“Apesar de sua importância, o tema da desertificação ainda é pouco discutido publicamente no Brasil. Essa é a percepção de Paulo Pedro de Carvalho, coordenador da ONG Caatinga e representante da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil), que atua como Ponto Focal Nacional da Sociedade Civil na Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês). Entrevistamos Carvalho durante o VIII Encontro Nacional da ASA (VIII Enconasa), realizado em novembro de 2012 em Januária (MG), que contou com a presença de representantes de mais de mil organizações que integram a ASA-Brasil. Para Carvalho, os debates ocorridos durante o evento, orientados pelos ensinamentos das diversificadas experiências de convivência com o semiárido protagonizadas por essas organizações, deveriam referenciar a elaboração da Política Nacional de Combate à Desertificação e inspirar os debates que ocorrerão na Conferência Científica da UNCCD”.
Entrevista com Paulo Pedro de Carvalho por Eduardo Sá
O QUE É O FENÔMENO DA DESERTIFICAÇÃO E ONDE ELE JÁ PODE SER IDENTIFICADO NO BRASIL?
A Convenção para o Combate à Desertificação da ONU define a desertificação como o processo de degradação das terras em regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas. No Brasil, 16% do território é considerado suscetível à desertificação, o que inclui toda a região semiárida do Nordeste, além de partes do Maranhão, do Espírito Santo e de Minas Gerais. Ao todo, são onze estados da federação com áreas suscetíveis à desertificação, correspondendo a mais de 1,3 milhão km² em que vivem 35 milhões de pessoas. Pelo menos metade do bioma caatinga já se encontra em processo avançado de devastação e degradação. Há mais de 30 anos, o pesquisador Vasconcelos Sobrinho já apontava núcleos que figuram entre os mais preocupantes: a região do Cabrobró, em Pernambuco; o Seridó, no Rio Grande do Norte; o Cariri paraibano; a região Uriaçuba, no Ceará; Gilbués, no Piauí; e o Raso da Catarina, pegando os estados de Minas Gerais e Bahia. O paradoxal é que muitos dos núcleos onde assistimos processos mais avançados de desertificação encontram-se em regiões que chovem relativamente mais, revelando a importância da intervenção humana sobre o fenômeno.
QUE MEDIDAS EFETIVAS VÊM SENDO ADOTADAS NO BRASIL PARA COMBATER A DESERTIFICAÇÃO?
A UNCCD foi assinada em 1994, sendo ratificada pelo Brasil em 1997. Embora o Brasil a tenha ratificado logo, só a partir de 2004 foi lançado o Plano Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, uma estratégia que todo país signatário da convenção se comprometeu a elaborar com a participação da sociedade civil. A Articulação no Semiárido Brasileiro participou ativamente do seu processo de elaboração, fazendo-se representar em todas as oficinas nacionais e estaduais. Mas ocorre que até hoje a Política Nacional não foi aprovada pelo Congresso, embora já esteja tramitando por lá há mais de cinco anos. Esperávamos que, por ocasião da realização da Rio+20, ela fosse aprovada ainda em 2012. Houve inclusive uma promessa nesse sentido por parte da presidente Dilma Roussef, mas as nossas expectativas foram frustradas. Continuamos nossa movimentação, porque só a partir dessa política serão definidas as metas e os recursos para a implantação de ações concretas.
Desde 2008, existe uma Comissão Nacional que trata do assunto composta por 44 membros, sendo 11 da sociedade civil. Ela atua de forma bastante comprometida, mas precariamente pois não tem recebido o apoio necessário para o seu pleno funcionamento. O Ministério do Meio Ambiente criou uma diretoria também voltada ao tema, com a qual temos mantido um bom diálogo, o que tem levado a alguns avanços. Entre eles, podemos identificar a criação do Fundo Socioambiental da Caixa Econômica Federal em parceria com o Fundo Nacional de Meio Ambiente que opera recursos voltados ao apoio a projetos que promovem a Agroecologia na perspectiva da convivência com o semiárido em áreas suscetíveis à desertificação.
O Fundo Clima, vinculado à Política Nacional sobre Mudanças no Clima, também foi aprovado, e uma parte importante dos seus recursos está direcionada a apoiar projetos e iniciativas nas áreas suscetíveis à desertificação. O Banco do Nordeste também vem apoiando projetos nessa área. São ações bem concretas destina- das a fomentar projetos junto às comunidades.
Para nós, a Agroecologia apresenta o caminho mais coerente para o combate às causas da desertificação. Mas esses projetos e iniciativas fomentados devem avançar no sentido de mobilizar as comunidades para que dialoguem com os espaços de construção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento rural. Um dos desafios é viabilizar o seu acesso a outras políticas governamentais que contribuam para o avanço da perspectiva agroecológica. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa de Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), além de outras modalidades de compras institucionais que adquirem produtos da agricultura familiar têm se mostrado essenciais nesse sentido. Porém, ainda percebemos que o acesso a essas e outras políticas destinadas à agricultura familiar ainda é difícil e burocrático, o que faz com que poucas famílias de agricultores se beneficiem delas. Precisamos avançar para qualificar as políticas que já existem, mas também devemos criar novas. Isso cobra maior participação das organizações e articulações da sociedade civil nos espaços de elaboração e gestão das políticas públicas. Em suma: a Po- lítica Nacional de Combate à Desertificação precisa urgentemente ser aprovada. Por isso a nossa movimentação vai também no sentido de buscarmos novos aliados tanto no Congresso Nacional quanto na sociedade civil.
O QUE DEVE SER FEITO PARA AVANÇAR NESSA DIREÇÃO?
Acho que a sociedade civil, por meio de redes e articulações como a ASA, a ANA [Articulação Nacional de Agroecologia] e os movimentos sociais, tem realizado uma parte importante que é a promoção de uma série de experiências que apontam caminhos promissores para o enfrentamento à desertificação. São milhares de famílias no semiárido que estão experimentando novas formas de produção em convivência com as características do bioma. Além de deter os processos de desertificação e de recuperar os solos e a agrobiodiversidade, essas experiências se caracterizam pela produção com qualidade e em quantidade. E essa forma de produção tem efetivamente inspirado a elaboração de políticas públicas. Essas experiências são nosso referencial e alimentam nossas esperanças e lutas. Temos certeza que ainda vamos transformar essas experiências em políticas públicas.
OS PROGRAMAS EXECUTADOS PELA ASA JÁ APONTAM NESSA DIREÇÃO. QUE INSPIRAÇÃO ELES TRAZEM PARA O DESENVOLVIMENTO DE OUTRAS INICIATIVAS SIMILARES?
De fato, o P1MC [Programa Um Milhão de Cisternas] e o P1+2 [Programa Uma Terra e Duas Águas] já são uma realidade. Eles foram concebidos a partir da constatação de que não dá para viver no semiárido sem fortalecer a cultura da estocagem de recursos, sobretudo a água. Precisamos estocar a água como elemento fundamental da vida, mas também alimentos para as pessoas e os animais. A própria caatinga preservada é um estoque de alimentos. No longo período sem chuvas que estamos vivenciando este ano (de 2012), vemos que as famílias que têm acesso à caatinga sofrem menos as consequências da seca do que aquelas que degradaram a vegetação nativa. As pessoas estão sustentando seu rebanho com mandacarus e outras espécies nativas. Até mesmo as folhas secas dessas espécies são oferecidas como alimento para os animais. Há também outras formas de estocagem, como a silagem, a fenação e o plantio de espécies forrageiras resistentes, como o próprio mandacaru, a palma forrageira, a melancia de cavalo e outras. As famílias e comunidades que guardam suas sementes em bancos de sementes estão numa situação de vulnerabilidade menor do que aquelas que não mantêm esses estoques. Especialmente quando guardam aquela semente local, adaptada e diversificada. Quando chega a primeira chuva, as famílias podem ir para o roçado para plantar e garantir sua produção naquele ano. Muitas vezes a perda dessa primeira chuva pode comprometer a colheita do ano todo. Por essa razão, a autonomia em relação ao acesso a sementes locais é estratégica para o desenvolvimento de práticas de convivência. É verdade que podemos ver a região pelo lado da escassez, mas também temos abundância. O que precisamos fazer é aproveitar aqueles períodos de chuva para acumular as reservas que serão necessárias nos períodos mais secos.
Baixe o artigo completo:
Revista V9N3 – Não existe outra saída a não ser pela Agroecologia