Ana Celsa Sousa, Carlos Eduardo de Souza Leite e Luciana Rios
Mulheres de Dandara na luta pelos seus direitos: esse é o lema do Grupo de Mulheres de Dandara, que conta com sete integrantes e que há 10 anos desenvolve experiências agroecológicas numa roça comunitária localizada no Assentamento Dandara dos Palmares, município de Camamu, Baixo-Sul da Bahia.
A comunidade surgiu em 1997 em uma área antes explorada pela empresa Cepel para o cultivo do cacau em monocultura, sistema que favoreceu a disseminação da doença vassoura-de-bruxa causada pelo fungo Moniliophtera perniciosa, o que contribuiu decisivamente para o declínio da atividade cacaueira nas grandes fazendas da região. A transformação das grandes propriedades cacauicultoras em latifúndios improdutivos impulsionou o surgimento de assentamentos rurais como o de Dandara, coroando a luta pela terra de 30 anos de muitas famílias da região.
No início do acampamento, as famílias vivenciaram momentos críticos devido à falta de alimentos. Segundo uma agricultora, que na época atuava como líder pela Pastoral da Criança, as crianças eram as mais atingidas pela desnutrição, diarreia e outras doenças. Com o propósito de produzir alimentos destinados prioritariamente às crianças, em 1998 um grupo de 20 mulheres solicitou à Associação Comunitária um lote de quatro hectares. Em 1999, a doação da área foi aprovada numa assembleia da associação, e o grupo deu início ao trabalho em mutirões, contando com o apoio de algumas entidades, como o Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop) e a Pastoral da Criança, que assessoraram na produção do viveiro de mudas de frutíferas, no manejo agroecológico e na gestão de um fundo rotativo para compra de insumos, sementes e ferramentas. A roça foi implantada com uma grande diversidade de plantas: mandioca, cupuaçu, banana-da-terra, café, feijão, bata-doce, gergelim, milho, abacaxi, urucum, entre outras.
N grupo implantou o roçado com o manejo agroflorestal regenerativo, já que se trata de uma região rica em biodiversidade do bioma Mata Atlântica, no qual as árvores predominam como componentes dos agroecossistemas. De início, houve certa resistência por parte de algumas mulheres do grupo por não conhecerem essa proposta de manejo. No entanto, após as primeiras experimentações, elas perceberam que se tratava da melhor opção, na qual o mato era roçado e o solo era protegido por plantas nativas.
O maior desafio nesse período inicial foi convencer as companheiras a não empregarem veneno para o controle de formigas, adotando no lugar o manejo de plantas ajudantes, como a comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia picta Schott), o roxinho (Euphorbia cotinifolia) e a manipueira (água extraída da mandioca). Esse primeiro momento também foi marcado pelo descrédito dos homens da comunidade que, em desrespeito às mulheres e ao padrão de manejo que elas escolheram, utilizavam veneno nos quintais cultivados por elas. Além de dificultar a disseminação das práticas agroecológicas no assentamento, essa atitude foi considerada uma violência contra as mulheres. Devido ao trabalho duro e à falta de apoio de alguns maridos, algumas mulheres foram desistindo do processo, restando as sete que permanecem até hoje.
Em 2004, a comunidade iniciou a produção de alimentos nos quintais, a criação de pequenos animais, o resgate das plantas medicinais e dos remédios caseiros e um programa de reeducação alimentar. A dinâmica gerada na comunidade em função da construção e do resgate do conhecimento sobre essas diversas questões criou um ambiente favorável ao empoderamento das mulheres, por meio de um processo intenso de mobilização, capacitação e intercâmbio com outras experiências em torno à temática da segurança alimentar e nutricional.
Durante todo o processo de experimentação dos princípios da Agroecologia no manejo da roça, aconteceram várias visitas de outras organizações que traziam agricultoras e agricultores para discutirem sobre o processo de transição agroecológica em suas propriedades. Com o grupo organizado e sendo referência na comunidade, muitas mulheres foram convidadas para participar de encontros fora de Dandara, tanto para capacitações como para trocas de conhecimentos com outros grupos.
Os encontros no assentamento também são importantes para capacitação e criação de autonomia. Nesses momentos as mulheres têm a oportunidade de expor pensamentos e ideias, de resgatar e reconstruir sua cidadania. A dinâmica de intercâmbio, seja em nível comunitário, regional, estadual ou nacional, a exemplo do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA), da Rede de Mulheres em Remanso (BA), do Quilombo de Conceição das Crioulas (PE), dos Encontros sobre Agroecologia, dos fóruns e feiras, tem sido algo constante e fundamental para o grupo de Dandara, sobretudo por propiciar a troca de experiências das práticas agroecológicas, uma maior articulação entre mulheres e a organização comunitária.
PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NAS ORGANIZAÇÕES
Geralmente, as comunidades e os assentamentos de Camamu se organizam por intermédio de associações comunitárias, assumindo formas jurídicas que muito frequentemente são fomentadas por agentes externos, tais como políticos e agentes financeiros. As comunidades acabam adotando esse formato institucional com o objetivo de acessar os benefícios de políticas públicas. Normalmente, a gestão dessas organizações é feita pelos homens, que resistem ao acesso das mulheres aos cargos diretivos e de tomada de decisão.
A inserção das mulheres na associação comunitária de Dandara não foi fácil. No início, sequer a participação delas como sócias foi aceita, já que não eram titulares dos lotes das famílias. Dessa forma, não foi dado a elas o direito de votar nem de serem votadas e poucas participavam das decisões relacionadas ao desenvolvimento do assentamento. Dois anos depois, as mulheres conquistaram o direito de se associarem, mas como não podiam pagar as mensalidades ficavam inadimplentes e sem direito a voz e voto. Com muita luta, o grupo de mulheres conseguiu alteração no estatuto de forma que todos os membros de uma família estariam adimplentes mediante o pagamento de uma única mensalidade.
Algumas das mulheres do grupo são associadas ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Camamu (STTR), instituição que tem desempenhado um papel essencial na formação de lideranças. Embora a política de cotas da organização assegure que as mulheres ocupem secretarias do STTR, a falta de experiência delas nessas funções se apresentou como um obstáculo.
Nos espaços de formação política, o grupo tem refle- tido sobre a participação efetiva das mulheres em cargos diretivos. Apesar de algumas já exercerem esse tipo de função nas associações de sua comunidade, ainda é necessário dar continuidade ao processo de politização das agricultoras.
A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA ECONÔMICA
Na medida em que a venda da produção e a administração da renda das famílias agricultoras são realizadas pelos homens, a geração e a gestão de renda pelas mulheres se colocaram como uma questão central para o grupo.
A entrada de novas mulheres no grupo da roça tem ajudado a dinamizar a produção e a estimular as iniciativas de beneficiamento e de comercialização que estão sob o domínio exclusivo das mulheres. Há cerca de um ano, os produtos do grupo vêm sendo comercializados na Feira Agroecológica de Camamu, organizada por meio de um sistema de rotatividade semanal delas com mulheres de outras comunidades da região.
A partir de 2008, a venda de produtos in natura – frutas e verduras – e beneficiados – sucos, doces, bolos e beijus – para o Programa de Aquisição de Alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (PAA/Conab), em parceria com a Agência de Assessoria e Comercialização da Agricultura Familiar do Baixo Sul (Aacaf), tem contribuído para impulsionar essa iniciativa. A comercialização para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) se apresenta nesse momento como nova perspectiva de acesso a mercados pelo grupo.
A EXPERIÊNCIA DE SISTEMATIZAR
A ideia de sistematizar a experiência do grupo surgiu com a participação de representantes do Grupo de Mulheres de Dandara no GT Mulheres da ANA.
A sistematização possibilitou ao grupo levantar e aprofundar questões fundamentais sobre sua caminhada, bem como sobre a trajetória das agricultoras que o integram. Proporcionou também uma reflexão sobre os avanços e os desafios das mulheres rumo à construção da Agroecologia no contexto da agricultura familiar da região do Baixo-Sul da Bahia.
Para dar início à sistematização, foram realizadas oficinas com o grupo nas quais foram empregadas ferramentas diversas, como dinâmicas, descrição da rotina diária de cada agricultora e coleta de dados sobre raça, escolaridade e religião. O resgate da história do grupo foi feito com a construção de uma linha do tempo, por meio da qual foi descrita a trajetória da organização das mulheres, suas principais conquistas, desafios e perspectivas. A iniciativa permitiu a caracterização do perfil sociocultural das mulheres envolvidas na experiência.
Com esse processo de autorreflexão, foi possível elencar as contribuições da Agroecologia para o grupo e para o assentamento de modo geral. Segundo a percepção atual do grupo, as experiências agroecológicas promoveram a valorização e o reconhecimento do papel das mulheres na agricultura familiar; a qualidade e a diversificação dos alimentos que são produzidos e consumidos; o cuidado e a proteção da natureza; o fortalecimento do trabalho em grupo; a valorização dos recursos locais; a geração e o aumento da renda com diversificação de produtos.
SONHOS E PERSPECTIVAS
Como perspectivas, o Grupo de Mulheres de Dandara sonha em fortalecer a roça agroecológica, ao concluir uma unidade de beneficiamento e armazenamento dos alimentos ali produzidos. Pretende também aumentar sua participação na esfera política; estimular ainda mais a consciência sobre a importância do trabalho coletivo; continuar as visitas nas roças individuais e mutirões para disseminação dos princípios agroecológicos; dar continuidade ao processo de formação política e sobre direitos das mulheres; qualificar o grupo de artesanato, aprimorando sua infraestrutura e aumentando sua capacidade de produção, de modo a incrementar os mecanismos de geração de renda pelas mulheres.
Essa experiência traz lições importantes acerca da construção de referências locais voltadas para a organização política e produtiva das mulheres agricultoras. Aponta também os desafios para sua disseminação na região como uma experiência inovadora e de promoção da Agroecologia. Entretanto, a participação efetiva das mulheres nos espaços de organização e representação, como a Associação Comunitária no Assentamento de Dandara e no STTR de Camamu, já demonstra o efeito irradiador e de consolidação dessa iniciativa.
Ana Celsa Sousa
técnica do Programa Mata Atlântica
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Carlos Eduardo de Souza Leite
coordenador geral
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Luciana Rios
assessora de comunicação
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Baixe o artigo completo:
Revista V6N4 – Roça agroecológica das mulheres do Assentamento Dandara dos Palmares, Camamu (BA)