Jonas Wanvoeke, Rosaline Maiga Dacko, Kalifa Yattara e Paul Van Mele
Rodeada por colinas arredondadas, Zamblara se assemelha a muitas das vilas da região semiárida do sudoeste do Mali, país situado no noroeste da África. A maioria de seus habitantes vive da agricultura. Durante a curta estação chuvosa, os homens plantam milho, sorgo, amendoim e outros cultivos nos terrenos mais elevados. As mulheres cultivam arroz nas áreas de baixio próximas às vilas e que ficam temporariamente alagadas. Na longa estação seca, homens e mulheres cultivam hortaliças nas terras baixas após a colheita do arroz.
Ainda que todos os agricultores se deparem com várias dificuldades (falta de sementes, água, crédito e assistência técnica), as mulheres enfrentam barreiras e privações adicionais. Nessa região do Mali, é muito difícil as mulheres terem o mesmo status social e econômico dos homens. Há preconceito de gênero em toda a sociedade, e o meio rural não foge a essa regra. As mulheres, por exemplo, não podem herdar nem possuir sua própria terra. Além disso, Zamblara, assim como a maioria das vilas nessa região, é dividida em castas – algumas famílias detêm um status superior (de nobreza), enquanto as de- mais são agrupadas como descendentes de escravos. A implicação direta dessa separação é a divisão social de tarefas na vila.
Há mais de dez anos, um grupo de mulheres decidiu formar uma organização de produtoras de arroz com o objetivo de aumentar a produção e a renda. Conhecido como Kotognogontala, ou “respeito mútuo”, o grupo se uniu como forma de trocar conhecimentos sobre práticas agrícolas sustentáveis na comunidade. Em 2002, suas lideranças entraram em contato com o Centro de Arroz da África (Warda), interessadas nas atividades de capacitação do projeto Adaptação e Difusão Participativa de Tecnologias para Sistemas de Produção de Arroz (Pads).
O projeto teve início em 2000 com atividades na Costa do Marfim, Gâmbia, Gana e Guiné. Desde 2002 está presente também no Mali. Seu objetivo geral era contribuir com o aumento da produção do arroz, da diversificação de culturas e da geração de renda. Esses objetivos seriam atingidos por meio do desenvolvimento e adaptação de inovações apropriadas para um melhor manejo dos cultivos. Em suma, o projeto visava melhorar o bem-estar dos agricultores pobres da África Ocidental. Para tirar o máximo proveito dos recursos de investimentos relativamente reduzidos, o Pads orientou suas ações para os sistemas agrícolas dos vales do interior em função de seu maior potencial produtivo. Apostou também que atividades voltadas aos temas relacionados às práticas da irrigação e da drenagem poderiam unir os agricultores em torno a um processo de aprendizado construído de baixo para cima.
Primeiro em escala experimental, e em seguida em todo o projeto, o Pads adotou a metodologia de Pesquisa-Ação Participativa (Plar), descrita no quadro 1. Essa metodologia incorpora algumas das ideias das Escolas Agrícolas de Campo, uma vez que estimula o aprendizado com base em vivências. Além disso, emprega ferramentas de Diagnóstico Rural Participativo (DRP) que contribuem para uma melhor visualização de processos e procedimentos, o que favorece a interação entre agricultores e facilitadores na construção compartilhada de conhecimentos sobre a agricultura local, seus limitantes e suas potencialidades.
INOVAÇÕES LOCAIS
Mesmo antes do projeto, a maioria dos produtores adotava práticas tradicionais e as mulheres de Zamblara já usavam poucos agroquímicos, por serem caros e nem sempre de fácil acesso. Além de estimular essas práticas, o método Plar busca aprimorá-las, tendo em vis- ta a inadequação das tecnologias baseadas em alta dependência de insumos externos. Como uma das atividades de capacitação, as mulheres organizaram um experimento para comparar o composto orgânico a fertilizantes químicos e a uma mistura (composto orgânico mais fertilizantes químicos). Após observarem os resultados, elas optaram pelo uso do composto misturado a pequenas doses de uréia e fosfato de rocha. Também desenvolveram suas próprias estratégias de controle de pragas, que incluem: uso de pó de Nim (Azadirachta indica); mistura de detergente e querosene; ou simplesmente a capina das beiradas das parcelas de arroz para eliminar os locais de oviposição das mariposas, que dão origem a brocas-do-colmo.
A metodologia Plar ajudou a aumentar a produção de arroz na vila e agora muitos vizinhos de membros dos grupos começaram a se interessar pelas inovações técnicas desenvolvidas. Cada um dos quatro grupos formados em Zamblara tinha sua agricultora-facilitadora. Apesar de os módulos terem sido escritos em francês, eles foram (oralmente) traduzidos para a língua local, o bambara. As mulheres adaptaram formas de transmissão dos conteúdos dos módulos ao compor músicas e poemas sobre os métodos inovadores para a produção de arroz.
Hoje, além de as mulheres de Zamblara terem suas próprias parcelas de arroz, o grupo também trabalha uma área coletiva de 1,5 hectare, cultivando arroz durante a estação de chuvas e hortaliças na época seca. Quando as mulheres colhem o arroz dessa área, vendem uma parte e guardam o dinheiro como um fundo de reserva do grupo. Do restante da produção, uma parte é dividida entre elas e outra é usada no preparo das refeições para as atividades em grupo.
ROMPENDO BARREIRAS
Partindo de um grupo inicial de 27 pessoas, a associação cresceu e hoje é composta por quatro grupos, reunindo 115 mulheres e dois homens. No Mali, a maioria dos grupos de mulheres conta com pelo menos um homem. Neste caso, o chefe da vila é o seu presidente de honra e outro homem participa para acompanhar as atividades. Todos avaliam que o grupo ajudou a melhorar as relações entre homens e mulheres, pois oferece a elas um espaço onde podem conversar sobre seus problemas com os homens e trocar conselhos.
Há também o reconhecimento de como as mulheres estão menos receosas de falar em encontros da vila, participando deles mais ativamente e contribuindo toda vez que é preciso tomar uma decisão. Ademais, os homens da vila agora aceitam a associação, fato que é percebido pelo interesse deles em deixar terras para serem cultivadas pelas mulheres.
Além disso, a adoção da metodologia Plar ajudou a minimizar a diferença entre categorias sociais. Nas atividades, todos realizam conjuntamente os experimentos, se alimentam juntos e cantam juntos, ignorando gênero ou casta. Os encontros semanais do Plar proporcionaram um maior contato entre os moradores da vila, especialmente entre mulheres de diferentes origens. O distanciamento entre as duas castas foi extinto. As mulheres estão unidas de tal forma que chegaram a construir uma pequena casa de encontros. Elas mesmas a construíram com materiais adquiridos com o dinheiro gerado pelo trabalho na área coletiva. Com toda essa evolução, as mulheres se sentem menos solitárias e isoladas. Como uma delas disse: “As pessoas das castas altas e baixas são as mesmas desde o Plar. ”Com o projeto Pads e a implementação da abordagem Plar, essa estigmatização foi rompida e a união entre as pessoas foi fortalecida.
Essa nova coesão comunitária não se limita às práticas agrícolas. O projeto Pads ajudou as mulheres a conduzirem uma análise do bem-estar (semelhante a um ranking de riquezas). Quando as mulheres se deram conta de que algumas famílias vizinhas eram pobres a ponto de não poderem fazer três refeições ao dia, começaram a ajudar umas às outras com alimentos e trabalho.
Outro dado importante é que as sólidas parcerias que as mulheres criaram com ONGs e agências governamentais aumentaram seu poder de decisão na vila. Com uma melhor situação financeira e material, as mulheres estão se empoderando e derrubando as barreiras culturais dessa região do Mali, onde até recentemente as decisões da vila eram tomadas, em sua grande maioria, só por homens.
Atualmente, o grupo contribui para o desenvolvimento da infraestrutura e está se tornando um núcleo de influência na vila. Ele se mantém com fundos próprios advindos de contribuições das mulheres-membros, da venda da produção obtida na área coletiva e dos pagamentos por serviços (especialmente quando essas mulheres trabalham em campos dos homens).
Reforçando relações sociais
A maioria das mulheres está feliz por produzir mais arroz e ter encontrado alternativas técnicas para o controle de insetos-praga pouco dependentes de insumos externos. Porém, mais importante ainda, dizem elas, é que agora elas encontraram unidade. “O futuro pertence às pessoas que estão organizadas”, declara uma mulher de Zamblara. As mulheres de Zamblara afirmam que o Plar reforça as relações sociais e fortalece o capital humano. Apesar de a iniciativa ter vindo da própria comunidade, foi por meio da incorporação da análise das condições de vida que a comunidade foi capaz de visualizar seu bem-estar individual e coletivo e que a ação para a inclusão social recebeu um impulso. O projeto Pads já foi encerrado, mas os grupos seguem trabalhando juntos.
Jonas Wanvoeke
pesquisador assistente do Africa Rice Center (Warda)
[email protected]
Rosaline Maiga Dacko
coordenadora do Pads no Mali
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Kalifa Yattara
pesquisador do Centro Regional de Pesquisas Agronômicas (CRRA) de Sikasso
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Paul Van Mele
especialista do Africa Rice Center (Warda)
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Agradecimentos:
Agradecemos ao Dr. Jeff Bentley pelas fotos, discussões e pelos comentários a uma versão preliminar deste artigo. Este trabalho teve apoio do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida) e gestão do Centro do Arroz para a África (Warda).
Referências Bibliográficas:
DEFOER, T.; WOPEREIS, M.C.S.; IDINOBA, P.; KADISHA, T.K.L.; DIACK, S.; GAYE, M. Manuel du facilitateur: curriculum d’apprentissage participatif et recherche action (APRA) pour la gestion intégrée de la culture de riz de bas-fonds (GIR) en Afrique sub-Saharienne. Benin: WARDA, CTA, IFDC, CGRAI, 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N4 – Mulheres rompem barreiras no Mali