João Luiz Guadagnin
Nos últimos anos, as várias linhas do crédito rural do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) têm apoiado cada vez mais agricultores familiares que se dedicam à produção de base ecológica. O número desses produtores agroecológicos já é expressivo, embora não conhecido. Eles são impulsionados pelos objetivos de aproveitar melhor os recursos naturais renováveis, diminuir a dependência de insumos externos, produzir com menores custos, gerar maiores rendas, otimizar o trabalho familiar e diminuir os riscos à saúde de suas famílias e dos consumidores.
Por outro lado, operadores do crédito rural, desde agentes financeiros a prestadores de serviços de assistência técnica e extensão rural (Ater), têm procurado incentivar a adoção de métodos produtivos que sejam orientados não só ao aumento de produtividade, mas também à melhoria do padrão de vida das populações rurais e à adequada utilização dos recursos naturais. Também se verifica hoje a disposição e o empenho conjunto de órgãos de governo e de organizações de agricultores para que os investimentos financiados sejam mais bem aproveitados.
Se essa realidade existe, cabe perguntar por que o número de agricultores familiares que se dedicam à produção de base ecológica e que utilizam o crédito rural do Pronaf continua, aparentemente, pequeno e não conhecido? O que fazer para aumentar esse número? Qual a possibilidade (e necessidade) de acesso ao crédito rural do Pronaf pelos agricultores familiares que se dedicam à produção agroecológica?
AVALIANDO E PLANEJANDO
A avaliação da necessidade e da pertinência da obtenção de financiamento é a primeira condição para que o crédito rural possa ajudar os produtores de base ecológica ou os que estão implantando processos de transição agroecológica em suas propriedades. A família deve pensar como irá empregar os recursos que serão empresta- dos. Para esses produtores, o crédito rural só será útil se aperfeiçoar Sistema diversificado de produção: base para a construção da autonomia o sistema de produção, reduzindo custos, racionalizando o trabalho e diminuindo a sua penosidade, auxiliando na utilização sustentável dos recursos naturais e contribuindo para o aumento da produção e da renda da família. Ou seja: o crédito rural sempre deve ser precedi- do de um planejamento. E, nesse processo, é muito importante que todas as pessoas da família participem da construção do plano de utilização dos recursos.
Enquanto a família estiver discutindo as vantagens do uso do crédito rural e como será empregado o dinheiro do financiamento, deve trocar idéias com os vizinhos e buscar apoio técnico da extensão rural para visualizar melhor o que está sendo planejado. Por meio de suas reflexões e dos diálogos, será possível avaliar se o plano é viável técnica e economicamente, analisando, entre outros, os itens a seguir:
- A extensão da terra que a família possui e o número de pessoas que irão trabalhar são compatíveis com o que será produzido?
- Com relação ao mercado, é importante considerar O que será produzido? Para quem a produção será entregue? Como será feita a comercialização?
- O preço previsto para a época da venda cobrirá as despesas, mais o financiamento do banco e, ainda, deixará receitas para a família?
- A habilidade e o conhecimento das pessoas da família atendem os requisitos para produzir o que está sendo planejado?
- As ferramentas, máquinas, animais e outros bens que a família possui são suficientes e adequados para o que vai ser produzido e para a tecnologia que será empregada?
- Os recursos naturais da propriedade, aguadas, o solo, sua fertilidade, topografia e profundidade, a quantidade e época das chuvas, entre outros, permitem a exploração do que está sendo planejado?
- Em que o crédito rural apoiará? Que vantagens terá a família ao utilizar o financiamento rural do Pronaf?
DIÁLOGO COM OS AGENTES FINANCEIROS
O bom diálogo entre a assessoria técnica das famílias que se dedicam à produção de base ecológica e os agentes financeiros é decisivo. Conseguir crédito é merecer confiança. Dar crédito é confiar. Os bancos decidem se concedem ou não o financiamento do Pronaf analisando as informações passadas pelo técnico a partir de três fatores: o histórico do agricultor, a capacidade de endividamento/pagamento da unidade familiar e a viabilidade econômica do projeto.
Os agricultores que sempre pagaram em dia as suas contas no banco e no comércio e não têm dívidas em atraso são considerados bons pagadores. Na terminologia oficial, diz-se que estão negativados.
Em seguida, os bancos realizam a análise da capacidade de pagamento, que é a condição ou habilidade apresentada por um tomador de crédito para pagar seus compromissos. Com base nas informações técnicas, avaliam se a atividade que o agricultor quer financiar será capaz de gerar renda suficiente para saldar as parcelas do empréstimo e ainda gerar receitas para a família. Nesse cálculo, o banco busca averiguar a viabilidade econômica do projeto, levando em consideração o valor do financiamento, a capacidade de produção da unidade familiar, as despesas previstas e receitas esperadas com a venda da produção. Analisa também se os cálculos do projeto estão condizentes com a realidade de custos e de receitas normalmente obtidas no município ou região.
No momento da contratação dos financiamentos, os bancos podem solicitar ao agricultor que apresente garantias. Elas servem para reduzir o risco de inadimplência, que é o não pagamento dos empréstimos. Ao mesmo tempo, elas são uma forma do agricultor assegurar ao banco que cumprirá com os compromissos assumidos perante o crédito.
No caso do Pronaf, as garantias mais utilizadas são o penhor de safra, o aval, a adesão ao Seguro da Agricultura Familiar (Seaf), também conhecido como Proagro Mais, o penhor cedular e a alienação fiduciária do bem financiado. Para definir que tipo de garantia será solicitado, é feita uma negociação entre o agricultor e o banco.
Os agricultores familiares que contratam financiamentos no Pronaf demonstram grande empenho no cumprimento de seus compromissos com os bancos. Quando a inadimplência ocorre, geralmente ela se deve a fatores que estão fora do controle dos agricultores, como a diminuição dos preços dos produtos ou a ocorrência de fenômenos climáticos adversos.
O PAPEL DA ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL (ATER) NO FINANCIAMENTO RURAL
O agricultor familiar faz planos e avalia sua atividade de forma permanente. A partir da análise de sua experiência anterior, a família estabelece projetos para o futuro. O extensionista rural é um auxiliar nas ações de planejamento. Nesse sentido, apoia a família na avaliação do papel que o financiamento rural poderá cumprir na transição agroecológica. Para tanto, é importante que se considere o impacto das iniciativas financiadas sobre o conjunto do sistema produtivo. Dentre as questões a serem analisadas, destacam-se:
- Será necessário algum tipo de capacitação para a família para que a atividade financiada ou o empreendimento dê certo?
- A capacidade gerencial da família é suficiente?
- Há mercado para o que vai ser produzido?
- Qual deverá ser o preço mínimo que será solicitado pelos produtos para que as despesas sejam saldadas e para que receitas sejam geradas?
- Qual será o impacto das atividades financiadas sobre o solo, a água e a vegetação nativa da propriedade?
- Qual será a mudança na rotina de trabalho da mulher e dos filhos com as novas atividades?
- A tecnologia necessária está disponível e ao alcance da família?
No entanto, o sucesso dos projetos de financiamento não depende apenas de um bom planejamento segundo critérios técnicos e econômicos. É necessário que o serviço de assistência técnica e extensão rural (Ater) tenha continuidade nas fases de implantação e de execução. Um serviço de Ater, portanto, exige a participação de profissionais competentes, que conheçam os princípios da Agroecologia e dominem seus métodos de manejo técnico, além de saberem ouvir e dialogar com as famílias agricultoras.
A prestação de serviços de Ater não se deve limitar à concessão dos financiamentos rurais, já que seu objetivo é apoiar o desenvolvimento econômico e sociocultural das famílias e da comunidade como um todo. Os técnicos extensionistas devem informar e capacitar as famílias agricultoras para que acessem as demais políticas públicas, especialmente as de comercialização e seguro multirisco, tais como o Seguro da Agricultura Familiar (ou Proagro Mais) e o Programa de Garantia de Preços da Agricultura Familiar.
Para que a Ater seja desenvolvida com essa perspectiva ampla, necessita desenvolver relações com as famílias e comunidades rurais que sejam pautadas em enfoques participativos e que empreguem uma visão sistêmica das unidades familiares e do território, respeitando e potencializando os saberes locais existentes.
LIMITES E DESAFIOS
Apesar dos avanços verificados, é preciso reconhecer e identificar quais as limitações ou deficiências que devem ser superadas para efetivamente fortalecer a agricultura familiar agroecológica, entre elas:
- O planejamento das unidades familiares raramente ocorre nos processos de concessão dos financiamentos do Pronaf. Da forma como são elaborados atualmente, os projetos de crédito só cumprem a finalidade de viabilizar a obtenção do financiamento, não contribuindo para o planejamento sistêmico de toda a unidade familiar.
- Necessidade de superação da lógica de financiamento focada em um produto específico.
- A legislação do Pronaf não exige fiscalização das operações, ficando essa ação a critério dos agentes financeiros.
- Os agentes de Ater e os agentes financeiros possuem aplicativos (softwares) próprios que não são integrados, o que gera dificuldades no envio de informações e implica um trabalho redobrado.
- Os aplicativos em uso não permitem o georreferenciamento das unidades de produção, do uso atual e projetado do solo, do mapeamento de passivos ambientais, etc.
- Na metodologia atual, o técnico possui pouco compromisso com as metas de adequação ambiental, renda e adimplência das famílias.
- Os técnicos, os bancos, os movimentos sociais e o governo federal têm poucas informações e ferramentas que permitam avaliar o desempenho do programa quanto ao atendimento das metas.
- São pequenas ou inexistentes as condições para avaliação do atendimento dos objetivos do crédito rural, especialmente quanto ao incentivo à transição agroecológica.
João Luiz Guadagnin
diretor de financiamentos e proteção de produção do Ministério do Desenvolvimento Agrário
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Baixe o artigo completo:
Revista V7N2 – O crédito rural do Pronaf e a transição agroecológica: a visão governamental