Naidison Quintella Baptista
O Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) vem sendo implementado há cerca de cinco anos pela Articulação do Semi-árido Brasileiro (ASA-Brasil) e seus parceiros, cuja atuação está orientada para viabilizar processos de desenvolvimento fundados no princípio da convivência com o semi-árido. Para tanto, a ASA busca influenciar as políticas públicas relacionadas à reforma agrária, à assistência técnica, ao combate à desertificação, à educação contextualizada, bem como atuar em outras frentes estratégicas para o desenvolvimento sustentável da região.
O P1MC conseguiu difundir nacionalmente outra visão do semi-árido, que expressa a capacidade de seu povo de traçar seu próprio destino e resolver seus problemas, desde que a ele sejam garantidos meios e políticas ajustadas às suas necessidades específicas.
Até hoje, por meio do P1MC, foram construídas 221.514 cisternas de placas para captação de água de chuva para o consumo humano, atendendo ao direito de mais de um milhão e cem mil pessoas de ter acesso à água de qualidade para beber e cozinhar.
Além disso, com as cisternas, mulheres deixam de caminhar quilômetros para buscar água, muitas vezes poluída. A água está disponível com qualidade na porta de casa, representando um duplo efeito positivo sobre a saúde das famílias. Além de diminuir a penosidade do trabalho para acessar água para consumo doméstico, agricultoras e agricultores, sobretudo as primeiras, passam a dedicar mais tempo à educação de seus filhos, à família, à produção e ao lazer. Como muitas agricultoras afirmam, agora são mais mães, mais esposas, mais companheiras, mais mulheres, mais gente.
As famílias agricultoras, em especial as crianças, tornam-se mais saudáveis porque não são mais acometidas por doenças transmissíveis pela água contaminada. Em 2003, o Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef), em publicação sobre Crianças e adolescentes no semi-árido brasileiro , identificava que 42% das crianças e adolescentes na região não dispunham de acesso à água de qualidade. Apontava também que iniciativas como a do P1MC mostram como esse problema pode ser resolvido. Já a Embrapa Semi-árido, em pesquisa realizada no segundo semestre de 2005 com 3.517 famílias dos 11 estados que compõem a região, identificou a melhora de 80% na saúde de crianças cujas famílias passaram a beber água armazenada nas cisternas. Além disso, 89% dos entrevistados afirmaram que, após a construção dos reservatórios, melhorou a qualidade de vida de todos os membros da família.
Do ponto de vista de cidadania, são milhares de pessoas que deixaram de vender seus votos em troca de litros de água, prática clientelista que, por séculos, manteve no poder famílias e grupos políticos no semi-árido, sobrepondo-se aos direitos de todas as pessoas a uma vida digna e a uma alimentação saudável.
Invertem-se, ou pelo menos começam a se inverter, concepções e práticas políticas que até recentemente mantinham o povo do semi-árido na dependência e na marginalização. Passaram também a emergir processos e metodologias que valorizam o conhecimento das comunidades, sua capacidade de mobilização e de intervenção em políticas públicas. De fato, a marca registrada do P1MC é que as cisternas são construídas com e para as pessoas. São equipamentos simples e de fácil manejo, tendo longa vida útil, quando cercados de mínimos cuidados.
A partir das cisternas e de práticas testadas e construídas pelas comunidades, inicia-se outro passo: captar água de chuva para a produção, dentro dos mesmos moldes de tecnologias acessíveis e de domínio das comunidades e em processos descentralizados, ao invés dos velhos métodos centralizadores e excludentes existentes no semi-árido.
Entretanto, no momento em que se celebra mais de um milhão de pessoas com acesso à água potável e se abrem novas perspectivas de políticas emancipadoras, vivemos o desafio de garantir que tais políticas não sejam interrompidas. Lutamos para que não retomemos aqueles modelos e concepções de combate à seca que apenas fizeram aumentar a exclusão da maioria e a concentração das riquezas em mãos de poucos.
Naidison Quintella Baptista
coordenador executivo da Articulação no Semi-árido Brasileiro (ASA); integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); coordenador do Movimento de Organizações Comunitárias (MOC).
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Revista V4N4 – Programa garante água de qualidade para 1 milhão de pessoas no semi-árido