Laury Cullen Jr., Haroldo G. Borges, Jefferson Ferreira Lima, Nivaldo Campos, Tiago Pavan Beltrame, Antonio Vicente Moscogliato e Elisângela Ronconi
O histórico padrão predatório de ocupação do Pontal do Paranapanema, fundado em grandes fazendas monocultoras, provocou uma drástica redução na cobertura florestal na região. Hoje restam apenas 1,85% da mata atlântica original. Os últimos remanescentes florestais e de espécies animais silvestres podem ser encontrados no Parque Estadual Morro do Diabo (37 mil hectares) e em alguns fragmentos existentes em propriedades privadas.
A atual dinâmica de ocupação na região, com a criação de áreas de assentamento rural e a democratização do acesso à terra, tem determinado transformações na paisagem. As pressões sobre as últimas ilhas de biodiversidade, no entanto, não serão eliminadas até que sejam desenvolvidos e disseminados processos de uso e ocupação do solo capazes de conciliar produção agrícola com conservação ambiental.
O Programa Agroflorestal no Pontal do Paranapanema do Instituto de Pesquisas Ecológicas IPÊ é orientado para a geração de referências técnicas e metodológicas necessárias para a promoção do ecodesenvolvimento nos assentamentos rurais da região. Busca-se assim contribuir para a viabilização técnica, econômica e socioambiental da reforma agrária
ESTRATÉGIAS TÉCNICAS PARA A TRANSIÇÃO
O Programa Agroflorestal vem implementando quatro frentes principais de ação, que visam a integração do processo de reforma agrária com a restauração ambiental da paisagem rural na região.
Ilhas de agrobiodiversidade
A primeira estratégia consiste em introduzir cor- redores entre áreas de florestas nativas por meio de ilhas de agrobiodiversidade constituídas por cafezais agroflorestais. Elas funcionam como trampolins ecológicos, estimulando movimentos saltitantes de dispersão para muitas espécies silvestres. Além disso, as ilhas de café com floresta exercem a função de reaproximar populações que antes já foram interconectadas. Dessa forma, auxiliam na recolonização de fragmentos recipientes, o que aumenta a heterogeneidade na paisagem (Figura 1). Esse fluxo contínuo leva a uma maior adaptabilidade e densidade das espécies, principalmente daquelas mais suscetíveis aos efeitos da fragmentação florestal por não terem condições de se perpetuar quando vivem em pequenas populações isoladas.
Nos seus oito anos de existência, o programa implantou 60 ilhas de agrobiodiversidade de um hectare em média, beneficiando direta e indiretamente cerca de 200 famílias assentadas. Esses bosques de café agroflorestal têm cumprido importante função econômica para essas famílias. Além da renda do café, a produção de culturas anuais nas entrelinhas e na semi-sombra das árvores tem contribuído para a diversificação dos gêneros alimentícios e das fontes de renda para as famílias. As culturas do feijão, da abóbora, do quiabo, do maxixe, da banana e do tomatinho vêm sendo consorciadas nas ilhas, gerando uma renda extra anual de aproximadamente R$ 1,2 mil. O café produzido em ilhas com três anos de implantação gerou, em 2006, uma produção média de 15 sacas por hectare, o que significou uma renda de R$ 3,6 mil em média por produtor.
Os Sistemas Agroflorestais (SAFs) também prestam serviços ambientais em benefício ao desempenho produtivo de algumas culturas agrícolas. O estímulo ao desenvolvimento e ao abrigo de populações de insetos polinizadores e inimigos naturais de insetos-praga são exemplos desses serviços. Além disso, algumas pesquisas têm comprovado o efeito desses SAFs sobre o aumento da diversidade de aves e insetos e o freqüente trânsito dessas espécies entre as ilhas e os fragmentos florestais da região. Produtores e assentados também percebem mudanças positivas nesse sentido. Algumas declarações são muito eloqüentes a esse respeito.
“Tem um tanto de pássaro que aparece por aqui, que eu nunca tinha visto. Aqui, os pés de árvores são cheios de ninhos deles, de vários passarinhos. Tem tucanos, araras que passam por aqui, louro, pomba asa-branca, pombinha rolinha… É cheio delas aqui. E tem horas que eu estou carpindo e vêm uns passarinhos atrás de mim. Outro dia mesmo, eu estava carpindo e tinha um monte de passarinhos atrás de mim, por que aqui ninguém mata, eles se acostumam com a gente e vão se aproximando…”
Amélia de Oliveira Sales
(Assentamento Tucano)
“Então, depois dessas árvores que eu plantei aqui, esse bosque de ingá, tem aparecido tucano, arara, canário-da-terra, beija-flor, tico-tico, louro, bem-te-vi, curruíla e muito mais qualidade de passarinhos.”
Ederval Alves da Silva
(Assentamento Água Sumida)
Abraços verdes
Os fragmentos de mata vizinhos às áreas de cultivo têm suas bordas expostas e desprotegidas. Por isso, são altamente vulneráveis às constantes incursões de gado, plantas invasoras, cipós, fogo, queda de árvores, assim como a dissecações provocadas pelo vento. Aos poucos essas pressões vão consumindo os remanescentes e afetando sua integridade ecológica.
Para amenizar a degradação das bordas dos fragmentos florestais, o programa vem desenvolvendo a estratégia dos “abraços verdes”, ou seja, a implantação de módulos agroflorestais como zonas de amortecimento ecológico (Figura 2). Do ponto de vista biológico, um dos principais benefícios dessas zonas de amortecimento é a redução dos efeitos de borda que podem penetrar até 500 metros para o interior dos fragmentos, promovendo alterações de micro-clima e outros efeitos negativos que, com o tempo, podem levar à extinção desses remanescentes.
Alguns estudos acadêmicos vêm comprovando os efeitos ambientais positivos dos “abraços” sobre os remanescentes florestais. Entre os impactos identificados, destacam-se o aumento da densidade e da área basal da plantas nativas de fragmentos “abraçados”(Ferro, 2003) e a regeneração de árvores nativas nas proximidades das bordas dos fragmentos, o que sugere a restauração natural nessas bordas.
Cinqüenta hectares de zonas de amortecimento foram implantados na região, abraçando alguns fragmentos florestais que compõem a Estação Ecológica Mico-Leão-Preto. Ao associar sistemas agroflorestais compostos por espécies nativas com variedades de eucalipto de rápido crescimento, os “abraços verdes” vêm garantindo o atendimento de parte da demanda de lenha e mourões para cercas das comunidades. Essas áreas agroflorestadas também proporcionam espaços diversificados e produtivos para as comunidades rurais. Até o momento, 120 famílias assentadas adotaram o sistema, gerando um rendi- mento médio anual de R$ 1,3 mil.
Corredores agroflorestais em reservas legais
A Lei Federal nº 8.171 e o Decreto Estadual de São Paulo nº 50.889 estabelecem a obrigatoriedade de áreas mínimas florestadas em propriedades e assentamentos rurais. Aplicando-se os critérios dessas legislações no Pontal do Paranapanema, conclui-se que a região possui um passivo ambiental de aproximadamente quatro mil hectares que devem ser recompostos na forma de reservas legais e áreas de proteção permanente.
O programa tem atuado no sentido de apoiar as comunidades a cumprirem com essa obrigatoriedade legal. Licenças especiais são concedidas pelos órgãos responsáveis, como a Fundação Instituto de Terras do Esta- do de São Paulo (Itesp) e o Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DEPRN), para que as famílias implantem sistemas agroflorestais nas áreas de reserva legal do assentamento, que representam espaços adicionais fora de seus lotes para seus cultivos agrícolas.
O sistema taunguia, que já vinha sendo adotado com sucesso em outros assentamentos da região, tem sido o mais utilizado para esse fim. Esse tipo de sistema associa por um tempo limitado os cultivos agrícolas de ciclo curto (milho, feijão, amendoim e mandioca) com espécies florestais. As mudas das árvores são plantadas junto às culturas anuais e se aproveitam das operações de manejo dispensadas a estas últimas (capinas e eventuais aplicações de adubos). A partir de determinado estágio de desenvolvimento das árvores nativas, os cultivos anuais não são mais realizados nessas áreas. Esse tipo de sistema permite que as famílias explorem economicamente as áreas de reserva legal enquanto elas estão sendo restauradas, muitas das quais na forma de corredores ecológicos.
Até o momento, foram implantados aproximadamente 45 hectares do sistema no Assentamento Santa Zélia. Vinte famílias estiveram envolvidas na implantação dessas áreas, que receberam 110 mil mudas de espécies florestais nativas. Avaliações recentes mostram que, após três anos, cada família obteve com as culturas agrícolas consorciadas uma renda anual média de R$ 1,9 mil. A partir dos dados de produção agrícola coletados junto às famílias que trabalharam a área, calculou-se o Valor Presente Líquido (VPL) e a Relação Benefício/Custo (RB/C) para seis módulos agroflorestais analisados (ver tabela)
A renda anual média obtida com a exploração das entrelinhas dos SAFs representa um incremento médio de 11% na renda total das famílias envolvidas (Rodrigues, 2006). No momento, após três anos de implementação, os sistemas já estão com 70% de sombreamento, permitindo apenas a manutenção de algumas espécies anuais menos exigentes da luz solar, como a mandioca (Figura 3). Esse resultado é particularmente importante quando são analisadas as condições socio-econômicas das famílias participantes, que dispõem de pouca área disponível para o cultivo de grãos.
Do ponto de vista florístico, as áreas de reserva legal implantadas por meio dessa estratégia estão conforme esperava-se, embora apresentem uma diversidade de espécies um pouco inferior à encontrada em áreas de regeneração natural. Esse comportamento é freqüente em áreas reflorestadas. No entanto, a proximidade com fragmentos florestais nativos permitirá que com o tempo ocorra um aumento de espécies nessas áreas.
Viveiros agroflorestais comunitários
Cursos e trocas de experiências realizadas mensalmente nas escolas rurais localizadas nos assentamentos têm estimulado a adoção de práticas de manejo agro- ecológico (agrofloresta, conservação dos solos, diversificação produtiva etc) que visam a conservação da biodiversidade e dos recursos hídricos. Sementes e insumos têm sido fornecidos por ocasião desses espaços de capacitação com o intuito de estimular a implantação de viveiros agroflorestais comunitários. Aulas práticas sobre a implantação e condução de viveiros são ministradas nos viveiros já estabelecidos.
Aproximadamente mil assentados de 250 famílias da região já foram capacitados pelas ações do projeto. Muitos deles já possuem viveiros e produzem mudas de espécies arbóreas nativas e exóticas com o objetivo de produzir lenha, embelezar os lotes, implantar módulos agroflorestais e comercializar mudas para as fazendas e usinas de açúcar e álcool do Pontal, que estão adequando suas propriedades à legislação ambiental vigente. A venda de mudas de árvores já representa, em média, 35% da renda total das famílias participantes. Atualmente, existem 21 viveiros comunitários em oito assentamentos, com uma capacidade instalada de produção de aproximada- mente 500 mil mudas por ano.
INFLUÊNCIA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Os bons resultados do programa têm sido valorizados a ponto de influenciar políticas públicas na região. Uma das principais conquistas nesse sentido foi a Lei nº 11.600, de 19 de dezembro de 2003, que regulamenta os acordos com terras ocupadas na grande reserva para sua utilização no processo de reforma agrária. A mudança no decreto facilitou sua aplicação e deu ao Itesp e ao DEPRN o instrumento legal para uma escolha preferencial das áreas de reserva legal dos assentamentos em fragmentos de floresta nativa da região. A partir da sugestão de um zoneamento agroecológico para a região do Pontal (Figura 4), consolidado como um despacho pelo Ministério Público local, as áreas de reserva legal e de preservação permanente são hoje definidas nos novos projetos de assentamento, levando-se em conta a melhor conectividade entre os vários remanescentes florestais da região e as unidades de conservação.
Da mesma forma, o DEPRN e o Ministério Público regional têm funcionado como instâncias importantíssimas para a resolução de conflitos e proposição de acordos entre vários atores na paisagem. Como exemplo, citamos o mapa “Um Pontal Bom Para Todos”, aceito por várias instituições (MST, Ibama, DEPRN, Itesp, Incra, fazendeiros etc) e sugerido pelo Ministério Público como um zoneamento agroecológico apropriado para o extremo oeste Paulista (Cullen et al., 2005).
Outra importante ação resultante das pesquisas na região foi a inclusão do Pontal na faixa de prioridade máxima para conservação. Isso ficou estabelecido durante o workshop promovido pelo governo federal e parceiros para traçar prioridades de conservação na mata atlântica (Secretaria do Meio Ambiente, 2000). Finalmente, culminou com a criação da Estação Ecológica Mico-Leão-Preto, uma unidade de conservação federal de proteção integral, salvaguardando a biodiversidade em 6,3 mil hectares compostos pelos quatro maiores fragmentos florestais do Pontal do Paranapanema.
CONCLUSÃO
Os trabalhos desenvolvidos no Pontal têm evidenciado que, com extensão agroflorestal direcionada e participação comunitária é possível integrar diversos segmentos da sociedade na formulação e execução de uma proposta de desenvolvimento rural que combine restauração ambiental com geração e distribuição de riquezas. Verifica-se no Pontal a evolução de uma reforma agrária tradicional para uma reforma agrária diferenciada, inovadora e benéfica, tanto para os humanos quanto para os não-humanos. A reforma agrária, que há cinco anos sinalizava que seria a responsável pela destruição do que resta de biodiversidade no Pontal, pode ser considerada hoje como um dos elementos-chave para sua conservação.
Laury Cullen Jr., Haroldo G. Borges, Jefferson Ferreira Lima, Nivaldo Campos, Tiago Pavan Beltrame, Antonio Vicente Moscogliato e Elisângela Ronconi:
técnicos do IPÊ –Instituto de Pesquisas Ecológicas
[email protected] / www.ipe.org.br
Referências Bibliográficas
CULLEN, L. Alger; RAMBALDI, D. Land Reform and Biodiversity Conservation in Brazil in the 1990s: Conflict and the Articulation of Mutual Interests. Conservation Biology, v.19, n.3, 2005. p. 1-9.
FERRO, M. S. Efeito do plantio de Eucaliptos em fragmentos florestais no Pontal do Paranapanema – SP. 2003. 34 f. Monografia – Universidade Estadual de Londrina, Paraná.
RODRIGUES, E. R. Estratégia agroflorestal para a recuperação de áreas de reserva legal em assentamentos de reforma agrária: um estudo de caso no Pontal do Paranapanema, São Paulo. 2006. 85 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná.
SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO. Avaliação e ações prioritárias para a conservação da biodiversidade da Mata Atlântica e Campos Sulinos. Brasília: MMA/SBF, 2000. 40p.
VALLADARES-PADUA, C.; PADUA, S.; CULLEN, L. Within and surrounding the Morro do Diabo State Park: biological value, conflicts, mitigation and sustainable development alternatives. Environmental Science & Policy, n. 5, 2002. p. 69-78.
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Revista V3N3 – Restauração de paisagens e desenvolvimento socioambiental em assentamentos rurais do Pontal de Paranapanema