Lucas Teixeira Ferrari, Joana Junqueira Carneiro, Irene Maria Cardoso, Lucas Machado Pontes, Eduardo de Sá Mendonça e Adriellem Lidia Marta Soares da Silva
A Zona da Mata mineira localiza-se no bioma Mata atlântica, considerado por alguns cientistas como a quinta área mais rica em espécies endêmicas ameaçadas do planeta. Os solos da região são profundos e o relevo é acidentado, o que leva à formação de inúmeras nascentes e pequenos córregos e faz com que muitas parcelas das propriedades sejam consideradas Áreas de Proteção Permanente (APPS). a Mata atlântica, que cobria a maior parte da região, foi substituída principalmente por pastagens e lavouras de café. Com a modernização da agricultura, a partir da década de 1970, a atividade agrícola passou a utilizar intensamente insumos químicos. Isso contribuiu para a degradação ambiental, provocando a queda de produção das lavouras e o enfraquecimento da agricultura familiar que, apesar disso, continua predominando na maioria dos municípios da região.
Além disso, a mudança de cobertura vegetal, associada ao monocultivo e ao uso intensivo de insumos químicos, ocasionou a degradação dos solos diminuindo o potencial de armazenamento das águas das chuvas nas encostas e nos topos de morro. Como consequência, muitas nascentes tornaram-se intermitentes e, na época das chuvas, grandes volumes de escoamento superficial intensificam os processos erosivos, prejudicando a produção agrícola e assoreando e contaminando as águas superficiais.
A CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS SUSTENTÁVEIS
Como alternativa ao modo de produção agrícola predominante, muitas iniciativas que visam ao desenvolvimento de agriculturas mais sustentáveis foram sendo construídas em vários municípios da região desde meados da década de 1980. A interação entre organizações de agricultores familiares, a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e o Centro de Tecnologias alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) vem sendo determinante na experimentação e disseminação de princípios agroecológicos para o manejo dos agroecossistemas (CARDOSO; FERRARI, 2008). Nesse contexto, vários agricultores desenvolveram experiências distintas em suas propriedades, em especial os sistemas agroflorestais (SAFs) com café e pastagens, visando à melhoria da qualidade de vida das famílias e do meio ambiente. Pode-se considerar que várias propriedades de agricultores familiares se encontram em estágios avançados de transição agroecológica.
Os muitos anos de experimentação vividos pelos agricultores possibilitaram o desenvolvimento de agro- ecossistemas mais sustentáveis, tanto do ponto de vista social e econômico quanto do ponto de vista ambiental (CARDOSO; FERRARI, 2008). Dentre os aspectos ambientais, destaca-se a melhoria da qualidade do solo, o aumento da agrobiodiversidade e a recuperação e conservação dos recursos hídricos (SOUZA et al., 2010). Tais melhorias representam importantes serviços ambientais prestados pelos agricultores.
Os SAFs da região foram implantados em um processo de experimentação participativa, recentemente sistematizado (SOUZA et al., 2010). Durante a sistematização, muitos agricultores relataram ter recuperado nascentes depois que passaram a utilizar práticas agroecológicas, em especial os SaFs no manejo de suas propriedades. Entretanto, foi apontada também a necessidade de estudar o efeito do mane- jo agroecológico sobre os recursos hídricos, objetivando o reconhecimento e a valorização dos serviços ambientais por ele prestados e a ampliação das experiências existentes.
A adequação da produção agrícola familiar à preservação ambiental apresenta-se como um aspecto de grande relevância no contexto atual de discussão em torno do Código Florestal, já que cada propriedade familiar representa uma fração significativa de APPS em relação à área total.
ESTUDANDO O EFEITO DO MANEJO AGROECOLÓGICO DOS SOLOS SOBRE OS CICLOS HIDROLÓGICOS
Um grupo de professores e estudantes da UFV, em parceria com o CTA-ZM e a escola Família agrícola Puris de araponga (EFA Puris), está sistematizando experiências de famílias de agricultores no que se refere ao manejo das nascentes, comparando-as a outras experiências de manejo convencional conduzidas no município de araponga. Essa sistematização vem sendo realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, levantando informações necessárias para a análise do efeito que as práticas de manejo adotadas nas propriedades exercem sobre a economia da água nos agroecossistemas. O objetivo é gerar conhecimentos para consolidar o manejo agroecológico como estratégia de recuperação e/ ou conservação das águas no meio rural, e fortalecer a agricultura familiar da região.
Além das entrevistas, estão sendo aferidas a qualidade e a quantidade da água nas propriedades monitoradas. Para tanto, está sendo utilizado um laboratório portátil, permitindo que os agricultores participem do processo, se familiarizem com os métodos científicos e favoreça um ambiente propício à construção conjunta do conhecimento.
Até então, realizaram-se análises de qualidade de água em uma das propriedades e na EFA Puris. A escola localiza-se na mesma comunidade onde se encontra a maioria das propriedades estudadas e é onde filhos de agricultores cursam o ensino médio integrado ao técnico agropecuário, com ênfase em agroecologia. Para monitorar a vazão da água, foram instalados vertedouros em córregos que atravessam as propriedades. O objetivo é aferir a variação dos valores de vazão ao longo do ano, considerando as condições naturais e de manejo dos agroecossistemas. Para complementar os dados estão sendo instaladas estações pluviométricas nas propriedades e medidores de erosão nas lavouras de café ou pastagens.
AS EXPERIÊNCIAS SISTEMATIZADAS
O caso da nascente que sobe
O casal de agricultores Paulinho e Fia, da comunidade são Joaquim, em araponga, adota manejos baseados em princípios agroecológicos que vêm garantindo produções mais rentáveis, a melhoria na qualidade de vida e a recuperação das nascentes existentes na propriedade (CARNEIRO et al., 2009).
Durante anos, desde que a propriedade foi adquirida por meio do processo de conquista conjunta de terras (CARNEIRO et al., 2009), o manejo adotado pela família foi direcionado no sentido de recuperar suas nascentes. Com autonomia para realizar suas próprias experiências, eles cercaram uma pequena área em volta da nascente e ao longo do curso d’água. Aliado a isso, manejaram a pastagem em volta de modo a não prejudicar as nascentes e o córrego, nunca deixando o solo exposto, controlando o número de animais e deixando as árvores crescerem espontaneamente. Também deixaram o topo dos morros com muitas árvores e adotaram práticas agroflorestais na lavoura de café, utilizando adubação orgânica e adubação verde com recursos de que eles mesmos dispunham.
Como resultado, uma área que antes era degradada e cuja nascente mal abastecia duas famílias, após 18 anos, abastece sete famílias sem problemas. Inclusive, conta o agricultor, a nascente foi subindo para a parte mais alta do terreno, de modo que a cerca já teve que ser mudada de lugar seis vezes. Embora a área protegida com cerca, em torno da nascente e do curso d’água, seja menor do que a determinada por lei, pelo fato de a propriedade da família ser pequena, o manejo integrado entre os agroecossistemas favoreceu a recuperação das nascentes.
Outras experiências significativas
O agricultor Ângelo, após ter cercado as nascentes de sua propriedade em um raio de 4 a 5 metros, adotado SAFs e feito a roçagem das plantas espontâneas na lavoura de café, relatou ter conseguido aumentar consideravelmente a vazão das nascentes em poucos anos. A sua experiência deixa claro que o manejo deve ser feito visando à integração entre os agroecossistemas. Não adianta cercar as nascentes, por exemplo, se o resto da propriedade não for manejado pensando na preservação das águas.
Já o agricultor Vicente relatou ter recuperado uma nascente que até o antigo dono da propriedade diz que não existia, mas que hoje é suficiente para abastecer duas famílias.
Segundo Vicente, a nascente é um local sagrado e muita gente fica encantada em vê-la. Ele, entretanto, gosta de mostrar para as visitas primeiramente o topo do morro coberto de árvores, pois ali está a causa, sendo a nascente apenas uma consequência. Alavoura de café e a pastagem, ambas sob SAFs, também são manejadas de forma a conservar a qualidade do solo, não o deixando exposto nem compactado, favorecendo assim o processo de infiltração de água. O manejo da pastagem é feito com rotação do gado em piquetes diferentes e, inclusive, como observou Vicente, o gado tem preferência pelas áreas mais sombreadas.
Em outra propriedade, também conquistada por meio da compra conjunta de terras, o agricultor João dos santos destacou que o importante é proteger o solo, o que pode ser feito de diversas maneiras. Ele lembra que, quando adquiriu sua propriedade, o solo era bastante degradado. Plantas como o rabo de burro, cambará e alecrim predominavam na área que antes era uma pastagem com muito solo exposto, onde houve pisoteio excessivo do gado e sempre faltava água na época de seca. A partir de então, começou a plantar café em SAFs e plantas de cobertura de solo como mucuna, amendoim forrageiro e lab-lab. Desde 2006, a nascente não secou mais em nenhuma época do ano. Segundo João, o amendoim forrageiro é muito eficiente na proteção do solo, principalmente nas áreas mais declivosas, embora seja bastante difícil controlá-lo. Hoje toda a água de chuva que cai na lavoura infiltra, não há enxurrada, conta o agricultor.
Ele conta ainda que manejou a área em volta da nascente de água que abastece sua família e alguns vizinhos, plantando samambaiuçu, bananeira e conta-de-lágrima em curvas de nível, além de deixar o capim crescer mais. Hoje, percebe que a água aumentou muito e tem orgulho de ver o fruto do seu trabalho de recuperação. Alegra-se também porque o vizinho a jusante de sua propriedade reconhece e agradece tudo o que ele fez pela melhoria da qualidade e da quantidade da água.
A experiência com manejo convencional
Outra propriedade estudada corresponde a uma grande área de terra que foi comparada às propriedades citadas anteriormente. Ela tem aproximadamente 80 hectares e três nascentes que abastecem cinco casas e um grupo escolar. A proprietária do terreno tem dois filhos e um sócio com o qual divide o trabalho na propriedade, entre lavouras de café, cana de açúcar para alambique e criações. Nas lavouras de café, é usado com frequência o herbicida roundup, além de adubação química e orgânica, com milho nas entrelinhas. A cana sempre foi plantada no mesmo lugar. Os cursos d’água não são cercados e há trânsito livre do gado e de outras criações nas suas margens. Eventualmente, na época sem chuvas, é feita irrigação na roça de feijão.
Dessa forma, essa propriedade pode ser caracterizada como de manejo convencional, importante para ser comparada com as propriedades consideradas agroecológicas, no que diz respeito ao manejo dos recursos hídricos existentes. Nesse caso, o agricultor entrevistado, sócio da proprietária, relatou que há sete anos quase acabou a água, mas as nascentes foram se recuperando espontaneamente quando o mato foi crescendo devido à falta de mão de obra e dinheiro para conduzir o trabalho na propriedade.
Análise da qualidade da água
A realização da análise de água na propriedade da família de Paulinho e Fia foi um momento propício para discussão com a família acerca dos parâmetros de qualidade e das possíveis causas de contaminação.
a água apresentou alto teor de ferro e, segundo Fia, é comum ter gosto de ferrugem. O mais provável é que isso esteja relacionado ao excesso desse elemento nos solos da região, o que não impõe riscos à saúde humana, mas pode deixar a água com gosto ruim e manchar as roupas. Valores baixos de pH foram encontrados na nascente e na saída da propriedade. As análises de oxigênio dissolvido (OD) indicaram excelente qualidade da água em todo o percurso do córrego, exceto no trecho que sai da propriedade do casal, logo depois do tanque onde são despejados os efluentes de lavagem do chiqueiro. Paulinho e Fia tentaram criar peixes nesse tanque algumas vezes, mas não conseguiram provavelmente devido ao baixo teor de OD.
É interessante ressaltar que nas propriedades familiares, em geral, existem problemas de contaminação da água devido ao despejo de esgoto doméstico e de criações, independente de o agricultor adotar ou não o manejo agroecológico. Normalmente, as casas estão muito perto dos cursos d’água e do nível do lençol freático, em função do relevo acidenta- do da região. Os próprios agricultores costumam admitir que devem melhorar nesse aspecto, mas que para isso precisam conhecer melhor as alternativas de tratamento ou diminuição dos efluentes.
Nesse sentido, realizou-se na EFA uma oficina, durante a qual os estudantes participaram ativamente das análises químicas e discutiram acerca dos efeitos dos diferentes tipos de manejo dos solos sobre as águas. As análises foram realizadas com a água do córrego que passa na escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos resultados, foi possível comprovar o efeito benéfico do manejo agroecológico sobre as águas, cuja preservação está relacionada à manutenção da biodiversidade na propriedade e à melhoria da qualidade do solo. Entretanto, é necessário continuar os estudos, sistematizando outras experiências para obter mais elementos de comparação entre os diferentes tipos de manejo. É preciso continuar também o monitoramento da qualidade e da quantidade da água nas propriedades estudadas. Além disso, deve-se monitorar a qualidade da água nas épocas de transição, entre os períodos seco e chuvoso, acompanhando assim a sazonalidade dos agroecossistemas.
O trabalho de monitoramento participativo das águas tem sido importante para mostrar o quanto o conhecimento tradicional tem a contribuir para o desenvolvimento de pesquisas voltadas para o desenho de sistemas produtivos mais sustentáveis. Mas também demonstra como, em contrapartida, a pesquisa acadêmica pode promover o fortalecimento das experiências dos agricultores.
Lucas Teixeira Ferrari
engenheiro ambiental, escola Família agrícola Puris de araponga – MG
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Joana Junqueira Carneiro
estudante de agronomia, Universidade Federal de Viçosa e bolsista do CNPq
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Irene Maria Cardoso
PhD em Ciência do solo, professora do Departamento de solos, Universidade Federal de Viçosa
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Lucas Machado Pontes
engenheiro ambiental, bolsista apoio Técnico FAPEMIG
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Adriellem Lidia Marta Soares da Silva
estudante de engenharia ambiental, Universidade Federal de Viçosa
bolsista PIBEX
Eduardo de Sá Mendonça
PhD em Ciência do solo, professor do Departamento de Produção Vegetal, Universidade Federal do espírito santo
[email protected]
Referências Bibliográficas:
SOUSA, H. N. et al. selection of native trees for intercropping with coffee in the Atlantic Rainforest biome. Agroforestry Systems. No prelo, 2010.
CARNEIRO, J.; CARDOSO, I. M.; MOREIRA, V. D. L. 2009. Agroecologia e conservação de água: um estudo de caso no município de araponga – MG. Revista Brasileira de Agroecologia, Curitiba, 2009. (Anais do VI Congresso Brasileiro de agroecologia).
CARDOSO, I. M.; FERRARI, E. A. Construindo o conhecimento agroecológico: trajetória de interação entre ONG, universidade e organizações de agricultores. Revista Agriculturas, v. 3, n. 4, p. 28-32, 2006.
Baixe o artigo completo:
Revista V7N3 – O caso da água que sobe: monitoramento participativo das águas em sistemas agroecológicos