Maria Cristiane Lobo Pompeu*
Na região do Baixo Tocantins, estado do Pará, entre 50 e 80% da população é constituída por pessoas que moram e produzem ao longo das margens dos rios. Para obterem acesso aos serviços públicos de saúde, os ribeirinhos precisam viajar até as sedes municipais em pequenos barcos. Dependendo da localização da comunidade, essas viagens podem durar até 10 horas. É nesse contexto que o uso das ervas medicinais exerce um papel essencial, na medida em que assegura a essa população autonomia no tratamento de enfermidades, chegando muitas vezes a salvar vidas.
Desde o ano 2000, o Programa de Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar do Baixo Tocantins, executado pela Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes (Apacc), passou a integrar ações de saúde preventiva em suas estratégias. As atividades do programa nesse campo foram desenhadas para atender a demandas da população local, principalmente aquelas relacionadas a doenças corriqueiras, tais como diarréia, ferimentos por cortes, picadas de arraia, de cobra, gripes, resfriados e infecções do aparelho reprodutor feminino.
O RESGATE DA SABEDORIA POPULAR
O trabalho se iniciou com a realização de um diagnóstico sobre as necessidades e oportunidades da população em relação à saúde preventiva. Participaram desse processo principalmente mulheres, mas também agricultores e jovens agroextrativistas de 54 comunidades dos municípios de Limoeiro do Ajuru, Cametá e Oeiras do Pará.
A partir do diagnóstico, foi elaborado um plano de formação composto por 15 cursos para grupos de 20 a 30 pessoas das comunidades envolvidas. Os cursos abordaram temas como direito à saúde; origem das doenças; conhecimento do organismo humano; prevenção de câncer no útero e na mama; doenças sexualmente transmissíveis e Aids; planejamento familiar; cuidados com a água; primeiros socorros, etc.
Embora o diagnóstico tenha revelado o grande domínio de conhecimentos da população ribeirinha, particularmente das parteiras e bezendeiras, sobre a valorização da biodiversidade regional no tratamento de doenças, foi possível identificar também que o uso de plantas medicinais não vinha sendo realizado de forma adequada por muitas famílias, o que levou à iniciativa de incorporação do tema entre os conteúdos do processo de formação. Assim, os cursos sobre ervas tiveram como objetivo resgatar, incentivar, bem como aprimorar os conhecimentos da cultura popular nesse campo.
Os cursos sobre ervas compreenderam três fases. A primeira foi dedicada à realização de diagnósticos comunitários sobre o uso de plantas medicinais. Por meio deles, buscou-se detalhar, na escala das comunidades, os conhecimentos levantados no diagnóstico mais abrangente realizado anteriormente. Esses diagnósticos resgataram o histórico do uso dos remédios caseiros e a situação atual dessa prática, enfocando em particular a disponibilidade das plantas, suas formas de uso e os mecanismos de repasse dos conhecimentos associados à fitoterapia popular.
Na segunda etapa, de caráter mais prático, foram aprofundados conhecimentos relacionados às plantas medicinais e suas partes. Amostras de plantas utilizadas em receitas de remédios caseiros foram expostas e manuseadas, assim como foi feita a catalogação das espécies mais utilizadas pelas comunidades. As receitas caseiras locais foram sistematizadas e incentivou-se a implementação de viveiros de mudas de plantas medicinais em vias de extinção e de hortas medicinais caseiras. Foram ainda elaborados álbuns de ervas para ficarem à disposição dos grupos comunitários e seus assessores locais.
Os álbuns de ervas apresentam as informações sistematizadas sobre as plantas empregadas em cada comunidade. Neles estão registrados os nomes populares e científicos de cada espécie, as comunidades em que as ervas podem ser encontradas e o número de famílias que possuem as plantas. Além disso, trazem os principais usos e formas de aproveitamento das plantas (ver quadro 1). Esses álbuns se tornaram um instrumento importante para dinamizar o trabalho de preservação da cultura popular, facilitando o repasse das informações sobre as plantas dentro e entre gerações.
A última etapa do curso concentrou-se no preparo dos remédios caseiros. Foram trocados conhecimentos sobre cuidados no preparo, na organização do ambiente e realizadas atividades práticas de elaboração dos remédios mais demandados pelas comunidades.
A PRODUÇÃO DOS REMÉDIOS CASEIROS
Os debates realizados durante os cursos giraram em torno da importância dos remédios caseiros na prevenção e cura das principais doenças que acometem as famílias e da valorização e reconhecimento da produção caseira como alternativa aos tratamentos convencionais.
Cabe ressaltar que toda matéria-prima utilizada na fabricação dos remédios, inclusive essências flores- tais de uso medicinal, foi coletada nas próprias comunidades. Muitas espécies que correm risco de extinção, como a sucuúba (Himatanthus sucuuba), a copaíba (Copaifera officinalis) e a andiroba (Carapa guianensis), vêm sendo preservadas e plantadas pelas famílias.
Grupos de mulheres e várias pessoas individualmente passaram também a produzir e comercializar remédios em suas próprias comunidades, em outros municípios e na feira de produtos da agricultura familiar realizada em Cametá. Dessa forma, o conhecimento vem contribuindo não só para a melhoria da saúde, mas também para a geração de renda das famílias.
UM JARDIM DE HORTAS MEDICINAIS
Com o esforço e a participação das multiplicadoras e multiplicadores em saúde preventiva, formados durante os cursos de ervas, muitas famílias já possuem seu jirau ou canteiro com as plantas medicinais mais utilizadas.
As plantas, seu uso e manejo são, sem dúvida, parte da cultura de um povo. No Baixo Tocantins, com a valorização e o reconhecimento do saber e do trabalho sobre a biodiversidade local, vivenciou-se a reconstrução da autonomia no tratamento da saúde familiar e, mais do que isso, assistiu-se também à valorização do trabalho da mulher.
Por fim, a consciência sobre a importância do uso sustentado desses recursos da natureza foi assim expressa por Maria Aparecida, multiplicadora em saúde preventiva de Oeiras do Pará: Não podemos deixar que essa riqueza se perca, uma vez que os remédios feitos das plantas medicinais além de serem nossos primeiros-socorros nos lugares mais distantes do meio rural, curam de forma que não causam danos aos nossos órgãos e são de custo algum, se não para a natureza se tirado de forma inconsciente.
Maria Cristiane Lobo Pompeu
pedagoga e educadora em saúde preventiva pela Apacc–Baixo Tocantins
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*Educadoras da APACC contribuem efetivamente para o desenvolvimento da experiência. São elas: Maria das Graças de Souza Savino, Jailme Gonçalves Bandeira, Elizabeth Marques de Souza, Silviane Barreiro Ribeiro, Cláudia Carvalho Mácola e Luciana Ataide da Costa.
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Revista V4N4 – Resgate e valorização da sabedoria popular sobre o uso de ervas medicinais no Baixo Tocantins (PA)