Yamira Rodrigues de Souza Barbosa
O INÍCIO DA LUTA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) possui uma trajetória de pioneirismo com relação à Agroecologia e ao feminismo, tendo começado como outros movimentos sociais rurais, a partir da atuação dos grupos de reflexão das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no final dos anos 1970 e inicio dos anos 1980. A primeira luta do então Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA) foi motivada pela necessidade de reconhecimento público do trabalho das agricultoras e seus direitos sociais, como aposentadoria, auxílio doença e salário maternidade.
Ao longo de sua história, o movimento foi se articulando com outras organizações de mulheres trabalhadoras rurais do Brasil, formando a Articulação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais (AN-MTR), em meados dos anos 1990, e, por fim, assumindo a identidade de Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), em 2004. Possuindo caráter nacional, o MMC unifica diversas organizações de mulheres rurais, incorporando demandas em defesa de um projeto de agricultura camponesa ecológica e feminista.
ORGANIZANDO AS AÇÕES
Diante da crise na agricultura familiar nos anos 1990, provocada pela liberalização dos mercados agrícolas, e da dificuldade que as mulheres ainda enfrentavam para assegurar a soberania alimentar das famílias e obter renda própria, foi criado o Pro- grama de Resgate, Produção e Melhoramento de Sementes Crioulas de Hortaliças.
Segundo Cinelli (2012), esse programa foi assumido em novembro de 2002, na Assembleia Estadual do MMC/SC, com o objetivo de propiciar às mulheres camponesas experiência prática e teórica relacionada à recuperação, à produção e ao melhoramento de sementes crioulas de hortaliças. Para a autora, as ações do programa contribuem no processo de construção da identidade e promoção da autonomia das mulheres camponesas.
Lourdes Bodaneze é uma das lideranças envolvidas no programa. Ela vive no pequeno município de Marema, em Santa Catarina, e produz grande diversidade de alimentos numa área de apenas 2.000m². Com paciência e busca por conhecimentos para ir melhorando o solo, ela conseguiu transformar o que antes era um terreno baldio em uma horta e um pomar, que hoje não só garantem a alimentação da família, como também geram renda. Hortaliças, doces e massas produzidos por ela são comercializados em casa e a cada quinze dias na feira do município de xaxim. Uma parte das hortaliças é destinada à produção de sementes para venda ou troca. Para Lourdes, a venda é uma forma de valorizar o seu trabalho, mas ela destaca também que o sucesso de sua experiência está ligado à origem dessas sementes:
“Não se começa fazendo Agroecologia comprando semente híbrida, porque não fecha. Híbrida tem que comprar todo ano. Contam até os grãos pra vender num saco de milho. Dá uma seca perde tudo. Essa é a causa que o agricultor abandona a roça. A semente crioula é perfeita, porque ela nasceu e cresceu nesse ambiente, é acostumada, é nossa. O uso de semente crioula não traz gastos e ainda garante a resistência da planta, que, mesmo numa seca, por exemplo, vai conseguir produzir. Híbrida adoece mais, é um monte de problema. Pega uma [fruta] nativa do mato, não dá doença nenhuma, a fruta dá boa, gostosa e tem pro resto da vida. Quem faz Agroecologia precisa entrar devagar, e eu aconselho que se entre pela semente crioula.”
Lourdes também relata o início do trabalho de resgate de se- mentes do programa:
“Fizeram um diálogo pra ver quem tinha interesse nisso, porque esse é um ponto principal. Você não pode pegar quem não tem interesse. Depois disso, as mulheres iam visitar uma tia, avó, casal de velhos, iam lá pra conversar. Era bonito, elas enchiam os olhos de água de feliz que ficavam. Pegavam uma espiga de milho, uma trouxinha com sementes, contavam a história.”
No Encontro Estadual do MMC/SC realizado em 2003, em Curitibanos, foram resgatadas 26 espécies de hortaliças, sendo 123 variedades. Feito o resgate, o desafio se voltou para a produção das sementes crioulas. Lourdes conta que o movimento começou a se organizar para conseguir projetos e fazer os encontros de formação. As mulheres que gostavam e se destacavam foram selecionadas para serem monitoras, que passaram por uma série de formações. O curso de Agroecologia e as cartilhas elaboradas por meio da parceria com o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa) de Erechim foram essenciais nesse processo. Foi um trabalho lento, necessitou muito estudo sobre a importância de conhecer o clima, o solo, as carências do solo. Lourdes destaca que foi a partir da compreensão do porquê as plantas produziam tão pouco que o trabalho de melhoramento se iniciou:
“Ninguém guardava as melhores sementes, deixava terminar e depois guardava o que ajuntava lá na roça, o que sobrava. Então ela foi ficando fraca. Precisou plantar, avaliar, selecionar. E aí perceberam que ainda não tava bom, porque o espaço era pouco. Cultivando sempre na mesma família. Aí, quando se reuniam nas comunidades, faziam as mulheres trazer as sementes e misturar entre elas (sementes da mesma variedade) e partilhar. No outro ano, de novo.”
Hoje, o programa organiza-se por meio de um grupo de monitoras e um grupo de referência com experiência na produção e no melhoramento de sementes. Além disso, conta com uma banca de sementes e realiza oficinas nos municípios.
Lourdes faz o melhoramento das sementes crioulas. Atualmente, são 44 espécies melhoradas na sua banca. Ela conta com um grupo de aproximadamente dez mulheres que ajudam no trabalho de melhoramento de cada variedade, realizado em pelo menos três anos. As espécies são planta- das sempre em consórcio, sendo feita a seleção das sementes somente em plantas saudáveis. Além do trabalho de melhoramento, Lourdes transmite o conhecimento e incentiva as mulheres a cuidar e vender suas sementes.
AMPLIAÇÃO DA VISIBILIDADE
Com o amadurecimento do trabalho de resgate, produção e melhoria de sementes crioulas, as ações do programa se articulam com a Campanha Nacional pela Produção de Alimentos Saudáveis promovida pelo MMC. Segundo Jalil (2009), a campanha, lançada oficialmente em fevereiro de 2007, como tema político para as mobilizações do Dia Internacional da Mulher, configura um instrumento de ação e intervenção política. A proposta é promover o reconhecimento das mulheres enquanto sujeitos políticos e a valorização de seu trabalho e seus saberes na preservação da vida, da natureza e da diversidade.
Outra iniciativa que tem conferido visibilidade ao MMC é o reconhecimento internacional de sua experiência com as sementes crioulas por meio da participação no projeto de Implantação de Bancos Comunitários de Sementes e Capacitação para Resgate, Multiplicação, Armazenamento e Uso de Sementes Tradicionais/Crioulas em Áreas de Agricultura Familiar. O projeto é fruto de um acordo de Cooperação Técnica do Brasil para a África realizada pela Agência Brasileira de Cooperação. Além do MMC, o Movimento Camponês Popular (MCP) integra o projeto, que envolve a parceria entre os governos do Brasil, da África do Sul, de Moçambique e da Namíbia.
Apesar dos avanços, o caráter autônomo do movimento impõe dificuldades para se trabalhar de forma continuada com os grupos de mulheres, existindo uma dependência com relação à aprovação de projetos para viabilizar as atividades, o que, inclusive, levou a uma baixa no programa das sementes. No entanto, considerando a importância desse trabalho de resgate e melhoramento das espécies crioulas, percebe-se a preocupação em reanimar e reestruturar o programa. Foi realizado um encontro em julho de 2015 para retomar o grupo de referência, que se reunia duas a três vezes por ano para estudar, trocar e partilhar sementes. A renovação do programa tem como desafio a geração de renda, e não mais apenas a produção de alimentos saudáveis para autoconsumo. Percebe-se ainda a preocupação em ampliar o programa de resgate de sementes crioulas para abranger a alimentação como um todo, não apenas hortaliças. A decisão em concentrar as ações nas hortaliças se devia ao fato de que não tinha nenhuma entidade trabalhando nesse foco. Agora, com o avanço dos transgênicos e sua liberação comercial, o desafio é maior.
ARTICULANDO OUTRAS AGENDAS DE LUTA
As sementes possuem uma simbologia que se expressa na própria luta e organização das mulheres. Para Iraci, uma das dirigentes do MMC, feminismo e protagonismo das mulheres são sementes, há muito que caminhar, mas o seu poder de germinar, crescer e gerar frutos deve ser enfatizado, sendo uma das missões do MMC.
Como podemos perceber, essa missão vem sendo reafirmada a cada dia. Em fevereiro de 2013, foi realizado o I Encontro Nacional do MMC, em Brasília, reunindo aproximadamente três mil mulheres de todo o Brasil. Com o lema Na Sociedade que a gente quer, basta de violência contra a mulher, o MMC se propôs a aprofundar a questão, entendendo a violência como elemento do próprio sistema capitalista, buscando reafirmar a sua missão enquanto movimento autônomo, feminista, camponês e socialista. Além disso, em julho de 2014, ocorreu a XII Assembleia Estadual do MMC/SC no município de Dionísio Cerqueira, que reuniu cerca de 700 mulheres. A Assembleia, cujo lema foi Construindo emancipação, agroecologia, autonomia, vida, debateu as bases de um Projeto de Agricultura Camponesa e Feminista.
N resgate, a conservação e o uso de plantas medicinais constituem outra importante ação conduzida por mulheres do MMC, como Rosalina Nogueira da Silva, da Linha Faxinal dos Rosas, no município de Chapecó, e Edel Schneider, da Linha Santa Terezinha, no município de Palmitos. O trabalho realizado por elas se materializa na manutenção de áreas com vegetação nativa, na construção de hortos medicinais e na transmissão de conhecimentos por meio de oficinas, em que mulheres, ligadas ou não ao movimento, aprendem a utilizar as plantas medicinais. Vale destacar ainda que o incentivo ao plantio e ao uso dessas plantas pode ser a porta de entrada para que a família se conscientize sobre os riscos do uso de agrotóxicos.
RECONSTRUINDO O PASSADO PARA CONSTRUIR O FUTURO
As mulheres do MMC/SC, além de pioneiras na luta pelos direitos das mulheres, se preocupam com a saúde e a alimentação da família e buscam repassar os conhecimentos adquiridos através do uso e do estudo das plantas medicinais e da produção de sementes crioulas. Como lideranças que são, essas mulheres se engajam em ações cujo alcance se estende para além da família e da comunidade. E o MMC é o espaço onde essas mulheres se organizam, estudam, lutam e se fortalecem.
Lourdes se sente agradecida ao movi- mento, pois foi ali que começou a se libertar e teve a oportunidade de estudar. Fez muitos cursos e hoje compartilha os conhecimentos e experiências que foi adquirindo. Em sua fala, ela destaca a importância do movimento para o reconhecimento do papel das mulheres:
“Ele faz ver que você é um ser humano, não é me- nos que o homem e que ninguém faz por você. Isso é o mais importante, ninguém faz pela gente.”
Com relação ao trabalho de resgate e melhoramento de sementes, ela enfatiza:
“O mais bonito é isso, que nós não melhoramos só a semente, a gente melhorou a vida, o amor pela vida, pra si própria, a autoestima, melhorou o jeito de tratar as pessoas na família, o jeito de olhar pra comunidade.”
Queremos destacar ainda a valorização da memória de mulheres lutadoras, de companheiras do movimento, algumas já falecidas, feministas emblemáticas e outras anônimas da história, como é o caso de Chica Pelega, guerreira do Contestado. Essas histórias de vida servem como exemplos de luta e são lembradas nos momentos de mística, encontros e ainda em materiais de formação. Nesse sentido, podemos afirmar que o MMC reconstrói a memória e constrói a própria história, orientando a constituição da identidade da mulher camponesa e feminista.
“Recuperar a história é uma forma de muitas mulheres lutarem pelo empoderamento e constituírem-se em sujeitos da história” (SAVOLDI et al., 2010, p.9).
Dessa maneira, as mulheres camponesas de Santa Catarina foram pioneiras na luta pelo reconhecimento político enquanto trabalhadoras e continuam se organizando para valorizar o trabalho e o saber das mulheres, além de gerar renda e garantir assim sua autonomia econômica. Essas trajetórias de vida carregam as sementes para fazer brotar as mudanças necessárias nas relações entre homens e mulheres, e entre estes e a natureza.
Yamira Rodrigues De Souza Barbosa
Engenheira Agrônoma, Especialista em Agroecologia e Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ)
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Referências Bibliográficas:
CINELLI, C. Programa de Sementes Crioulas de Hortaliças: Experiência e Identidades no Movimento de Mulheres Camponesas. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação nas Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí.
JALIL, L.M. Mulheres e soberania alimentar: a luta para a transformação do meio rural brasileiro. 2009. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica.
SAVOLDI, A.; GEROLDI, J.; RENK, A. Presença da “luta” com Chica Pelega: narrativas caboclas nas experiências cotidianas. In: FAZENDO GêNERO 9. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. 23 a 26 de agosto de 2010.
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Revista V12N4 – Mulheres camponesas de Santa Catarina: semeando organização, Agroecologia e feminismo