Alfred Lakwo
Para as populações rurais empobrecidas, não é fácil obter empréstimos e subsídios de bancos comerciais ou instituições financeiras, que exigem garantias e planos de negócios arrojados. Entretanto, o meio rural conta com muita oferta de capital que poderia ser usado para investir em atividades produtivas. Um exemplo desse potencial vem de um sistema de microcrédito existente em Uganda, África.
Assim como em muitos outros países, os agricultores familiares de Uganda residentes em áreas rurais remotas dificilmente são contemplados por bancos ou instituições financeiras, sendo geralmente descritos como infinanciáveis. Como justificativa, costuma-se alegar que os agricultores se encontram em lugares de difícil acesso (em termos geográficos), que dispõem de pouca ou nenhuma garantia e que geralmente desenvolvem atividades de alto risco. Contudo, o advento do microcrédito tem demonstrado que emprestar dinheiro para pequenos empreendedores pode gerar resultados positivos. Mas o fato é que a maioria desses programas está concentrada nas áreas urbanas. As outras alternativas, como fundos comunitários ou cooperativas de crédito, também costumam excluir as populações rurais mais pobres, uma vez que elas não detêm dinheiro para pagar cotas e fazer parte de tais programas financeiros. Além disso, a maioria dos programas governamentais voltados especificamente para atender os pequenos agricultores de áreas remotas é fortemente influenciada por relações políticas e sociais que desfavorecem os mais pobres. Apesar do panorama adverso, todas essas comunidades contam com recursos locais, mesmo que em pequena escala. Diante desse contexto, algumas questões devem ser colocadas: Um programa de crédito rural pode se basear na valorização desses recursos locais? As comunidades rurais remotas têm condições de levantar seus próprios recursos e empregá-los para empréstimos? A ONG Agência de Aceleração do Desenvolvimento Regional (Afard, sigla em inglês) tem encontrado algumas respostas positivas para essas questões.
TRANSFORMANDO O PANORAMA FINANCEIRO
A Afard atua na região Oeste do Nilo, em Uganda, cerca de 400 km ao norte da capital Kampala. A partir de seus vários anos de experiência em projetos de desenvolvimento local, a organização percebeu que havia muito pouca oferta de crédito nas comunidades rurais e que os sistemas de fundos rotativos envolviam um número reduzido de pessoas. Na maioria dos casos, as instituições de microcrédito disponibilizavam empréstimos que serviam apenas como reforço, mas não para dar a partida, justamente o que os mais pobres precisam. Como também não pode oferecer garantias nem elaborar planos de negócios, essa população não consegue acessar os recursos de bancos comerciais. Mas agricultores precisam de capital para investir em seus sistemas produtivos, cujo valor médio foi estimado em 500 mil xelins ugandeses (aproximadamente R$ 600,00) por família a cada safra. Como superar essa lacuna entre oferta e demanda?
A Afard pensou então em lançar mão de uma abordagem coletiva que abrangesse todos os membros da comunidade, e não apenas aqueles que já tinham negócios estabelecidos. A estratégia ideal teria que ser construída com base nas relações de solidariedade já existentes entre os pobres e nas possibilidades locais de arrecadação de fundos – mesmo que isso resultasse em uma carteira de empréstimos de pequeno porte. Essa abordagem permitiria o acesso local e a propriedade equitativa dos fundos de empréstimo, com todos os participantes contribuindo e recebendo benefícios igualmente.
Durante os primeiros meses de 2009, a Afard conduziu um breve estudo em três distritos da região Oeste do Nilo (Nebbi, Aruá e Yumbe). O objetivo era identificar as diferentes estratégias já adotadas por diversas associações comunitárias para levantar fundos. Algumas associações de agricultores conseguiam arrecadar por meio da cobrança de taxas obrigatórias (contribuição dos membros associados, anuidades e taxas mensais de subscrição). Outras por meio da venda regular de força de trabalho ou de produtos específicos (como tijolos e lenha). Tornou-se evidente, portanto, que as associações agricultoras já tinham desenvolvido diversas formas de levantar recursos.
Essas descobertas foram compartilhadas entre os grupos. Muitos deles começaram a desenvolver novas ideias e colocá-las em prática. Naturalmente, os grupos apresentavam muitas diferenças entre si. Em alguns casos, a Afard ajudou na formalização das associações (geralmente envolvendo membros que já mantinham vínculos ou relações próximas). Em outros casos, os grupos estabeleceram suas próprias regulações e normas internas. Mas o importante foi que todos os grupos conseguiram tocar suas iniciativas.
Três meses depois das primeiras reuniões, as associações tinham acumulado mais de três milhões de xelins e estavam prontas para emprestar dinheiro por meio de seus Sistemas de Crédito Coletivo. Para ajudar no emprego efetivo dos fundos, a Afard desenvolveu uma política de acesso ao crédito, com normas e regras internas que foram avaliadas e finalmente acatadas por todos os membros das associações. Essas regulamentações cobriam diversos assuntos, tais como os critérios para aprovação do crédito, o período do empréstimo, as taxas de juros, as modalidades de restituição, as multas aplicadas em caso de atraso no pagamento sem justificativa, a revisão da dívida em casos de doença ou morte de um membro da família e a suspensão do acesso ao crédito àqueles que fossem considerados maus pagadores.
NOVAS OPORTUNIDADES
Ao final de 2009, a Afard já estava atuando junto a 46 associações comunitárias, abrangendo 4.271 famílias, todas com seus próprios Sistemas de Crédito Coletivo, que totalizavam o montante de 190 milhões de xelins (aproximadamente R$ 240 mil) na região, com mais de 2,8 mil pessoas acessando os recursos. Em apenas um ano de trabalho com os grupos, o total de dinheiro emprestado chegou a 384 milhões de xelins.
Essa dinâmica de empréstimos trouxe muita esperança para os agricultores da região. Agora, as famílias tinham condições de comprar enxadas, sementes ou insumos para elaboração de pesticidas naturais, tudo para intensificar sua produção. Em apenas alguns meses, muitas famílias incrementaram suas áreas com cultivos de maior valor comercial, como a mandioca. Houve também uma mudança significativa na percepção sobre a atividade agrícola, como explica a sra. Betty, membro do grupo Yiba: Com o empréstimo que recebi do nosso grupo, pude aumentar a minha produção de amendoim. Com a alta produção, ganhamos dinheiro suficiente para que nossa família pudesse ter uma festa de Natal tranquila. Todo mundo tinha um vestido novo. Para ela, a agricultura já não é apenas um meio de subsistência, mas uma atividade comercial.
Em média, o período de empréstimo tem duração de dois meses, a taxa de juros ficou fixada em 10% por período e o índice de adimplência é bastante alto (97%). Embora a taxa de juros seja considerada alta, quando comparada àquela cobrada por instituições formais de microcrédito, os membros dos 46 grupos insistem em afirmar que ela é necessária para aumentar o volume de recursos para conceder novos créditos. As famílias também continuam a mobilizar outras estratégias de arrecadação, tais como a cobrança de taxas de contribuição dos associados. Da mesma forma, muitos grupos agora investem coletivamente em cultivos rentáveis, como batatas, e estão ampliando as áreas de plantio, visando se inserir nos mercados locais. Outros têm ingressado em atividades voltadas à agregação de valor às produções agrícolas, como processamento de milho para produção de farinha e debulha de arroz para venda.
PROMOVENDO A INCLUSÃO DOS INFINANCIÁVEIS
Aproveitar os recursos locais e conceder empréstimos com os fundos arrecadados coletivamente também trazem outros resultados. Não só os homens, como também as mulheres, podem agora iniciar uma atividade econômica, o que já é uma grande mudança em relação ao passado. Antes, as mulheres se dedicavam basicamente ao cultivo de alimentos, enquanto os homens praticamente se apropriavam de qualquer renda extra que as mulheres conseguissem obter por conta própria. Essa mudança foi possível em função da superação progressiva da distinção que havia entre culturas voltadas ao autoconsumo e aquelas destinadas ao comércio. As mulheres ingressaram na economia de mercado e hoje vendem produtos alimentícios, guardando os ganhos para si. O acesso das famílias ao crédito também tem incentivado o planejamento conjunto da propriedade agrícola. As mulheres preferem culturas comerciais que podem vender para saldar o empréstimo. Além disso, elas destinam o restante do dinheiro que ganham para suprir demandas domésticas e melhorar suas atividades agrícolas.
Ao perceber que a agricultura pode ser uma atividade rentável, muitos jovens também têm se sentido menos atraí- dos pela vida nas cidades. Cientes do elevado índice de desemprego e das dificuldades encontradas nas áreas urbanas, muitos jovens assumiram o trabalho na agricultura como uma atividade produtiva que, além de gerar renda, pode melhorar seus meios de vida e atribuir status social – algo impensável durante décadas. No momento, os jovens representam em média 14% dos membros de todos os grupos apoiados pela Afard. O acesso ao crédito e o fortalecimento organizacional dos grupos de jovens têm sido cruciais para essa nova realidade.
Outro aspecto importante dessa experiência é a democratização do acesso ao crédito. Qualquer agricultor ou agricultora que pertencer a um dos grupos está automaticamente apto a receber um empréstimo, uma vez que todos contribuíram igualmente para o fundo local (exceto os maus pagadores, que deixaram de pagar pelo menos duas vezes o empréstimo sem motivo justificável). Todos pagam a mesma taxa de associado e de subscrição, assim como oferecem o mesmo tipo de mão de obra agrícola. Outra demonstração de solidariedade é que muitas associações estão usando parte de seus lucros (até 7%) para ajudar pessoas com Aids e órfãos.
UMA ABORDAGEM CONSTRUÍDA DE BAIXO PARA CIMA
Não restam muitas dúvidas sobre o impacto positivo que a oferta de dinheiro para investimentos exerce na redução da pobreza. Os pequenos agricultores precisam de dinheiro para incrementar suas práticas produtivas e melhorar sua qualidade de vida. Quando dispõem de recursos, esses produtores conseguem estabelecer pequenos empreendimentos (do tamanho que corresponde à capacidade de absorção dos mercados locais), com os quais aumentam suas rendas e até mesmo acumulam alguns bens (bicicletas, gado ou um rádio).
O acesso ao crédito mudou a percepção dos agricultores familiares sobre a agricultura, assim como as estratégias que adotam – eles passaram a selecionar as melhores variedades, a planejar as épocas de plantio e se ater a práticas sustentáveis. Embora seja necessário medir os resultados de forma mais precisa, parece haver uma preferência por pesticidas naturais, pelo adequado manejo do solo e pela conservação da biodiversidade local.
Todos esses aspectos da experiência em Uganda revelaram como é grande e desconhecido (e, por que não, negligenciado) o potencial que os pequenos agricultores têm para mobilizar recursos locais. Trata-se de um exemplo legítimo de um mecanismo de microfinanciamento construído com base popular, de baixo para cima: uma abordagem bem diferente daquelas que são orientadas pela ideia de que pessoas pobres não sabem nada sobre dinheiro ou sobre como administrá-lo. Percebemos ainda que, quando bem empregadas, as abordagens coletivas podem contribuir para elevar a autoestima e desenvolver práticas agrícolas sustentáveis.
AS ETAPAS PARA ESTABELECER UM SISTEMA DE CRÉDITO COLETIVO
Em primeiro lugar, é preciso reunir um grupo grande de membros (mais de 50 pessoas), atentando para a importância da construção de liderança e do trabalho em equipe – mas, acima de tudo, envolva todos os membros em todas as atividades de planejamento.
Em seguida, é preciso avaliar a viabilidade e a aceitação por parte da comunidade das medidas que serão adotadas para mobilizar os recursos.
É importante assegurar que todos os membros do grupo aprovem o uso dos fundos gerados para empréstimos, independente do volume desses recursos. Seu uso deve ser condizente com as normas e regras estabelecidas que, por sua vez, devem ser transparentes, de forma a evitar fraudes e mal-entendidos. Para tanto, recomenda-se a formação de um comitê de crédito que garanta a conformidade às regras.
É necessária também uma supervisão constante, garantindo que as regras sejam seguidas, que sejam providenciados relatórios periódicos e precisos para os membros, que os maus pagadores sejam excluídos e que o registro de todas as atividades seja acessível a qualquer membro que o requisitar.
Alfred Lakwo
Diretor de Programa da Afard
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www.afard.net
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Revista V7N2 – Recursos locais podem formar um grande capital