Valmir Luiz Stropasolas
O tema da sucessão geracional e, especificamente, da reprodução social da profissão de agricultor(a) vem emergindo como uma das principais preocupações das instituições do setor público, bem como das entidades representativas da agricultura familiar do Sul do Brasil, particularmente em Santa Catarina. O processo sucessório é reconhecido como a transferência de poder e do patrimônio entre gerações no âmbito da produção agrícola familiar, a retirada paulatina das gerações mais idosas da gestão do estabelecimento e a formação profissional de um novo agricultor(a). Assim, além da reprodução entre as gerações de um patrimônio material, particularmente da propriedade da terra, a continuidade do processo sucessório na agricultura familiar implica também a transmissão de um patrimônio histórico e sociocultural. Embora essa transferência de saberes tenha sempre estado presente na agricultura familiar, verifica-se atualmente uma forte tendência a uma ruptura no processo.
O questionamento por parte dos jovens rurais, sobretudo pelas filhas dos agricultores, sobre sua condição social marcada pela falta de autonomia e de oportunidades de renda e a recusa em seguir a profissão dos pais ao migrarem para as cidades têm comprometido a continuidade e o papel que os empreendimentos familiares exercem no desenvolvimento econômico e social da grande maioria dos pequenos municípios. Por outro lado, as renovadas funções demandadas pela sociedade às famílias rurais – entre as quais a produção de alimentos de qualidade; a preservação dos recursos ambientais e do patrimônio histórico e cultural rural; a agroindustrialização em unidades familiares; o turismo rural, etc – podem se constituir em alicerces para o fortalecimento das comunidades, contrapondo-se à tendência de masculinização e envelhecimento da população rural verificada em muitas localidades. São escolhas sociais que estão em jogo e que podem definir o sentido do desenvolvimento dessas localidades. Pode-se apostar, por um lado, no fortaleci- mento da agricultura familiar por meio da consolidação dos jovens no meio rural. Por outro lado, pode-se legar as definições sobre o desenvolvimento rural às engrenagens do mercado que, em geral, têm levado ao esvaziamento demográfico, à concentração fundiária e ao predomínio dos grandes segmentos empresariais vinculados ao agronegócio em detrimento da agricultura familiar.
A DINÂMICA DA SUCESSÃO NO ÂMBITO DOS NÚCLEOS FAMILIARES
Os diversos interesses e projetos de vida e as visões de mundo contrastantes entre os membros do grupo doméstico têm dado margem à constituição de conflitos de gerações no âmbito da agricultura familiar. De maneira geral, constata-se que os principais conflitos intergeracionais se revelam no modelo de gestão da propriedade centralizado na figura do pai chefe de família; na dificuldade dos pais em aceitar as ideias e as inovações propostas pelos(as) filhos(as); na impossibilidade de os jovens desenvolverem seus próprios projetos e atividades produtivas na propriedade; na pouca participação dos(as) filhos nas tomadas de decisão que afetam a unidade familiar; na falta de autonomia financeira dos filhos e, principalmente, das filhas; na ausência de liberdade ou na pouca mobilidade espacial que é permitida às filhas (AGUIAR & STROPASOLAS, 2010; STROPASOLAS, 2006).
No horizonte das escolhas de pais e filhos(as) quanto às estratégias de futuro cruzam-se diferentes perspectivas conflitos. No quadro dessas tensões há que se considerar especialmente as distintas perspectivas entre homens e mulheres, em detrimento das últimas, cujas motivações para permanecer na agricultura se estreitam cada vez mais diante da tendência ampla à exclusão da herança da propriedade (como também da dupla jornada de trabalho e da pouca valorização dos seus esforços produtivos) vivenciada pelas sucessivas gerações de mulheres. De fato, a organização do trabalho na agricultura familiar, fortemente marcado por um viés de gênero, destina ao homem o espaço da produção e da gestão da propriedade. Dessa forma, as mulheres não são preparadas, nem estimuladas a se envolver ou se interessar por essas questões. Assim, em muitos casos, as moças parecem aceitar como natural o fato de o sucessor ser um irmão. Ademais, o fato de saber, de antemão, que não partilha- rá do direito à herança da terra, desvincula-a de certa forma do compromisso de permanecer na propriedade.
São diferenciadas também as estratégias e as escolhas dos jovens em função da condição econômica da família, sendo que as propriedades mais capitalizadas tendem a estimular mais a permanência da juventude na agricultura. Isto não significa necessariamente que as escolhas dos filhos(as) não contrariem o desejo familiar, sobretudo paterno.
UM DESAFIO À EDUCAÇÃO
Além de normalmente não participarem de cursos profissionalizantes, parcela expressiva dos responsáveis pelos estabelecimentos rurais não estuda atualmente, o que realça a importância da ampliação efetiva dos investimentos em educação no meio rural. O estudo é associado a percepções que representam mobilidade social, figurando como condição quase que indispensável para garantir uma inserção social mais digna. Parece ha- ver nesse contexto uma oposição: quem estuda quer sair; quem não estuda não tem outra alternativa que não seja ficar:
Há diferenças entre os jovens na valorização da educação: as moças investem mais que os rapazes, sobretudo para se prepararem para conseguir um emprego na cidade. Para elas, dar continuidade aos estudos, fazer um curso superior significa ter uma profissão, ou seja, ter reconhecimento profissional, condição que se apresenta como necessária para o reconhecimento social. No caso dos rapazes, a valorização social não passa necessariamente pelo reconhecimento profissional. Na pior das hipóteses, isto é, mesmo que possua baixo grau de escolaridade, ele será identificado e reconhecido como agricultor. O mesmo não acontece com as moças já que elas só conquistam a condição de agricultoras, quando se casam com um agricultor.
OS IMPACTOS DA MODERNIZAÇÃO NA DINÂMICA SUCESSÓRIA
Outro aspecto que deve ser considerado quando se pretende dar conta da complexidade inerente às dinâmicas sucessórias na agricultura familiar diz respeito às modificações nos processos produtivos resultantes da modernização dos sistemas agroindustriais vinculados a empresas transformadoras e exportadoras de alimentos e matérias-primas. Dentre os principais ramos agroindustriais, citamos a avicultura, a suinocultura, a fumicultura e a fruticultura. Esse fenômeno de integração subordinada repercute especialmente nas famílias de agricultores parceiros das empresas por meio da crescente dependência a regras e exigências mercantis que impõem o aumento da especialização produtiva e do nível de tecnificação com o uso de insumos e equipamentos industriais.
Para se manterem nesses circuitos produtivos e nos respectivos mercados, essas famílias devem necessariamente se adequar às sempre renovadas exigências normativas e tecnológicas, o que acarreta redefinições importantes na divisão social do trabalho na família e nas comunidades. Mais precisamente, as modificações impostas aos sistemas produtivos, aliadas às mudanças demográficas e à mobilidade rural-urbano de segmento expressivo de jovens rurais, promovem mudanças nos papéis exercidos, nas atribuições e no tempo destinado ao trabalho pelos diversos componentes do grupo doméstico. Gera-se assim uma sobrecarga de trabalho nas pessoas que permanecem nas unidades produtivas, inclusive entre os mais novos, tendo em vista a redução da disponibilidade de mão de obra na família. No caso específico da criação animal no sistema integrado, o ritmo ininterrupto das atividades impõe a necessidade de trabalho, inclusive nos finais de semana e feriados. Entretanto, nem sempre esta sobrecarga é compensada com maior remuneração dos jovens e mulheres, ou mesmo com uma maior participação na gestão dos negócios familiares. Essa situação acaba por gerar descontentamentos, agravando conflitos e interferindo nas definições tomadas em relação à sucessão nos estabelecimentos, o que explica a migração de jovens mesmo em unidades economicamente consolidadas.
Por outro lado, unidades familiares menos dependentes dessas relações verticais, que combinam duas ou mais atividades e procuram adotar modelos produtivos menos exigentes em agro- químicos, tendem a criar condições para um processo de gestão mais participativo. Ao colocarem em funcionamento um conjunto variado de atividades, essas unidades geralmente necessitam da contribuição permanente do trabalho, das habilidades e do conhecimento de todos os membros da família, de modo que qualquer investimento que se pretenda realizar deve ser acordado no núcleo familiar. Os sistemas mais diversificados e, principalmente, aqueles baseados na Agroecologia, favorecem o diálogo no âmbito da família e, especificamente, o acesso dos jovens e mulheres à renda (mensal e até mesmo semanal), ao conhecimento e à participação nos espaços públicos e nas entidades associativas e representativas.
É importante ressaltar, enfim, que as atividades comumente realizadas pelas mulheres nesses sistemas na medida em que vão crescendo em importância econômica, vão inserindo o trabalho delas no espaço dito produtivo. A valorização dos produtos de seu trabalho favorece o aumento da participação das mulheres nos espaços de decisão circunscritos à dinâmica sucessória da unidade familiar e, por consequência, no ambiente público, para fora da propriedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abordar o conjunto de questões relacionado ao processo sucessório implica adentrar em um campo pleno de padrões culturais e conflitos de valores que afetam a trajetória social dos membros do grupo doméstico. Atuar sobre essa questão não é tarefa fácil e nem garante resultados concretos e imediatos, pois nos deparamos com assuntos normalmente omitidos das agendas de discussões familiares pelo fato de gerarem constrangimentos e por problematizar hierarquias de poder no âmbito da família. Entrar nesse jogo implica não apenas abordar o processo de transferência patrimonial familiar e a retirada das gerações mais idosas do gerenciamento da propriedade agrícola, como também incorporar na análise as redefinições em curso, sobretudo nas gerações mais jovens, no que diz respeito ao lugar e ao papel ocupado por quem exerce a profissão de agricultor(a) na família, no meio rural e na sociedade. Ou seja, estamos diante de uma problemática social que envolve um sistema cultural com raízes históricas continuamente reproduzido e/ou redefinido pelos diversos segmentos da agricultura familiar.
Mas o debate sobre o processo sucessório não deve ser desvinculado de outras questões que afetam a reprodução social da agricultura familiar. Isso porque os dilemas envolvidos nas (in)definições que interferem na dinâmica sucessória não resultam apenas de fatores endógenos às famílias agricultoras, mas são também influenciados pelas consequências de problemas estruturais ainda não resolvidos no mundo rural e que afetam, com maior ou menor intensidade, diferentes segmentos da população rural brasileira, sobretudo os grupos sociais tradicionalmente excluídos das políticas públicas, do acesso à terra e dos direitos de cidadania.
Valmir Luiz Stropasolas
agrônomo/UFSC, mestre em Sociologia rural/UFCG, doutor em Ciências Humanas/UFSC, professor adjunto do Centro de Ciências Agrárias da UFSC
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Referências Bibliográficas:
AGUIAR,Vilenia Venancio Porto; STROPASOLAS,V. l. As problemáticas de gênero e geração nas comunidades rurais de Santa Catarina. in: SCOTT, Parry; CORDEIRO, Rosineide; MENEZES, Marilda. (Org.). Gênero e geração em contextos rurais. 1 ed. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010, v. 1.
BRUMER, Anita & ANJOS, Gabriele. gênero e reprodução social na agricultura familiar. Revista NERA, ano 11, n. 12, Janeiro/Junho de 2008, pp. 6-17, Presidente Prudente-SP
SPANEVELLO, R.M. A dinâmica sucessória na agricultura familiar. 2008. 223f. Tese (Doutor em Desenvolvimento rural) – Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento rural, UFRGS, rio grande do Sul.
STROPASOLAS, Valmir Luiz. O mundo rural no horizonte dos jovens. Florianópolis: Editora da UFSC, 346 p., 2006.
Baixe o artigo completo:
Revista V8N1 – Os desafios da sucessão geracional na agricultura familiar