Fabio Junior Pereira da Silva, André Mundstock Xavier de Carvalho e Paulo Petersen
As regiões centro sul do paraná e planalto norte catarinense estão inseridas no bioma da Mata Atlântica, mais particularmente na Mata de Araucária (Araucaria angustifolia), vegetação de rica biodiversidade responsável por uma das principais atividades extrativistas no brasil, a erva-mate (Ilex paraguariensis).
Sob a exuberância dos pinheiros e dos ervais, encontram-se rochas de grande riqueza em nutrientes, formadas a partir de um dos maiores derramamentos vulcânicos da história do planeta, o derrame da bacia do Paraná. No entanto, apenas pequena parcela dos solos da região é originada dessas rochas, sendo a maioria derivada de rochas sedimentares, mais pobres quimicamente, o que os faz rasos e bastante suscetíveis à erosão.
Sua fertilidade natural está fortemente associada à formação de densa camada orgânica nos horizontes superficiais.
Assim como em outras regiões tropicais e subtropicais do mundo, a prática de pousio, roça e queima da vegetação natural figurou historicamente como a principal estratégia empregada pelos agricultores para a recomposição da fertilidade dos solos. No entanto, o aumento da pressão demográfica e a consequente necessidade de intensificação do uso dos solos foram tornando essa prática menos efetiva em função do encurtamento paulatino dos períodos de pousio. Mas foi a partir dos anos 1960, com a introdução dos pacotes agroquímicos associada à prática de calagem intensiva, que a lógica de gestão da fertilidade passou por uma alteração substancial. A importação de nutrientes na forma de adubos industriais fez com que o uso continuado dos solos se desligasse do manejo da biomassa vegetal. Essa estratégia de recomposição da fertilidade favoreceu a exposição dos solos à erosão e criou as condições ecológicas para a explosão de surtos de insetos-praga, organismos patogênicos e plantas espontâneas.
Para responder aos efeitos negativos da simplificação ecológica dos agroecossistemas, muitos agricultores foram induzidos por políticas de modernização a empregar fertilizantes solúveis e agrotóxicos em quantidades crescentes, tornando-se assim reféns de um círculo vicioso resultante de um estilo de agricultura químico-dependente.
REVALORIZANDO A BIOMASSA NO MANEJO DA FERTILIDADE
Na última década, agricultores das regiões Centro Sul do Paraná e do Planalto Norte Catarinense vêm construindo estratégias de manejo alternativas ao padrão científico-tecnológico da modernização agrícola. Essa construção envolve múltiplos atores coletivos, sobretudo vinculados a organizações da agricultura familiar, como sindicatos, associações, cooperativas, coletivos, grupos formais e informais. Esse processo conta, desde 1993, com a assessoria da AS-PTA, mobilizando também instituições de ensino e pesquisa e prefeituras municipais.
As alternativas construídas têm como principal objetivo fortalecer a autonomia, a sustentabilidade e a eficiência econômica da agricultura familiar diante de um cenário que conjuga aumentos sistemáticos nos custos de produção com o aumento da vulnerabilidade das lavouras em função das mudanças climáticas. Nesse sentido, processos de experimentação agroecológica têm sido realizados pelos próprios agricultores, em suas propriedades e comunidades, buscando aprimorar as estratégias de manejo que permitam conciliar a redução na dependência de insumos externos, sobretudo os agroquímicos, com a manutenção de produções elevadas. O aproveitamento dos resíduos da propriedade e o emprego da adubação verde e de práticas que intensificam a fixação biológica de nitrogênio são alguns dos mecanismos adotados para a gestão dos nutrientes nas lavouras da região. A inoculação de microrganismos (Azospirriliun sp.) em gramíneas, em especial o milho, e a adubação verde com leguminosas de inverno, principalmente ervilhaca e tremoço, são estratégias de mobilização do nitrogênio atmosférico para os ciclos biogeoquímicos do agroecossistema.
A revalorização das sementes crioulas é outro elemento essencial nessa estratégia de gestão da fertilidade. Diferente das variedades comerciais, dependentes de condições ecológicas ótimas para expressar seus potenciais produtivos, as variedades locais das espécies agrícolas caracterizam-se pela rusticidade e capacidade de adaptação às condições edafoclimáticas da região. Além disso, beneficiam-se das associações simbióticas estabelecidas com a microbiota edáfica, componente essencial para a mobilização de nutrientes presentes nos solos em condições de baixa disponibilidade para as plantas cultivadas.
O REJUVENESCIMENTO DOS SOLOS COM PÓS DE ROCHA
O uso de pós de rochas é outra prática que vem sendo adotada de forma cada vez mais frequente pelos agricultores da região. Conhecida como rochagem, essa técnica ainda não recebeu o devido reconhecimento das instituições científico-acadêmicas, em que pesem os resultados agronômicos positivos registrados em várias regiões do mundo desde a década de 1990 (THEODORO; ALMEIDA, 2013). De fato, sob o enfoque do paradigma mineralista de gestão da fertilidade que domina a ciência dos solos, a rochagem permanecerá sendo considerada uma estratégia de baixa eficácia agronômica, uma vez que os minerais presentes nos pós das rochas são pouco solúveis, dificultando a pronta liberação dos nutrientes para as plantas cultivadas.
Mas a lógica funcional da rochagem não pode ser compreendida por esse enfoque restrito que desconsidera o efeito dos processos ecológicos decorrentes dos serviços ambientais da biodiversidade nos agroecossistemas. Para que os nutrientes se tornem disponíveis para os cultivos, eles precisam ser liberados da estrutura cristalina dos minerais, processo que ocorre principalmente pela ação de ácidos orgânicos produzidos pela microbiota do solo e pelas raízes das plantas. Por essa razão, o estímulo ao desenvolvimento de densa rede biótica no solo, por meio de manejos que reponham biomassa de forma sistemática ao sistema, favorecerá a criação das condições bioquímicas adequadas para a liberação dos nutrientes dos minerais aportados com a rochagem.
Segundo Theodoro (2000), a rochagem pode ser entendida como um processo de rejuvenescimento do solo por meio de sua fertilização com uso de pós de rochas. Conforme essa definição, a técnica não pode ser interpretada como uma simples substituição de insumos químicos. Para que seja efetiva, ela deve ser realizada em combinação com práticas de manejo da biomassa ativadoras de processos biológicos no solo.
Essa mudança na lógica de manejo vincula-se à necessidade de superação do paradigma mineralista e à revisão do próprio conceito de fertilidade, ainda fortemente associado à ideia de disponibilidade de nutrientes solúveis facilmente absorvíveis pelas plantas cultivadas (PETERSEN; ALMEIDA, 2008).
A EXPERIMENTAÇÃO COM PÓS DE ROCHA NA REGIÃO
A compreensão dos princípios envolvidos na prática da rochagem por parte dos agricultores é um elemento essencial para que ela seja adotada de forma adequada, potencializando seus efeitos positivos sobre a qualidade dos solos. A experimenta bem como o intercâmbio entre agricultores-experimentadores têm se revelado metodologias importantes para que os conhecimentos associados à rochagem sejam paulatinamente apropriados. Como não se trata de uma prática rigidamente definida na lógica de pacotes tecnológicos, essa apreensão dos seus princípios funcionais é uma condição fundamental para que os agricultores ajustem o manejo segundo os recursos localmente disponíveis e as peculiaridades de seus agroecossistemas.
Os dados apresentados na Figura 1 referem-se aos resultados econômicos obtidos por uma agricultora-experimentadora do município de Palmeira (PR). Em um solo raso originário de rocha sedimentar relativamente pobre em nutrientes, ela vem utilizando há cinco anos a adubação verde de inverno e de verão, o plantio com sementes crioulas, a inoculação das sementes para fixação biológica de nitrogênio e a rochagem. Na última safra de feijão (2014-2015), ela obteve a produtividade de 1.800 Kg/ha com um custo de produção equivalente a 180 Kg/ha.
Esses dados corroboram outros registros realizados na região que indicam que essas estratégias alternativas de gestão da fertilidade proporcionam altas rentabilidades das lavouras quando comparadas com as daquelas manejadas com o emprego de agroquímicos. Além desse efeito econômico positivo, o manejo ecológico do solo proporciona maior resiliência agroecológica das lavouras, já que as plantas desses sistemas, em busca de água e nutrientes, exploram volumes de solo superiores aos das plantas das lavouras convencionais instaladas com variedades de alta produtividade dependentes da fertilização química. A combinação dessas características econômico-ecológicas é um aspecto absolutamente decisivo em um contexto tendencial no qual os custos de produção elevam-se sistematicamente, os preços dos produtos oscilam de forma errática e os riscos ambientais acentuam-se em virtude dos efeitos das mudanças climáticas.
Os elevados níveis de endividamento e inadimplência da parcela da agricultura familiar no Sul do Brasil que adota os pacotes agroquímicos estimulada pelas políticas de crédito e de assistência técnica são uma expressão inequívoca da crescente inviabilidade econômica e da fragilidade ecológica da agricultura industrial.
A prática da rochagem vem se disseminando rapidamente na região por meio de parcerias estabelecidas com secretarias municipais de agricultura, com a Emater-PR, com escolas, universidades e cooperativas. Uma possibilidade de ampliação ainda mais significativa do alcance social dessa prática seria a distribuição dos pós de rocha por intermédio de programas similares aos já estruturados pelos governos estadual e federal voltados à distribuição de calcário.
APROFUNDANDO CONHECIMENTOS, APERFEIÇOANDO MANEJOS
Muitos agricultores familiares das regiões Centro Sul do Paraná e Planalto Norte Catarinense, articulados em grupos de agricultores-experimentadores, têm se destacado pela capacidade inovadora na concepção e adaptação de princípios e práticas de manejo ecológico dos solos, visando à promoção de uma agricultura mais sustentável, rentável e com menores riscos. Os conhecimentos acumulados por eles sobre manejo da biomassa e uso de pós de rocha, conservação e melhoramento de variedades crioulas, entre outros, estão sendo compartilha- dos nas comunidades rurais.
A articulação desses grupos de agricultores-experimentadores com projetos de pesquisa científica tem contribuído para aprofundar os conhecimentos associados à prática da rochagem. Essas pesquisas vêm sendo realizadas a partir de parcerias estabelecidas entre a AS-PTA, organizações de agricultores e instituições científico-acadêmicas, tais como a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
Ao mobilizar a efetiva participação dos agricultores-experimentadores, essas iniciativas de pesquisa valorizam suas percepções, considerando as condições objetivas de que dispõe a agricultura familiar na região para a adoção das práticas inovadoras em experimentação. Portanto, são pesquisas que não se pautam pelo desenvolvimento de receituários tecnológicos para posterior universalização, mas pela aplicação de princípios de gestão da fertilidade coerentes com o enfoque agroecológico, sempre buscando estabelecer ambientes propícios ao diálogo de saberes visando à adaptação às realidades locais.
AVANÇOS E DESAFIOS
A disseminação social de determinada prática inovadora de manejo do solo não é condicionada a fatores isolados. Vários aspectos técnicos, econômicos, mercadológicos, legais, políticos e culturais interferem nas possibilidades de expansão dessas inovações. A disseminação da rochagem cobra a ruptura com concepções sobre fertilidade dos solos que estão plenamente estabelecidas na academia. Em paralelo ao reconhecimento acadêmico, a generalização da prática requer mu- danças legais, a organização dos mercados para esse insumo e a instituição de programas públicos coerentes com os seus princípios.
Com a denominação de remineralizadores, os pós de rocha passaram a ser considerados na Lei n. 6.894, de janeiro de 1980, como fontes de nutrientes. E, após a realização de dois congressos brasileiros sobre rochagem (2009 e 2013), no final de 2013 foram finalmente reconhecidos como insumos agrícolas. Mas esse avanço do ponto de vista legal deve vir acompanhado de mudanças institucionais. A experiência apresentada neste artigo ressalta o fato de que a rochagem não pode ser concebida como uma simples substituição de insumos agroquímicos pelos pós de rocha. Para que sua efetividade agronômica seja potencializada, ela deve ser incorporada nos sistemas agrícolas em conjunto com práticas de manejo da biomassa, de forma a intensificar a ciclagem biogeoquímica dos nutrientes. Portanto, o fomento ao emprego dos pós de rocha deve ser integrado a programas de Ater e pesquisa claramente orientados por uma perspectiva agroecológica de redesenho dos agroecossistemas que permita superar o paradigma mineralista de gestão da fertilidade.
Fabio Junior Pereira Da Silva Bolsista Da Ufv E Biólogo Da As-Pta
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André Mundstock
XAVIER DE CARVALHO
Professor da UFV
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Paulo Petersen
AS-PTA
[email protected]
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, E.; SILVA, F.J.P.; RALISCH, R. Revitalização do solo em processos de transição agroecológica no sul do Brasil. Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, v. 4, n.1, p. 7-10, 2007.
ASSIS, R.L.; ROMEIRO, A.R. Agroecologia e agricultura familiar na região Centro-Sul do estado do Paraná. Revista de Economia e Sociologia Rural, Rio de Janeiro, v. 43, n. 1, p. 155-177, 2005.
PETERSEN, P.; ALMEIDA, E. Revendo o conceito de fertilidade; conversão ecológica do sistema de manejo de solos na região do Contestado. Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, p.16-23, 2008.
THEODORO, S.H.C. A Fertilização da Terra pela Terra. 2000. Tese (Doutorado) –Centro de Desenvolvimento Sustentável, UNB, Brasília.
THEODORO, S.H.C.; ALMEIDA, E. Agrominerais e a construção da soberania em insumos no Brasil. Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 22-8, 2013.
Baixe o artigo completo:
Revista V12N1 – Rochagem no manejo da fertilidade dos solos: experiências no Centro Sul do Paraná e no Planalto Norte Catarinense