Simone Mundstock Jahnke
A região do Vale do Rio Caí, Rio Grande do Sul, é caracterizada pela forte presença da agricultura familiar. As condições climáticas favoráveis à citricultura permitiram que essa atividade se desenvolvesse bem na região, em especial com a produção de tangerinas e laranjas para consumo fresco. Os pomares possuem entre dois e cinco hectares, e uma parcela significativa deles é manejada organicamente.
O aprimoramento da produção ecológica de citros na região, entretanto, exige mudanças no entendimento do funcionamento dos agroecossistemas por parte dos agricultores. Em particular no que se refere à maneira como são percebidos os organismos espontâneos, em geral considerados pragas. Alguns desses organismos de fato podem causar sérios danos aos cultivos, como é o caso do minador-das-folhas-dos-citros (ver quadro).
Para trabalhar com temas como esse é que, em 2000, associados da Cooperativa dos Citricultores Ecológicos do Vale do Caí (Ecocitros) e outros citricultores ecológicos da região iniciaram ações de pesquisa participativa ao se articularem com pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Fitotecnia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e técnicos da Emater/RS. Posteriormente, essas iniciativas incorporaram outros grupos de citricultores, inclusive convencionais, além de pesquisadores da Embrapa Clima Temperado, de Pelotas, passando então a se denominar Grupo de Citricultura Ecológica (GCE).Entre outras prioridades estabelecidas, o grupo decidiu atuar no estudo da ecologia dos principais organismos espontâneos encontrados nos pomares de citros, visando subsidiar o desenvolvimento de formas de convivência e de manejo mais adequadas a um modelo de agricultura de base ecológica.
APRENDENDO ECOLOGIA NA PRÁTICA
Para a realização dos estudos, o grupo escolheu áreas de uma única propriedade, localizada no município de Montenegro, minimizando assim possíveis influências que formas diferentes de manejo poderiam ter sobre os resultados da pesquisa. O responsável pelo manejo dos pomares, Luiz Laux, acompanhou de perto todas as atividades. Foram escolhidos pomares com cerca de dez anos de plantio de Citrus reticulata (bergamota), das variedades montenegrina e murcott, ambas com por- ta-enxerto Poucirus trifoliata. A murcott é um híbrido bastante resistente, enquanto a montenegrina, natural do Rio Grande do Sul, é a principal variedade cultivada no estado. Os pomares foram manejados ecologicamente desde sua instalação e não ficaram improdutivos durante os anos em que o estudo foi conduzido.
O manejo de plantas espontâneas nos pomares foi realizado sempre com roçadas nas entrelinhas uma vez ao ano, aplicações anuais de biofertilizante líquido e, a cada dois anos, de composto orgânico proveniente da Usina de Compostagem da Ecocitrus. Para o controle da pinta-preta e do cancro cítrico foram aplicadas a calda bordaleza (três vezes ao ano) e a calda sulfocálcica (anualmente).
Vários estudos relativos à ecologia do minador do citros, de seus inimigos naturais e de outros organismos da fauna associada ao cultivo foram realizados nesses pomares. Após quatro anos de pesquisa, foi possível verificar a existência de três principais fluxos de brotação em montenegrina e dois em murcott. A presença dos minadores no pomar de montenegrina foi registrada, em geral, ao final do primeiro fluxo de brotação, enquanto no caso da variedade murcott apenas do segundo fluxo em diante. A presença de brotos e a elevação da temperatura foram as condições identificadas como mais favoráveis ao desenvolvimento dos insetos-praga. Essa conclusão foi importante para que pudéssemos concluir não ser necessária qualquer medida de controle da população do minador antes do segundo fluxo de brotação, ao contrário do que muitos citricultores vinham fazendo.
Também foi verificado que a variedade montenegrina era mais suscetível e que o número de minas por folha poderia ser um bom indicador da população do minador, uma vez que o reduzido tamanho e a grande motilidade dos adultos desse inseto dificultam a estimativa da população por observação direta. Além disso, percebeu-se que o manejo sem o uso de inseticidas pode ter favorecido interações ecológicas, principalmente com inimigos naturais, que podem ter reduzido as populações do minador-das-folhas-dos-citros, mantendo-as em níveis toleráveis mesmo em condições climáticas favoráveis ao desenvolvimento do inseto-praga.
Registrou-se ainda um grande número de parasitóides nativos atuando sobre o minador-da-folha-dos-citros. Esses organismos são agentes de grande importância em ecossistemas naturais e agrícolas, pois têm o poder de regular as populações de seus hospedeiros. Entretanto, a partir de um determinado momento, surgiu também um parasitóide exótico (Ageniaspis citricola), que tem sido utilizado no Brasil para o controle de P. citrella. Ao ser liberada por outros agricultores em áreas próximas ao pomar da família Laux, a espécie exótica rapidamente se disseminou por toda a região, interferindo no equilíbrio ecológico anterior por prejudicar o desenvolvimento das espécies nativas. Com a redução da diversidade de espécies de parasitóides, as interações ecológicas almejadas pelos princípios da Agroecologia diminuem, o que compromete a estabilidade dos agroecossistemas.
Em outro trabalho, realizado na mesma área entre 2003 e 2004, foi estudada a relação entre os insetos minadores em plantas espontâneas e seus respectivos parasitóides. Durante o estudo foram apontadas 29 espécies de insetos minadores ocorrendo em 26 espécies de plantas hospedeiras, além de 24 espécies de microhime-nópteros parasitóides pertencentes a gêneros com bom potencial de controle biológico. Alguns dos gêneros de parasitóides nativos identificados foram relatados em outros estudos parasitando a P. citrella. Nossos estudos também identificaram outras espécies (dos gêneros Chrysocharis e Sympiesis) que atuaram como parasitóides sobre o minador-das-folhas-dos-citros.
Nesse sentido, pudemos comprovar o quanto a presença e ação desses organismos na vegetação espontânea são fundamentais para a manutenção da diversidade de agentes de controle biológico nos pomares. Estudos sobre a comunidade de inimigos naturais associados aos minadores são, portanto, necessários para se compreender a importância da diversidade para o equilíbrio dos agroecossistemas. Percebemos, portanto, que um manejo adequado da vegetação espontânea do pomar poderá favorecer o estabelecimento e a multiplicação de inimigos naturais de insetos minadores e de outros insetos não-desejáveis.
IMPORTÂNCIA PRÁTICA DO CONHECIMENTO SOBRE ECOLOGIA EM POMARES DE CITROS
Além de gerarem vários artigos científicos, teses e dissertações, os resultados dos trabalhos de pesquisa realizados junto à comunidade foram absorvidos pelos agricultores que acompanharam todas as atividades de investigação no dia-a-dia.
O entendimento pelos agricultores das relações ecológicas que ocorrem em seus sistemas de cultivo tem se mostrado um fator importante para o aprimoramento da agricultura de base ecológica praticada na região do Vale do Rio Caí. Apenas o fato de saber distinguir entre os organismos nocivos e os benéficos já significa que há maior compreensão do sistema, o que imprime mais agilidade nas tomadas de decisões de manejo. Com os dados gerados pelos trabalhos aqui relatados, agricultores e técnicos passaram a ter condições de estabelecer técnicas de manejo favoráveis à manutenção e incremento de inimigos naturais e, dessa forma, diminuir as populações do minador, com redução de custos e insumos externos.
Simone Mundstock Jahnke
professora adjunta da UFRGS, Departamento de Fitossanidade
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Revista V5N1 – Interações entre insetos-praga e seus inimigos naturais em pomares orgânicos de citros