Claudenir Fávero
“A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza” (SANTOS, 2008, p. 103).
As paisagens são moldadas pelas inter-relações dos componentes biofísicos da natureza com as ações humanas. O mosaico de paisagens encontrado em todas as regiões brasileiras é a expressão da diversidade de ambientes naturais associada à sociodiversidade historicamente presente em cada território que as constitui. Desde os primórdios da ocupação, os povos originários foram se estabelecendo nos diferentes ambientes, interagindo com o meio e conformando as paisagens.
A chegada, no Brasil, das culturas europeias e africanas, a partir do século 16, imprimiu uma nova dinâmica territorial, reconfigurando as paisagens e ampliando a diversidade de expressões camponesas. Mesmo com a predominância dos latifúndios, as paisagens camponesas sempre estiveram presentes em todas as regiões do Brasil. No entanto, foi a partir da industrialização brasileira, no século 20, e da incorporação de máquinas, equipamentos e insumos industrializados aos processos produtivos da agricultura, com apoio e fomento de programas e políticas públicas, que as paisagens rurais sofreram profundas transformações, tornando-se homogeneizadas pela implantação dos monocultivos e a produção em escala.
Esse processo de homogeneização das paisagens brasileiras se intensificou nas décadas recentes, com o alicerça- mento de boa parte do equilíbrio da balança comercial brasileira na exportação de alguns produtos agrícolas produzidos em larga escala (DELGADO, 2010). Soma-se a isso a investida do capital financeiro nacional e internacional na exploração das riquezas naturais brasileiras, como a biodiversidade, as jazidas minerais, os combustíveis fósseis e o potencial energético, aliada à lógica da preservação/compensação ambiental que muitas vezes separa e exclui o ser humano da natureza, tornando-a, no final das contas, uma reserva de recursos a serem explorados futuramente.
Como se não bastassem as políticas macroeconômicas que privilegiam as grandes corporações transnacionais, ainda prevalece em ambientes institucionais de gestão pública do meio ambiente a concepção de preservação da natureza dissociada do ser humano, sob a ótica do mito moderno da natureza intocada (DIEGUES, 1996). A partir dessa concepção, são estabelecidas políticas e normas no sentido de impor restrições às atividades tradicionais, desconsiderando e excluindo, socialmente, o papel dos saberes camponeses na conservação da biodiversidade. Em contraposição, as iniciativas e organização dos camponeses demonstram ser possível a conciliação entre produção econômica e conservação ambiental.
Os artigos deste número de Agriculturas trazem exemplos e reflexões sobre essas dinâmicas de reconstrução de paisagens camponesas. No artigo Disputas territoriais no Vale do Jequitinhonha: uma leitura pelas transformações nas paisagens , são descritas e analisadas as diferentes paisagens que compõem o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais; a conformação das mesmas pela presença histórica de diversas expressões de povos e comunidades tradicionais camponesas; e as transformações nelas impressas, a partir das décadas de 1960/70, com o advento dos megaprojetos de monocultivos de eucalipto, hidroelétricas e mineração, que contaram com o apoio e fomento estatal, e, mais recentemente, com a implantação de unidades de conservação de proteção integral, promovendo expropriação de territórios tradicionais camponeses. Os autores retratam, também, como as comunidades camponesas – por meio de suas estratégias de organização, suas formas de convivência com as condições e diversidades ambientais, seus sistemas diversificados de produção e comercialização, ancorados nos saberes tradicionais e nos princípios da Agroecologia – têm travado uma disputa constante pela manutenção de seus territórios e seus modos de vida frente à homogeneização empresarial das paisagens.
No artigo Verde e negro: cores de uma paisagem quilombola (p.16), é demonstrado como a projeção no tempo e no espaço das relações socioculturais conformam a paisagem característica e a territorialização da comunidade quilombola de São Pedro de Cima, município de Divino, na Zona da Mata de Minas Gerais. O texto aborda como se dão as resistências quilombolas à lógica urbana de produção e consumo e ao uso de insumos industrializados, contrapondo-se à padronização da paisagem pelos monocultivos de café ao manter os sistemas de produção diversificados e moldados historicamente pelos saberes e modos de vida tradicionais. Esses agroecossistemas diversificados se tornaram fundamentais enquanto locus das percepções sobre os processos de transição agroecológica e de metodologias utilizadas nos Intercâmbios de Saberes e Sabores realizados na comunidade.
O artigo Cooperação comunitária: enfrentando ameaças econômicas e institucionais em Chiapas, México (p. 22) relata a experiência da comunidade de camponeses Terra e Liberdade, no município de Villaflores. Segundo os autores, o modo de vida da comunidade sofreu com os impactos do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês), com as que- das drásticas nos preços de comercialização do milho e com a criação de uma Reserva da Biosfera em Sierra Madre de Chiapas, cuja zona de amortecimento abrangeu todo o território comunal, impondo fortes limitações aos usos tradicionais da terra, como a proibição do uso do fogo e da extração de produtos florestais. Diante desse cenário adverso, foi desenvolvido um projeto participativo, visando à melhoria das estruturas organizacionais locais e à criação de mecanismos de tomada de decisão coletiva. O projeto contou com assessoria e apoio financeiro externos, mas, sobretudo, com organização, liderança e coesão social internas. Ao adotar processos democráticos de tomada de decisão em nível local, sistemas novos e sustentáveis de uso da terra foram desenvolvidos, levando a fontes mais seguras de renda, ao fortalecimento da comunidade e a uma reavaliação, pela mesma, da importância da floresta em sua paisagem agrícola.
Nessa mesma linha de argumentação, o artigo Cooperativas territoriais criam novas trajetórias para o desenvolvimento rural do norte da Frísia (p. 27) aborda a resistência e a luta de agricultores, produtores de leite, pela manutenção e conservação das florestas do norte da Frísia, na Holanda, que historicamente foram mantidas por meio do uso coletivo. Após sofrerem restrições e imposições de políticas públicas destinadas a combater os efeitos da chuva ácida e da lixiviação de nitrogênio em reservas naturais, os agricultores se organizaram em cooperativas territoriais e convenceram o governo a conceder isenções de vários regulamentos asfixiantes e a fazer acordos visando à utilização e ao desenvolvimento de manejos tradicionais de manejo das paisagens. Segundo os autores, os caminhos trilhados pelas cooperativas, empregando técnicas baseadas no conhecimento tradicional em interação com pesquisas científicas, ganharam ta- manha importância que a cooperativa assumiu um papel educativo, organizando regularmente visitas guiadas e apresentações. O governo holandês reconheceu a singularidade das florestas do norte da Frísia, declarando-as, recentemente, como uma paisagem nacional.
Já no artigo As paisagens dos ervais no Planalto Norte Catarinense e a conservação dos remanescentes florestais (p. 32), são realizadas reflexões sobre a histórica presença humana, sobretudo de povos indígenas, na conformação das paisagens da região da Floresta de Araucária no Planalto Norte Catarinense. Os autores se debruçaram sobre como o manejo tradicional agroextrativista, especialmente em relação à erva-mate, tem garantido a conservação dos remanescentes florestais e toda sua biodiversidade em contraposição à expansão dos ervais implantados em sistemas monoculturais e dependentes de insumos industrializados. Revelam, também, a flagrante contradição da legislação ambiental que, ao colocar restrições ao manejo e à extração da erva-mate nos remanescentes florestais, correm o risco de levar à diminuição do número de indivíduos dessa espécie em tais ambientes.
No artigo Quando a paisagem diversifica, o prato fica colorido, é relatado como, na Zona da Mata de Minas Gerais, as paisagens homogeneizadas pelo mono- cultivo de café com a incorporação do pacote tecnológico da Revolução Verde, a partir dos anos de 1960, foram transformadas pela transição agroecológica e a adoção de sistemas diversificados, notadamente, os sistemas agroflorestais. As autoras demonstram que tal transformação contribuiu para a soberania e segurança alimentar e a melhoria nas condições de vida das famílias agricultoras. Destacam, também, a importância, na transição agroecológica, da autonomia das famílias em relação à posse da terra e do olhar sobre os sistemas agroalimentares, constituída por todos os recursos alimentares presentes e culturalmente aceitos como alimento.
Por fim, o artigo Sepam: uma herança mundial de paisagens agrícolas notáveis traz uma boa notícia: a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) criou uma iniciativa visando proteger e apoiar os chamados Sistemas Engenhosos do Patrimônio Agrícola Mundial (Sepam). Segundo os autores, o objetivo é estabelecer as bases para o reconhecimento internacional desses sistemas, enfatizando a importância de sua conservação dinâmica e do manejo adaptativo da biodiversidade agrícola associada. No texto, os Sepam são descritos enquanto sistemas assentados nos conhecimentos tradicionais e na riqueza da biodiversidade, destacando o seu papel para a garantia da segurança alimentar e dos meios de vida de populações rurais, bem como para a preservação dos recursos naturais do planeta. São citados e descritos como exemplos: a Agricultura Chilote, praticada há centenas de anos no Chile; a Rota Cusco-Puno, na região andina do Peru; a Terra Preta, abordando a gestão engenhosa dos solos por povos indígenas da Amazônia; e os Chinampas do México, sistemas de policultivo nos pântanos dos lagos localizados ao sul do Vale Central do México. Os autores relacionam, ainda, os riscos e ameaças enfrentados pelos Sepam em todo o mundo em função das políticas que promovem a homogeneização das paisagens e o uso de in- sumos industrializados, ocasionando a desterritorialização dos espaços agrários pelo capital financeiro por meio das empresas nacionais e transnacionais e seus megaprojetos. Nesse contexto, as resistências camponesas são apontadas como respostas que lançam mão de diversas estratégias produtivas e organizativas, bem como acionam mecanismos sociais de recampesinização de territórios e desenvolvimento territorial com identidade cultural.
Claudenir Fávero
Professor do Departamento de Agronomia e coordenador do Núcleo de Agroecologia e Campesinato da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
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Referências bibliográficas:
DELGADO, G.C. Especialização primária como limite ao desenvolvimento. Desenvolvimento em Debate, v. 1, n. 2, p.111-125, 2010.
DIEGUES, A.C. O mito do paraíso desabitado: as áreas naturais protegidas. In: FERREIRA, L.C.;VIOLA, E. (Orgs.) Incertezas de sustentabilidade na globalização. Campinas: UNICAMP, 1996. p. 279-313.
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. 384p.
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Revista V11N3 – Paisagens camponesa sem transformação