Nilhari Neupane e Gopal Datt Bhatta
A região Trans-Himalaia do Nepal é muitas vezes considerada o deserto do país. Por ser uma área remota, o alcance da atuação do governo central é limitado. A água é um recurso escasso que tem sido gerido tradicionalmente por meio de normas e instituições locais. Embora o sistema de gestão local da irrigação venha sendo conduzido há séculos, algumas mudanças na realidade têm ultimamente levado muitas pessoas a se perguntar se ele continuará sustentável em longo prazo.
Mustang fica na região Trans-Himalaia do Nepal e é um dos distritos mais remotos do país. A sua parte superior lembra o platô tibetano, com altitudes a partir dos 3.800 metros acima do nível do mar e morros amarelados e acinzentados esculpidos pelo vento e pela erosão. A precipitação é inferior a 200 mm por ano. Portanto, mesmo que os agricultores tenham terra suficiente, eles precisam manter parte dela em pousio, devido à escassez de água.
A área superior de Mustang costumava ter um rei local chamado Jigme Palwar Bista. Desde 2008, porém, quando o Nepal se tornou uma república, suas atribuições se restringiram, sobretudo, a questões cerimoniais. A população local ainda o respeita, e ele continua a desempenhar um papel importante na distribuição de água, como parte de um sistema que se baseia nas hierarquias locais e na estratificação, que divide a sociedade em duas classes: a superior dirigente e a inferior, que representa a força de trabalho.
Lo-Manthang é um dos muitos vilarejos desse distrito e, assim como a maioria deles, tem uma comissão de irrigação que, neste caso, é composta por nove membros. Embora o rei local seja a principal autoridade, a comissão é administrada por um dirigente conhecido como Ghempo. Há também dois secretários (ou Mithues), sendo um nomeado pelo rei, enquanto o outro, pelo Ghempo. A comissão conta também com seis mensageiros, ou Tshumies. Depois do rei, o Ghempo é a pessoa com mais influência, tendo autoridade para deliberar sobre questões relacionadas à irrigação e à agricultura. Além disso, o Guempo deve se pronunciar sobre todos os casos de conflitos, brigas e roubos. Os Ghempos são sempre membros da família Bista e, embora não tenham um salário, recebem 25% de todas as multas aplicadas.
Os Mithues são os próximos na cadeia de comando: somente homens alfabetizados são designados para essa posição. Como secretários do Ghempo, devem manter todos os registros relacionados com o sistema de irrigação. Eles também têm a responsabilidade de gerir as finanças da comissão. Não são remunerados para exercer sua função, mas não precisam contribuir com qualquer trabalho físico. O Ghempo também nomeia os Tshumis, que atuam como supervisores do sistema de irrigação e, como tal, assumem responsabilidades importantes. Eles devem vigiar os canais durante a irrigação (mesmo à noite) e são encarregados de comunicar qualquer roubo de água para o Ghempo. Da mesma forma, se encontrarem animais pastando sobre áreas de lavouras, devem levar o proprietário do gado à presença do Guempo. Eles também são responsáveis pela coleta de todas as multas, indo de porta em porta. Embora não recebam nenhum salário por seu trabalho, os Tshumis ficam com parte das multas cobradas. Integrar a comissão lhes dá prestígio, assim como obtêm prioridade no rodízio da irrigação.
DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E CULTURA LOCAL
Um sistema de distribuição eficiente é essencial quando não há muita chuva. Em geral, o método mais comum na área superior de Mustang se baseia na sorte, uma legítima loteria. O Ghempo lança os dados na presença dos Mithues, dos Tshumis e de todos os moradores do vilarejo para determinar a sequência da distribuição de água. No entanto, o Ghempo pode dar prioridade a uma parcela específica, independentemente do resultado dos dados. Os membros da comissão e outros agricultores da classe mais alta têm preferência sobre os demais. A distribuição de água também depende do tipo de cultura cultivada. A primeira prioridade é dada ao trigo e à cevada nua, depois às ervilhas, à mostarda, ao trigo sarraceno e à batata. Todos sabem que o trigo e a cevada são altamente sensíveis ao estresse hídrico e que o seu rendimento é com- prometido se houver demora na irrigação (mostrando que os padrões de alocação de água têm base científica). Outra razão para dar prioridade a essas culturas é que elas são os principais alimentos na região, assim como são usadas para fazer chhyang, uma bebida popular.
Mas o papel desempenhado pela comissão vai além da distribuição de água. Uma preocupação frequente é garantir a máxima eficiência na rega das parcelas, direcionando a água para a próxima parcela o mais rápido possível. Além disso, os membros da comissão devem estar permanentemente em alerta para cuidar da infraestrutura de irrigação. Os solos arenosos que predominam na região favorecem o rompimento frequente dos canais, e a comissão tem de reagir a isso imediatamente. Se houver um pequeno dano, os Tshumis têm a responsabilidade de repará-lo. Mas, se não conseguirem, então terão que pedir a cada família para contribuir com o trabalho. Aqueles que se recusam a ajudar pagam uma multa ou correm o risco de serem completamente excluídos do sistema.
RELAÇÕES DESIGUAIS
Os críticos desse sistema não o consideram justo pelo fato de que se baseia numa relação desigual e assimétrica entre os membros da classe alta, que dirigem o sistema, e os agricultores da classe inferior. Há pessoas, porém, que o defendem, argumentando que essa estrutura se justifica, uma vez que os agricultores dependem das classes mais altas para receber alimentos em tempos de escassez, assim como para obter empréstimos e terra. Alegam também que os canais de irrigação foram construídos por iniciativa das classes superiores. Além disso, os membros das classes mais altas continuam a desempenhar um papel essencial na gestão cotidiana do sistema, no que se refere a tomadas de decisão e à manutenção da rede social. Embora os agricultores representem a mão de obra, as classes superiores garantem o dinheiro e a infraestrutura necessária. Argumenta-se, portanto, que foi essa interdependência que manteve o sistema funcionando de modo a superar a escassez de água. De acordo com Narendra Lama, líder do Projeto da Área de Conservação de Annapurna, o sistema é baseado no conhecimento local e, por isso, opera de forma eficiente.
Por outro lado, há também muitas vozes que reivindicam que os agricultores recebam mais água, que possam elevar suas rendas ou que haja mu- danças nos papéis e responsabilidades assumidos dentro do vilarejo. Essas vozes têm se multiplicado e ganhado cada vez mais força. Os projetos e programas de irrigação, tanto em Mustang como em outras partes do Nepal, têm tentado aumentar a disponibilidade de água. Eles contam com o apoio do governo central ou de organizações sociais e almejam beneficiar os agricultores. Entretanto, esses programas e projetos raramente reconhecem as normas existentes sancionadas localmente e, dessa forma, correm o risco de destruir o capital social que foi desenvolvido ao longo dos séculos. Muitos estudos comprovam o papel crucial que esse capital social desempenha na gestão dos recursos comuns. É preciso muito tempo para desenvolver normas de governança para o uso desses recursos que sejam amplamente aceitas pela comunidade, mas é relativamente rápido extingui-las.
Um exemplo frequentemente cita- do é o sistema de tanque de irrigação no sul da Índia, que costumava ser regi- do segundo a hierarquia social, sendo o modo de irrigação predominante antes do domínio colonial britânico. Quando o governo britânico implementou um novo conjunto de regras formais, o capital social existente (que tinha como base o relacionamento informal entre os dirigentes e os membros da classe trabalhadora) foi completamente dizimado e as autoridades foram incapazes de substituí-lo e manter o sistema de irrigação funcionando. Pode- se dizer, portanto, que o desafio de hoje é elaborar regras formais mais justas e que sejam construídas a partir das referências sociais e culturais locais.
Há também quem aponte riscos de outra natureza. Amji Bista, o Ghempo em Lo-Manthang, manifestou a sua preocupação sobre o futuro. Segundo ele, muitos jovens resistem em seguir as regras tradicionais. Ele percebe, ainda, que as violações das normas de irrigação são cada vez mais frequentes, dando origem a conflitos: O sistema de irrigação costumava funcionar corretamente no passado porque havia uma forte coesão interna que fazia com que diferentes grupos de pessoas se entendessem muito bem. Hoje, o sentimento geral é de que, no passado, ninguém se atrevia a violar as regras, mas que agora tudo mudou. Essa mudança de atitude é, em parte, atribuída ao fato de as novas gerações estarem mais interessadas em migrar para as cidades do que continuar na atividade agrícola. Mais dificuldades também podem surgir como resultado da maior influência do governo na área e da crescente presença de projetos de desenvolvimento.
BUSCANDO O EQUILÍBRIO
O sistema de irrigação de Lo-Manthang tem se desenvolvido ao longo de centenas de anos e está enraizado em um determinado contexto político, social, cultural e econômico. Ele demonstrou ser um modelo eficiente para uma região semiárida. Ali, a hierarquia social, as regras e relações informais foram decisivas na atribuição de diferentes papéis e responsabilidades a cada grupo social. No entanto, as mudanças ocorridas recentemente no Nepal estão desestruturando a organização para a gestão da água e ruindo o capital social do qual o sistema depende. É preciso agora buscar um novo equilíbrio para assegurar que os esforços públicos e privados consigam melhorar as condições de vida da população e, ao mesmo tempo, garantam a disponibilidade de água para que os agricultores possam continuar irrigando suas terras.
CULTURA E TRADIÇÃO
Para a população local, a água tem valor utilitário, mas também simbólico. Além de ser um recurso usado para beber, limpar e irrigar, a água é considerada uma divindade e desempenha um papel crucial em todos os rituais. Na maioria dos vilarejos, é possível encontrar um chorten, monumento pequeno, feito de pedras e lama, em cima do qual hasteiam uma bandeira. Os chortens ficam situados sempre perto da fonte de água e têm formas diferentes segundo o estilo da arquitetura local. Os moradores também plantam várias espécies resistentes ao frio em torno das fontes de água. Essas plantas são consideradas sagradas e nunca são cortadas. Isso tudo é feito para evitar a seca e a ira dos deuses.
O exemplo mais evidente de como a cultura rege a gestão da água pode ser visto durante o festival Sakaluka, que é comemorado no terceiro dia do primeiro mês tibetano (entre fevereiro e março). O evento representa um momento auspicioso para começar as atividades agrícolas do novo ano. Durante esse dia, todos os moradores do vilarejo vão para os campos do rei. Eles aram a terra, adicionam adubo e inauguram a estação agrícola por meio da semeadura do trigo. Rei e rainha também participam do festival. É quando então se forma a nova comissão de irrigação e se define o rodízio de distribuição de água do próximo ano. Com isso, o vilarejo inteiro finalmente está pronto para mais um ano agrícola.
Nilhari Neupane
Universidade de Giessen, alemanha
Gopal Datt Bhatta
Faculdade de Ciências e Tecnologias agrárias do Himalaia, da Universidade de Purbanchal, Nepal
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Revista V7N3 – Novos desafios para a gestão coletiva da água de irrigação no Himalaia