A tomada de consciência acerca dos impactos negativos do uso de agrotóxicos foi responsável pelos primeiros grandes movimentos em defesa de padrões produtivos alternativos aos pacotes tecnológicos disseminados na Revolução Verde. Após um século de desenvolvimento e uso indiscriminado desses produtos, a agricultura vive uma crise multidimensional. A intoxicação de agricultores e consumidores configura um grave problema de saúde pública. Os danos ambientais gerados pelos agrotóxicos são cada vez mais evidentes, afetando seriamente a biodiversidade. Além disso, a grande dependência da agricultura contemporânea com relação aos agroquímicos contribui fortemente para a emissão de gases que causam o aquecimento global.
Esta edição da Revista Agriculturas apresenta experiências de construção participativa de manejos sustentáveis de agroecossistemas que incorporam a presença de organismos não-desejados a partir de uma perspectiva ecológica. Ao integrar conhecimentos locais e científicos, as iniciativas aqui apresentadas deixam claro que os mais variados problemas com pragas devem ser encarados como sintomas de desequilíbrio ecológico gerados por manejos inadequados que tendem a simplificar excessivamente os sistemas produtivos.
A HISTÓRIA ANTES DOS AGROTÓXICOS
A existência da agricultura por mais de dez milênios antes da criação e uso do primeiro agrotóxico é a prova cabal da falsidade da afirmação de que atualmente não há como produzir sem venenos. Infelizmente, tal falácia é repetida à exaustão por muitos técnicos e cientistas. Problemas de competição com espécies não-desejáveis sempre existiram, mas foram se agravando à medida que as áreas de monocultura se disseminaram. As monoculturas são responsáveis pelo aumento da ocorrência de pragas, tanto pela maior disponibilidade de alimentos para esses organismos indesejados, como pela redução de populações de organismos benéficos. Além disso, ao visarem sobretudo os aumentos de produtividade física das espécies cultivadas, os processos de melhoramento induzem à perda da resistência genética das mesmas às pragas. O emprego de fertilizantes químicos, uma necessidade para que essas “plantas melhoradas” expressem o seu potencial produtivo, torna-as ainda mais suscetíveis ao ataque das pragas.
No final do século XIX, intensificaram-se as buscas por soluções para o aumento da incidência de pragas. Tanto por esforços dos agricultores, como por iniciativas de pesquisadores, foram desenvolvidos variados métodos de manejo baseados em princípios biológicos e ecológicos. Esse conhecimento tão antigo contava com muitos exemplos, como o dos chineses, que há mais de dois mil anos utilizavam formigas no manejo de insetos não-desejáveis nos citros.
Até as primeiras décadas do século XX, o desenvolvimento de técnicas de controle biológico e de métodos culturais de manejo de pragas foi o principal campo de pesquisa agronômica em todo o mundo. Entretanto, a partir dos anos 1940, com o crescimento das indústrias químicas, praticamente desapareceram projetos nessa área e as pesquisas com agrotóxicos passaram a predominar na atividade científica da agricultura. Os pacotes tecnológicos desenvolvidos a partir de então foram disseminados com o apoio de políticas públicas que literalmente obrigaram os agricultores a adotá-los, ampliando a dependência a insumos externos, especialmente dos derivados do petróleo.
QUANDO O MAIS FÁCIL SUPERA O MAIS CORRETO…
Desde o final do século XIX, os compostos químicos começaram a ser usados como biocidas. Diversas moléculas com grande potencial tóxico foram desenvolvidas inicialmente como armas de guerra e depois para o controle de pragas na agricultura. A facilidade de uso, os lucros das indústrias químicas, a uniformidade e eficácia do efeito praguicida (mesmo afetando organismos benéficos) foram os principais argumentos para que os agrotóxicos fossem largamente adotados. Posteriormente, esses químicos passaram a ser questionados quanto à segurança à saúde de aplicadores e consumidores e quanto aos impactos ambientais negativos. Porém, mesmo comprovando-se os malefícios, até hoje os agrotóxicos são amplamente produzidos e utilizados. Cercados por uma aura de modernidade e de efetividade única, são difundidos com o aval de políticas públicas desenhadas sobretudo para atender aos interesses comerciais das empresas produtoras. Apesar disso, nunca deixaram de existir cientistas que apontavam as conseqüências negativas do uso dos agroquímicos, por seus efeitos tóxicos persistentes e pelo impacto sobre o meio ambiente.
A adoção de agrotóxicos para o manejo de pragas provocou o desequilíbrio dos ecossistemas, pois esses produtos afetam os mais diferentes grupos de espécies, incluindo organismos úteis, como aqueles que fazem o controle biológico natural das espécies não-desejadas. Com a redução dos inimigos naturais e o aparecimento de pragas resistentes aos químicos, aumentaram as populações destas, assim como outras espécies passaram a ser consideradas prejudiciais. Esse cenário impulsionou um ciclo de desenvolvimento de novos químicos, cada vez mais potentes, caros e com vida útil limitada, que desestabilizaram tanto os ecossistemas agrícolas quanto os ecossistemas naturais. Assim, o atalho que se buscava para que as monoculturas pudessem produzir mais, por meio do melhoramento das plantas, do uso intensivo de fertilizantes químicos e de agrotóxicos (o tripé da Revolução Verde), resultou em uma agricultura em crescente crise ecológica, sofrendo não apenas com os desastres naturais, mas com aqueles criados pela própria ciência agronômica. A mesma que se afastou (e continua afastada) das comunidades e dos agricultores, por acreditar que somente em laboratórios e campos experimentais, e com base no modelo químico, é que serão encontradas soluções para o manejo de pragas.
QUASE UM SÉCULO DE LUTA CONTRA OS AGROTÓXICOS
Ao contarmos a luta contra os agrotóxicos e a química na agricultura, é preciso lembrar a história de Sir Albert Howard. No início do século XX, ele trabalhou em uma estação de pesquisa inglesa em Indore, na Índia. Lá, por meio do contato com os agricultores locais, acabou aprendendo técnicas muito mais eficientes do que as que havia trazido da Inglaterra. Passou então a defender sistemas ecológicos complexos, entendendo que os organismos considerados pragas eram apenas indicadores de manejos errados. Seus ensinamentos, apresentados em várias de suas publicações, das quais a mais famosa é o livro Um Testamento Agrícola, de 1943, são muito atuais. Portanto, desde aquela época encontramos cientistas e agricultores que lutam contra os agrotóxicos, demonstrando ser preciso conhecer a ecologia dos agroecossistemas antes de qualquer intervenção técnica para que esta não introduza novos fatores de desequilíbrio ecológico.
Registramos nos últimos anos um considerável aumento no número de pesquisas voltadas ao desenvolvimento de métodos alternativos aos agrotóxicos. Entretanto, em geral, muitas delas não são conduzidas no contexto dos sistemas de produção de forma a entender a ecologia dos organismos espontâneos locais. São realizadas em estações experimentais e visam a criação de produtos alternativos (também conhecidos como naturais ou biológicos) a serem patenteados e comercializados para aplicação em larga escala, sem maiores considerações acerca dos impactos que também podem causar ao meio ambiente.
NOVA PERSPECTIVA PARA O MANEJO DAS PRAGAS
A construção de conhecimentos sobre os ecossistemas agrícolas e sobre as interações ecológicas e sociais que neles se processam é, segundo a perspectiva agroecológica, uma condição fundamental para a promoção da agricultura sustentável. Na Agroecologia, o manejo de espécies não-desejadas deve ser realizado com base na gestão dos recursos localmente disponíveis, lançando mão de tecnologias que possam ser apropriadas pelos agricultores e que sejam adequadas às diferentes condições ecológicas.
Não faltam exemplos de que isso pode ser feito. Com a utilização de metodologias participativas podemos gerar e disseminar tecnologias de baixo custo e que promovam a autonomia das comunidades. Nesse sentido, são necessárias mudanças no enfoque da pesquisa agropecuária e da assistência técnica e extensão rural. De certo modo todos devem se envolver e participar da geração do conhecimento agroecológico. Esta edição traz diferentes experiências inspiradoras, que envolvem distintos graus de participação comunitária.
PROGRESSO PELOS EXEMPLOS
Temos a expectativa de que os artigos aqui publicados chamem a atenção de pesquisadores para o fato de que muito podem aprender com as comunidades locais se adotarem uma postura de humildade frente à sabedoria popular.
No artigo Convivência com as pragas do algodoeiro no Curimataú paraibano, salientamos a importância dos conhecimentos dos agricultores e como pesquisadores podem aprender e construir junto com a comunidade. Agricultores que não utilizavam agrotóxicos ensinaram aos pesquisadores como deveriam rever seus conceitos e como poderiam contribuir para uma agricultura mais sustentável.
O método empurra-puxa, que está sendo utilizado e desenvolvido no leste africano, em especial no Quênia, Uganda e Tanzânia, é um exemplo de como a noção básica de ecologia de plantas e pragas pode gerar manejos eficientes. A disseminação desses conhecimentos tem sido feita por meio da metodologia de Escolas de Campo Agrícolas, onde agricultores recebem a informação para posteriormente atuarem como instrutores em suas regiões. Os resultados são muito positivos, reduzindo a dependência dos agricultores e ampliando a segurança alimentar das comunidades.
Ao estudarem juntos a ecologia do minador-das-folhas-dos-citros, cientistas e agricultores que integram o Grupo de Citricultura Ecológica no Vale do Caí-RS demonstraram a importância das plantas espontâneas na manutenção de agentes nativos de controle biológico. Além disso, comprovaram que a introdução de organismos exóticos para o controle biológico pode causar problemas ecológicos. O estudo também detalhou a dinâmica das populações envolvidas e permitiu o desenho de estratégias de manejo com menor impacto.
A identificação de diferentes manejos de plantas espontâneas em sistemas agroflorestais, relatado no artigo Agroflorestas sucessionais no manejo de plantas espontâneas na Amazônia, abre portas para conhecimentos aplicados à recuperação de áreas já degradadas. São apresentadas as experiências de duas famílias que conseguiram sair da dependência do uso de herbicidas e passaram a conviver de forma mais sustentável com um grande número de espécies cultivadas e espontâneas.
A experiência de comunidades no manejo de ratos em Bangladesh é outro exemplo de como problemas sérios podem ser resolvidos localmente se houver união e organização. Mais do que o manejo de uma praga específica, o artigo demonstra a capacidade das comunidades de, ao identificar prioridades, agirem coletivamente para resolver seus problemas. Uma vez que entenderam a ecologia dos ratos e que decidiram se unir para combatê-los, foram capazes de reduzir em 80% a incidência desses animais e dos impactos negativos a eles associados, inclusive de saúde pública.
Na Bahia, um dos resultados mais interessantes das oficinas desenvolvidas para manejo de formigas foi a mudança da percepção dos agricultores: o que antes era considerado praga passou a ser apenas um indicador de manejo. Depois da experiência, conviver com esses insetos deixou de ser um problema grave. O artigo também mostra a importância do conhecimento científico sobre a ecologia das formigas para o desenvolvimento de métodos de manejo com o uso de material local.
Todos sabemos alguma coisa e, juntos, somos capazes de construir estratégias de manejo ecológico de pragas que sejam eficientes não apenas para cumprir o objetivo de garantir a produção de alimentos, mas também que sejam democráticas ao promoverem a autonomia dos agricultores.
Fábio Kessler Dal Soglio
Professor Associado da UFRGS Departamento de Fitossomidade
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Revista V5N1 – Manejo ecológico de pragas: de volta ao futuro