Samuel Leite Caetano, Aline Silva de Souza, Marilene Alves de Souza e Helen Santa Rosa
O processo desenvolvimentista que adentrou o Sertão Norte Mineiro, principalmente entre as décadas de 1960 e 1980, provocou conflitos e a desestruturação de economias locais, ecossistemas e de uma diversidade de sistemas culturais de produção associados aos cerrados, caatingas, mata seca e vazantes do São Francisco. Se uma violência explícita provocou a expulsão de milhares de camponeses das suas terras, outra silenciosa, quase invisível mas não menos cruel, ocorria quando eles, encurralados pelo latifúndio, fazendas de gado e empresas de reflorestamento, ou endividados, com terrenos desgastados ou contaminados por um sem número de agrotóxicos, deixavam seu lugar e migravam rumo às luzes das cidades, à procura de dias melhores, de acesso à saúde ou estudo para seus filhos.
Tal situação acabou gerando laços de solidariedade entre camponeses, organizações sociais, lideranças locais e técnicos do Norte de Minas e pessoas e organizações de outros estados da federação. De um seminário realizado em Montes Claros no ano de 1985, organizado pela Casa de Pastoral Comunitária e a Rede PTA/Fase, surgiu a primeira proposta do que viria a ser o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM), uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que segue ao lado das organizações e comunidades de agricultores e agricultoras familiares da região, apoiando e acompanhando-os em seus espaços de participação e ação.
Entre as variadas atividades desenvolvidas pela instituição, estruturou-se um programa de formação de jovens lideranças orientado para incentivar métodos de produção baseados em uma lógica que enfatiza a otimização dos recursos naturais e que permite conciliar as plantações com a natureza sem perder em produtividade ou qualidade. Entretanto, quando o CAA-NM realizou o seu primeiro programa de formação de jovens, em 1993, não tinha o entendimento da agricultura familiar da região como uma população tradicional. Foi ao incorporar essa percepção que se decidiu convidar para os cursos seguintes pessoas mais idosas vindas das diferentes ecorregiões do Norte de Minas: das chapadas e platôs da Serra do Espinhaço, passando por suas encostas, atingindo as planícies sãofranciscanas, indo mais além, até os planaltos do São Francisco em sua margem esquerda.
O programa de formação tinha a duração de um ano, era realizado em seis módulos de cinco dias e adotava como proposta metodológica a pedagogia da alternância, com base em temas geradores que articulavam-se nos campos da Agroecologia, estudos sociais e saúde humana. Entre os módulos, os alunos executavam um plano de atividades em suas propriedades ou comunidades e se preparavam para o módulo seguinte buscando informações e conhecimentos na família ou com pessoas mais velhas e experientes da comunidade.
Além dos alunos capacitados, esse programa deixou como saldo um novo entendimento que orientou e ainda vem orientando o CAA-NM em sua trajetória de 25 anos ao lado dos povos e comunidades tradicionais do Norte de Minas. Um entendimento que veio mudando significativamente a postura pedagógica da instituição, que passou a considerar as contribuições da etnoecologia e da antropologia para interatuar com os grupos sociais da região. Atualmente, muitos dos jovens que passaram pelos processos de formação compõem o quadro de sócios da instituição.
Em uma assembleia extraordinária da entidade, os agricultores e agricultoras associados defenderam a necessidade de organização de outro curso com o objetivo de reatualizar a inserção da juventude nas lutas dos povos e comunidades tradicionais do Sertão Norte Mineiro. Salientaram a necessidade de refletir sobre questões semelhantes às que foram abordadas na formação anterior, entre elas os grandes projetos de monocultivo do eucalipto, de pecuária de corte e leite e de mineração. As grandes empresas desses setores, na maioria multinacionais, têm encurralado a agricultura familiar ao expropriarem seus territórios para implantar suas atividades econômicas, que ainda se beneficiam de incentivos fiscais dados pelos governos municipais, estadual e federal.
Ao reconhecer que esse processo de expropriação do território é responsável pela destruição das riquezas naturais e culturais que garantem o futuro dos povos da região, os agricultores argumentaram que a formação deveria conciliar o conhecimento técnico com o saber local de modo a preparar os jovens para assumirem funções estratégicas na luta pelo reconhecimento dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais.
Tendo esses elementos como base, o CAA-NM executou, em 2010, um programa de formação de novas lideranças. Para tanto, adotou os seguintes critérios de seleção dos participantes: ser indicado por uma organização do núcleo territorial que assuma o compromisso de garantir o envolvimento do jovem em suas atividades locais; ter idade acima de 18 anos (um critério que foi flexibilizado); ser filho de agricultores e residir na comunidade; possuir escolarização mínima (o nono ano foi a referência); ter disponibilidade para garantir a frequência. Além desses critérios gerais, a composição do grupo foi feita buscando garantir a equidade de participação entre homens e mulheres.
Os módulos foram realizados de forma itinerante nos núcleos territoriais com o objetivo de propiciar aos formandos o conhecimento das várias realidades do Norte de Minas, além de possibilitar o intercâmbio de experiências produtivas e de acesso a mercados. Outro princípio adotado durante as atividades de formação foi a valorização de produtos locais na alimentação, ser- vindo pratos típicos e realizando noites culturais com manifestações próprias do núcleo territorial. Cada núcleo – Alto Rio Pardo, Serra Geral, Gerais da Serra Geral, Baixada Sãofranciscana e Planalto Sãofranciscano – selecionou oito jovens segundo critérios definidos com o grupo. As temáticas abordadas levaram em consideração o contexto histórico local e regional e foram se adequando na prática dos agricultores em seus núcleos territoriais. Os módulos seguiram a seguinte ordem:
MÓDULO I: APRESENTAÇÃO, IDENTIDADE CULTURAL, EQUIDADE DE GÊNERO E GERAÇÃO E PRÁTICAS DE MANEJO E CONSERVAÇÃO DE SOLOS
Este primeiro módulo, realizado no território Gerais da Serra Geral, no município Riacho dos Machados, Assentamento Tapera, teve por objetivo criar um ambiente de interação e socialização para a boa convivência da turma. Vieram jovens vazanteiros, quilombolas, indígenas, caatingueiros e geraizeiros. A comunidade do assentamento responsabilizou-se pela logística, acolhendo os jovens. Tendo em vista a diversidade cultural dos participantes, foi necessário um momento de autorreconhecimento individual, onde cada um expôs sua história pessoal. Foi possível também fazer a leitura sobre equidade de gênero e geração, participação social, grau de instrução e em qual identidade o jovem se percebe. Foram também realizadas práticas de manejo e conservação de solos em um dos lotes do assentamento. Para finalizar, os participantes foram orientados a desenvolver umas das atividades em seus territórios antes de iniciar o módulo seguinte.
MÓDULO II: BOAS PRÁTICAS, GESTÃO ADMINISTRATIVA E REGULARIZAÇÃO DAS UNIDADES DE BENEFICIAMENTO
Foi realizado no Território da Serra Geral, município de Porteirinha, onde se localiza uma unidade de beneficiamento da Cooperativa Grande Sertão. As atividades se iniciaram com a acolhida dos participantes e a apresentação dos trabalhos intermodulares.
Os jovens da Reserva Indígena Xakriabá fizeram o repasse dos conteúdos do módulo anterior por meio da realização de palestras nas escolas das aldeias. Os da região de Grão Mogol e Tapera organizaram a produção de um composto orgânico que será utilizado nas propriedades. Os da Serra Geral visitaram um banco de conservação de sementes crioulas com o intuito de orientar outros jovens sobre tal prática, enquanto os do Alto Rio Pardo orientaram jovens assentados sobre a estruturação de canteiros que consomem pouca água, conservando-se úmidos por maior tempo. Já o grupo da região de Montes Claros acompanhou a implantação de uma unidade do projeto Produção Agroecológica Integrada Sustentável (Pais) e visitou o Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com o objetivo de aperfeiçoar o conhecimento e repassá-lo para outros jovens.
A metodologia desse módulo baseou-se em aulas dialogadas com a apresentação de slides sobre a Cooperativa Grande Sertão, com desta- que para a importância econômica do empreendimento. Em seguida, houve debates sobre aspectos relacionados à regularização e à gestão das unidades de processamento. Para complementar o módulo, foram visitadas duas unidades de beneficiamento, sendo uma de processamento de leite, da Cooperativa Cristal e outra de processamento de mel e frutas. Por fim, foram discutidas as atividades intermodulares a serem realizadas e foi feita a avaliação do módulo.
MÓDULO III: FORMAÇÃO SOCIOPOLÍTICA: HISTÓRIA REGIONAL, DIREITOS SOCIAIS, GÊNERO, MOVIMENTOS SOCIAIS, POPULAÇÕES TRADICIONAIS
Realizado no município de Rio Pardo de Minas, na comunidade rural de Vereda Funda, o módulo teve início com as apresentações dos trabalhos intermodulares, que consistiam em identificar e mapear quais empreendimentos existiam nas comunidades e quantas pessoas estavam envolvidas, além de analisar quanto cada um gera de renda aos integrantes da atividade. As apresentações foram feitas por território e demonstraram a grande diversidade e quantidade de produtos e a forma com que os mesmos podem ser processados.
Poucas unidades de beneficiamento foram identificadas na região, pois a maioria dos agricultores trabalha no âmbito das unidades familiares ou em pequenos grupos, sem organização jurídica ou caráter comercial. Verificou-se, portanto, que, em geral, a produção visa o autoabastecimento, com o excedente sendo comercializado em feiras livres locais. Os grupos avaliaram que todas as atividades desenvolvidas são economicamente viáveis, mas ressaltaram que o aprimora- mento das mesmas exigiria melhoria nas práticas de gestão e planejamento.
A comunidade que acolheu os jovens apresentou uma exposição sobre sua luta pela reapropriação dos territórios em que vivem, ressaltando que pela primeira vez em Minas Gerais houve a reconquista de terras expropriadas por empresas reflorestadoras. Também foram ressaltados alguns impactos negativos da implantação das monoculturas de árvores na região, tais como a mudança abrupta da paisagem com o avanço dos maciços florestais, a queda na qualidade do solo, o escasseamento das fontes de água, a diminuição dos espaços para o manejo dos animais, entre outros.
Após essa contextualização, os jovens foram agrupados por origem territorial para analisarem criticamente a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. O objetivo foi promover a reflexão sobre a importância das identidades culturais no atual contexto de crise social e ambiental de escala planetária e de busca por alternativas societárias sustentáveis. Para isso, foi importante ressaltar as diferentes estratégias de vida da agricultura camponesa (indígenas, geraizeiros, quilombolas, vazanteiros, caatingueiros), em especial o seu vínculo estreito com os territórios onde vivem por meio de circuitos econômicos locais.
Como atividade prática, foi realizada visita a uma chácara de café sombreado que vinha sendo manejada há dois anos e que já comprovava a possibilidade de conciliar a produção econômica com o mínimo de impactos ambientais, assegurando a manutenção da cultura local e a permanência dos jovens agricultores em seus territórios.
MÓDULO IV: POLÍTICAS E PROGRAMAS PÚBLICOS, CONTROLE SOCIAL, GESTÃO, FORMULAÇÃO DE PROPOSTAS PARA AÇÕES COM A JUVENTUDE
Esse módulo foi desenvolvido na Aldeia Xakriabá, onde o grupo de jovens foi recebido com danças e rituais típicos e com o relato do cacique sobre a história de luta pela terra. Com o fortalecimento da aldeia, essa luta resultou na eleição e posterior reeleição do primeiro prefeito indígena do Brasil.
As atividades intermodulares foram dedicadas ao levantamento da história de cada território. As apresentações dos resultados ressaltaram muitos aspectos comuns, como a maior abundância de terra e de água no passado, o meio de vida baseado no agroextrativismo associado à criação de animais e as drásticas mudanças ocorridas com o avanço da lógica produtiva do agronegócio na região.
O exercício seguinte foi realizado em grupos. A partir de algumas questões orientadoras, foram identificados os programas e políticas públicas que vêm sendo implementados nos territórios, bem como as instituições responsáveis pela sua execução. Em seguida, houve uma apresentação sobre as ações públicas, procurando diferenciar as políticas dos programas públicos. Como exemplo, deu-se destaque à comparação entre as ações de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), que são realizadas como uma política de Estado e, portanto, garantidas por lei de forma independente do governo, e o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) que, apesar de sua importância para a população do semiárido, pode ser interrompido em função de novas prioridades assumidas por futuros governos.
Foi no contexto desse debate que se ressaltou a importância das organizações da sociedade civil na orientação das políticas públicas. Para dar objetividade à discussão, foram ilustradas as relações entre Estado e sociedade a partir das ações promovidas pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil).
MÓDULO V: COMERCIALIZAÇÃO, ECONOMIA E MERCADOS
O último módulo ocorreu na Área de Experimentação e Formação em Agroecologia (Aefa) do CAA/NM. Os trabalhos intermodulares foram dedicados à formulação de propostas de atuação junto à juventude rural. Durante a apresentação, foi enfatizado que o maior problema enfrentado pela maioria dos jovens refere-se ao fato de não conseguirem tirar seu sustento das atividades a que se dedicam nas propriedades de suas famílias e tampouco têm muitas oportunidades de trabalho e renda em suas comunidades. Dessa forma, a migração para grandes centros tem sido a alternativa encontrada, sobretudo com o forte sentimento de desvalorização cultural da identidade do agricultor e da agricultora. Para lidar com esse problema, apontaram a necessidade de políticas públicas específicas para esse segmento social da agricultura familiar. Segundo a avaliação do grupo, há um descaso dos poderes públicos municipal, estadual e federal com relação à problemática específica da juventude rural. Conforme Edson Lucas, jovem de Serra Geral: Existem alguns programas que no papel são uma beleza, mas a burocracia e a má circulação das informações nos impossibilitam de acessá-los.
Após o debate sobre perspectivas de acesso a políticas públicas e tendo como pano de fundo a apresentação da experiência da Cooperativa Grande Sertão, organizou-se um trabalho em grupo para que os jovens analisassem os potenciais econômicos de cada território, com a exposição de produtos para o mercado. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi apontado como uma das oportunidades mais promissoras de inserção no mercado para a agricultura familiar.
Após a conclusão do programa, o CAA/NM assumiu o compromisso de que as futuras ações desenvolvidas pela instituição deverão assegurar a participação da juventude rural.
Samuel Leite Caetano
historiador e coordenador do II Programa de Formação de Jovens CAA-NM
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Aline Silva de Souza
socióloga
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Marilene Alves de Souza
bióloga, mestranda em Desenvolvimento Social
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Helen Santa Rosa
edição de fotos e depoimentos
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Referências Bibliográficas:
ALMEIDA COSTA, João Batista de. Revista Verde Grande, v. 1, n. 3 – Cultura, natureza e populações tradicionais: o Norte de Minas como síntese da nação brasileira, 2006.
DIEGUES, Antonio Carlos; ARRUDA, Rinaldo S.V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério de Meio Ambiente, 2001, p.11-56.
LUZ, Cláudia; DAYRELL, Carlos (Orgs.). Cerrado e desenvolvimento: tradição e atualidade. Montes Claros: Centro de Agricultura Alternativa; Goiânia: Agência Ambiental de Goiás, 2000, p. 189-272. Disponível em: <http://www.caa. org.br>. Acesso em: 20 jan. 2011.
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Revista V8N1 – Juventude rural e os desafios dos povos e comunidades tradicionais do Sertão Norte mineiro