à-vis a indústria, o ideário da modernização exerceu importante papel ideológico na deslegitimação do histórico protagonismo exercido pelos(as) agricultores(as) na produção e na socialização de conhecimentos para o manejo dos agroecossistemas, bem como na gestão dos bens naturais. Dessa forma, a modernização foi concebida por meio da intervenção de instituições e atores externos ao setor agrícola e pela negação da capacidade das populações locais de equacionarem de forma equilibrada as dimensões econômica, ecológica, social e cultural do desenvolvimento.
Essa forma de conceber a agricultura desde então orientou o campo de percepção de técnicos, cientistas e políticos, que passaram a privilegiar certos problemas das dinâmicas de desenvolvi- mento rural em detrimento de outros. Explica-se assim a predominância do viés do economicismo produtivista de curto prazo e, por outro lado, a negligência em relação à integridade ecológica dos ecossistemas e à equidade na distribuição dos frutos do desenvolvi- mento. Diante desse enfoque reducionista e fragmentário sobre os problemas do rural, entende-se também por que os marcos institucionais moldados pelo paradigma da modernização agrícola muito frequentemente contradizem as medidas públicas orientadas à conservação ambiental e à inclusão social.
O desenvolvimento de uma perspectiva multi-setorial que contemple a complexidade dos fatores envolvidos nos processos de desertificação que se alastram no semiárido brasileiro apresenta-se como condição indispensável para que o fenômeno seja contido e revertido. Isso implica a necessidade de radical revisão nas estratégias voltadas a intensificar o uso do solo agrícola.
DA INTENSIFICAÇÃO BASEADA NO CAPITAL …
As dinâmicas de intensificação propugnadas pelas políticas modernizantes caracterizam-se pela crescente subordinação dos sistemas agrícolas à lógica da economia de escala que regula o funcionamento dos mercados agro- alimentares globalizados e pela consequente simplificação ecológica das paisagens rurais com a disseminação das monoculturas. Se em outros biomas esse estilo de intensificação baseado no emprego massivo de capital resultou em processos de degradação ambiental de grande envergadura, na Caatinga ele promoveu efeitos negativos ainda mais rápidos e profundos em função da maior fragilidade ecológica dos seus ecossistemas. Em ambientes naturais marcados pela imprevisibilidade pluviométrica, como o semiárido brasileiro, a integridade da infraestrutura ecológica é condição indispensável para a contínua recomposição da capacidade de produção biológica após os períodos secos. O comprometimento dessa capacidade tem sua expressão mais aguda nos processos de desertificação, um estágio agudo de degradação ambiental que pode ser compreendido como a perda da resiliência ecológica do ecossistema em razão da queda dos níveis de fertilidade dos solos.
Do ponto de vista técnico, essa perda de resiliência pode ser explicada pela criação de condições ambientais que combinam o estresse hídrico, natural dos ecossistemas da região, com estresses nutricionais gerados pela acentuada perda de nutrientes do ambiente em decorrência dos processos erosivos. Em suas estratégias biológico-evolutivas, as plantas nativas da caatinga desenvolveram mecanismos fisiológicos para tolerar o estresse hídrico, mas não o estresse nutricional. De fato, as estratégias fisiológicas para convivência com ambos os estresses ambientais são divergentes entre si (RESENDE, snt), o que faz com que nem mesmo as plantas nativas consigam vegetar com a depauperação química dos solos, configurando assim as condições para que a desertificação se estabeleça.
As áreas no agreste paraibano onde os processos de degradação do solo são mais agudos coincidem com os terrenos de relevo mais movimentado e que tiveram sua vegetação arbóreo-arbustiva drasticamente suprimida, deixando os solos vulneráveis aos efeitos da erosão. Nas situações mais graves, os horizontes subsuperficiais dos solos são expostos, comprometendo as qualidades físicas, químicas e biológicas indispensáveis ao desenvolvimento vegetal.
… À INTENSIFICAÇÃO BASEADA NO TRABALHO
Em vez de se alinhar aos modelos de intensificação baseados na especialização produtiva e na dependência estrutural aos mercados, o enfoque da inovação camponesa está voltado para acionar, aumentar e desenvolver a base de recursos localmente disponível. Esse enfoque estratégico se faz por meio da conversão dos recursos da natureza em bens e serviços para o consumo humano. Por essa razão, Ploeg (2008) ressalta que o modo de produção camponês se estrutura por intermédio de dinâmicas de coprodução entre o homem e a natureza.
Ao sistematizar um conjunto amplo e diversificado de práticas inovadoras empregadas pela agricultura familiar da região, a AS-PTA identificou três linhas estratégicas principais que orientam esse movimento local de inovação: 1) a manutenção e a valorização de alta biodiversidade funcional nos agroecossistemas; 2) a constituição e o manejo de estoques de recursos; 3) a valorização produtiva de espaços limitados com alto potencial de produtividade biológica (PETERSEN, P. et al., 2002 p. 90).
Tomadas em conjunto, as práticas inovadoras desenvolvidas a partir desses alinhamentos estratégicos proporcionam um padrão de ocupação do espaço agrário na forma de mosaicos, configurando uma infraestrutura ecológica análoga à dos ecossistemas naturais e, portanto, capaz de reproduzir funções ambientais essenciais à reprodução da fertilidade dos mesmos.
O Quadro 1 apresenta a relação entre as três linhas estratégicas adotadas para o manejo dos agroecossistemas e as práticas tradicionais e inovadoras desenvolvidas e/ou aprimoradas a partir da instituição de redes sociotécnicas de âmbito territorial fundamentadas na ação de agricultores(as)-experimentadores(as).
Tecnicamente falando, as práticas elencadas no quadro convergem para um objetivo central: a maximização e a regularização dos processos ecológicos de conversão dos recursos abióticos básicos do ambiente (água, radiação solar e nutrientes) em recursos bióticos (biomassa vegetal e animal), sem que para isso sejam necessários aportes de insumos externos que impliquem a geração de dependência aos mercados.
Ao serem incorporadas nos agroecossistemas, essas práticas integram-se entre si de forma complexa, configurando um todo orgânico e indivisível. Nesse sentido, assumem um caráter multifuncional, na medida em que promovem impactos positivos em cadeia (sistêmicos) sobre o funcionamento dos agroecossistemas. São, portanto, coerentes com a perspectiva camponesa de intensificar a produção econômica sem simplificar a reprodução ecológica.
Como ilustrado no Quadro 2, o caráter multifuncional das práticas inovadoras de manejo proporciona o aumento da eficiência ecológica nos processos de conversão dos bens naturais em recursos econômicos em razão da reciclagem contínua de nutrientes, energia e água entre diferentes subsistemas e compartimentos ecológicos dos agroecossistemas. Nessa perspectiva, a gestão integrada da água e dos nutrientes nas unidades camponesas apresenta-se como condição essencial para que a fertilidade seja continuamente regenerada, assegurando a sus- tentação de bons níveis produtivos, mesmo que as áreas cultivadas sejam utilizadas permanentemente e sem o aporte de fertilizantes industriais. Ao mesmo tempo, a multifuncionalidade proporciona o incremento da produtividade e a redução da penosidade do trabalho, na medida em que os processos de conversão se fazem por meio da associação sinérgica entre o trabalho humano e o trabalho da natureza. Em outras palavras: os ciclos e fluxos ecológicos nos agroecossistemas são intencionalmente orientados para favorecer a eficiência da conversão do capital ecológico em recursos econômicos sem que isso represente a deterioração da fertilidade ambiental.
Portanto, de forma distinta da estratégia de intensificação produtiva baseada no capital, pode-se dizer que a intensificação baseada no trabalho é uma estratégia “ganha-ganha”, na qual a eficiência econômica e a eficiência ecológica se realimentam mutuamente em benefício das famílias agricultoras e da integridade ambiental.
Essa abordagem para a intensificação fundamenta-se em trabalho qualificado, no sentido de que associa o trabalho mecânico ao trabalho intelectual. Isso significa que quem executa o trabalho também toma as decisões estratégicas. Esse caráter artesanal do trabalho é indispensável para a organização sistêmica e complexa das tarefas e subtarefas próprias da produção camponesa. Entretanto, para garantir a reprodução dessa artesanalidade, é primordial o domínio e o permanente enriquecimento desses conhecimentos a partir de processos de observação e experimentação acionados pela inteligência criativa local. Sob essa perspectiva, no lugar de prescrições técnicas propugnadas por agentes externos, os conhecimentos associados ao trabalho camponês não se expressam na forma de regras inflexíveis e são aprimorados continuamente a partir de processos sociais de inovação local.
Além da contínua geração de novidades para o manejo dos agroecossistemas, as dinâmicas territorialmente enraizadas de inovação conduzidas por agricultores/as exercem importante papel no desenvolvimento do capital humano, ou seja, na capacidade autônoma de administrar e aperfeiçoar as rotinas de trabalho. Nesse sentido, os processos endógenos de produção e socialização de conhecimentos funcionam como espaços sociais de empoderamento. Se esse aspecto é essencial para um segmento social historicamente marginalizado, como a agricultura familiar, cumpre papel ainda mais relevante para as mulheres agricultoras pelo fato de estarem submetidas a uma dupla dominação culturalmente construída: pela sua condição de agricultora familiar e pela sua condição de mulher. Ao se desdobrarem socialmente e se complexificarem tematicamente, as redes de inovação agroecológica no agreste da Paraíba têm sido capazes de mobilizar de forma permanente mais de 800 mulheres. Além de ativas experimentadoras e protagonistas nas estratégias de intensificação produtiva, elas vêm, a partir de suas práticas concretas, assumindo papeis-chave na problematização e no enfrentamento das desigualdades sociais de gênero e nas mais variadas formas de violência a que estão sujeitas.
As redes sociais de inovação tendem a ser mais dinâmicas e abrangentes em seus alcances temáticos e sociais quanto mais ativos forem os mecanismos de interação social entre agricultores(as)-experimentadores(as). Esse aspecto é confirmado por inúmeras evidências encontradas no agreste da Paraíba e chama a atenção para o fato de que as decisões colocadas em prática por indivíduos e/ou famílias na esfera doméstica são fortemente condicionadas pelas dinâmicas coletivas de experimentação de alternativas para a intensificação agrícola em construção na região. Coloca-se em xeque, por- tanto, as abordagens difusionistas adotadas convencionalmente pelos órgãos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), ao mesmo tempo em que ressalta-se a importância dos arranjos institucionais estruturados na escala do território para a gestão dos recursos, sejam eles materiais (sementes, biodiversidade, água, terra, trabalho, etc.) ou imateriais (conhecimentos, normas, valores, etc.).
O PAPEL DOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS NO TERRITÓRIO
A experiência da AS-PTA na assessoria a organizações da agricultura familiar do agreste paraibano ensina que as redes locais de inovação são impulsionadas quando a prática de experimentação por agricultores e agricultoras é socialmente valorizada e institucionalmente apoiada. Prova disso foram os processos de criação e consolidação do Polo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema, envolvendo 15 sindicatos de trabalhadores rurais, uma associação regional de agricultores agroecológicos e 150 organizações de base comunitária. Atuando como instância de gestão político-organizativa dessas redes de inovação local no âmbito do território, o Polo exerce um papel determinante na mediação das dinâmicas sociais voltadas à intensificação agroecológica com os órgãos oficiais. Nesse sentido, influencia a elaboração, bem como executa direta- mente um amplo conjunto de programas e políticas públicas coerentes com a sua perspectiva estratégica de fortalecer a agricultura familiar camponesa.
Um aspecto particularmente relevante na atuação do Polo está ligado ao fato de que os recursos públicos mobilizados para impulsionar as dinâmicas de desenvolvimento rural são acionados por meio de iniciativas descentralizadas de organização social voltadas à gestão de bens comuns. O Quadro 3 apresenta alguns desses dispositivos de ação coletiva que vêm permitindo incrementar a eficácia coletiva na gestão de bens comuns.
Contrariando a consagrada hipótese da Tragédia dos bens comuns (HARDIN, 1968), as iniciativas de ação coletiva desenvolvidas no agreste da Paraíba demonstram a capacidade da agricultura camponesa para construir e manter arranjos institucionais localmente adaptados e voltados para a governança e o uso eficiente e sustentável de recursos escassos indispensáveis à intensificação produtiva baseada no trabalho.
Embora a realidade aqui descrita revista-se de peculiaridades não replicáveis a outros contextos, ela reproduz em grandes traços situações identificadas em várias regiões do planeta marcadas pela presença da agricultura camponesa. Ao avaliar o desenho e a implementação de instituições camponesas voltadas para o manejo de recursos naturais, Elinor Ostrom, vencedora do Prêmio Nobel de Economia em 2009, identificou que as mais bem-sucedidas são aquelas ajustadas aos contextos locais (OSTROM, 1990). Isso significa que os arranjos institucionais com os resultados mais positivos deverão emergir da ação coletiva sobre a base de recursos presente no próprio território. Como tal, podem ser cultivados a partir de estímulos públicos que abram es- paço para que as capacidades criativas e os potenciais coletivos de auto-organização se desenvolvam autonomamente.
Já os programas e políticas públicas desenhados segundo o paradigma da modernização dificultam, senão inviabilizam, a presença de instituições camponesas voltadas à gestão econômico-ecológica dos recursos do território. Ao guiar-se por prescrições técnicas controladas por agentes do Estado ou dos mercados, a gestão empresarial da agricultura estimula a formação de ambientes sociais dominados pelo individualismo e pela competição, criando as condições propícias para que a Tragédia dos Comuns se confirme. Não seria essa uma razão determinante para o alastramento dos processos de desertificação no semiárido brasileiro?
A AGRICULTURA CAMPONESA E A INTENSIFICAÇÃO AGROECOLÓGICA
A agricultura camponesa é a forma institucional mais adequada para reproduzir estilos de desenvolvimento agrícola baseados na intensificação sem simplificação. Sua lógica de organização do trabalho está voltada para valorizar de forma sustentável a base de recursos localmente disponível. Por meio de mecanismos de regulação social típicos da agricultura camponesa, como a reciprocidade e a ajuda mútua, e dada a natureza artesanal do seu trabalho, variados recursos são liberados para o processo produtivo e utilizados de forma cuidadosa e parcimoniosa, sem a necessidade de nenhum tipo de subordinação a regras de mercado.
A experiência no agreste da Paraíba demonstra que, mesmo sob condições hostis, a agricultura camponesa pode atuar positivamente no sentido de reverter os processos de desertificação, ao ocupar o espaço agrário com paisagens culturalmente construídas e que atendem simultaneamente a objetivos econômicos, ecológicos e sociais da sociedade. No entanto, o aumento de escala social e geográfica de iniciativas como essa cobra a abertura de espaços para que a agricultura camponesa desenvolva suas capacidades latentes. Isso implica, em primeiro lugar, democratizar o espaço físico por meio de uma reforma agrária que amplie a escala territorial de manejo dos recursos naturais sob a gestão camponesa. Implica também a superação do paradigma da modernização no desenho e na implementação de políticas públicas. Isso significa a institucionalização da perspectiva agroecológica nos órgãos do Estado, de forma que os mesmos interajam com redes sociotécnicas territorialmente enraizadas necessárias para que o “gatilho da inovação local” permaneça acionado. A superação da modernização também se expressa na construção social de mercados locais, condição essencial para que a biodiversidade presente nos agroecossistemas seja economicamente valorizada e as monoculturas desestimuladas.
Por fim, a experiência aqui relatada ressalta que a intensificação da produção econômica sem a simplificação ecológica nos agroecossistemas é possível e primordial para que a desertificação seja efetivamente combatida. Para tanto, é preciso reconhecer que o equacionamento desse dramático problema socioambiental dificilmente será superado a partir de iniciativas reducionistas de órgãos estatais reguladores, tampouco a partir de mecanismos de mercado que expropriem direitos territoriais de comunidades rurais.
Paulo Petersen
coordenador-executivo da AS-PTA
[email protected]
Luciano Marçal da Silveira
coordenador do Projeto Terra Forte da AS-PTA
[email protected]
Adriana Galvão Freire
assessora técnica da AS-PTA
[email protected]
Referências Bibliográficas:
BOSERUP, E. Population and technological change; a study of long-term trends. Chicago, University of Chicago, 1981.
HARDIN, G. The Tragedy of the Commons. In: Science n 162, 1968.
OSTROM, E. Governing the Commons: the evolution of institutions for collective action. Nova York: Cambridge University Press, 1990.
PETERSEN, P., SILVEIRA, L.M. e ALMEIDA, P. Ecossistemas naturais e agroecossistemas tradicionais no Agreste da Paraiba: uma analogia socialmente construída e uma oportunidade para a conversão agroecológica. In: Silveira, L. M., Petersen, P. e Sabourin, E. Agricultura Familiar e Agroecologia no Semi-Árido Brasileiro: avanços a partir do Agreste da Paraíba. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2002. p.13-122.
PLOEG, J. D. van der. Camponeses e Impérios Alimentares; lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, UFRGS, 2008.
RESENDE, M. Ambientes nos trópicos; peculiaridades e implicações para a agricultura. s.n.t
SABOURIN, E. Camponeses do Brasil: Entre a Troca Mercantil e a Reciprocidade. Porto Alegre, Garamond, Col. Terra Mater, 2009.
SILVEIRA, L. M.; FREIRE, A. G.; DINIZ, P. C. Polo da Borborema: ator contemporânea das lutas camponesas pelo território. Agriculturas, v. 7, n. 1, 2010, pp. 13-19.
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Revista V9N3 – Intensificação sem simplificação: estratégia de combate à desertificação